No dia 10 de novembro de 1938, Kurt Landauer foi feito prisioneiro pela Gestapo sob a única acusação de ser judeu. Enviado para o campo de concentração de Dachau, baseou a sua defesa em ter sido um militar condecorado que combatera bravamente durante a I Grande Guerra.
O regime nazi não costumava ser benévolo com qualquer tipo de judeu mas foi obrigado a recuar perante a popularidade enorme de Kurt e deixou-o sair em liberdade após 33 dias de cativeiro. Na verdade, não o lhe deu um minuto de paz. Toda a sua família foi perseguida e ele foi o único dos parentes que sobreviveu ao Holocausto. Em março de 1939, impossibilitado de viver decentemente na Alemanha, refugiou-se na Suíça.
No ano seguinte, o Bayern de Munique deslocou-se a Genebra para um jogo amigável contra a seleção suíça. Landauer estava, como não podia deixar de ser, sentado nas bancadas. Todos os jogadores do Bayern foram ao seu encontro e demoraram-se na sua frente num aplauso carinhoso. A Gestapo não gostou do gesto. Viriam aí consequências inevitáveis.
Landauer nasceu numa pequena terriola chamada Plannegg, nos arredores de Munique, no dia 28 de julho de 1884. Apaixonado por futebol, ganhou lugar na equipa do Bayern em 1901. Não era nenhum sobredotado, mas cumpria com as suas tarefas e, sobretudo, tinha uma capacidade de liderança impressionante que o levou a, doze anos mais tarde, assumir a presidência do clube. Eram tempos muito complicados, como foram quase todos os da sua vida.
A I Guerra rebentou no ano seguinte e Landauer foi chamado a cumprir o serviço militar. Regressou ao cargo no pós-guerra, sendo eleito novamente. Ninguém esquecera a forma como quisera lançar uma base de crescimento para um clube completamente amador e sem qualquer carisma dentro do futebol alemão.
Crime e castigo
Foi na segunda presidência de Kurt que o Bayern de Munique ganhou o primeiro título da sua história, campeão da Alemanha numa fase em que a prova se disputava entre campeões regionais em sistema de eliminatórias. A vitória por 3-2 na final de 1932 sobre o Eintracht Franfurt jamais seria esquecida pelos adeptos que sofriam a bom sofrer pela pobreza do palmarés do seu clube. Outros tempos…
22 de março de 1933 é uma data um bocado nojenta no calendário da História Universal. Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha e deu início a uma era de sombras e de fantasmas assustadores. O Bayern sofreu duramente pelo facto de ter um presidente judeu e Landauer foi obrigado a abandonar o cargo. O problema era agravado pelo facto de também Richard Kohn, o treinador da altura, ser igualmente judeu.
Tal como Kurt, foi obrigado a fugir, primeiro para Espanha e depois para a Suíça. Conhecido nos meios do partido nacional-socialista por ‘Judenklub’, o clube dos judeus, o Bayern era sangrado violentamente pelos seus algozes.
É um momento imponente da história de um clube que conseguiu tornar-se um gigante a nível mundial: jogadores, técnicos e dirigentes, tomaram uma posição de coragem inédita. Fizeram saber que o exílio de Kurt Landauer não alterava o seu papel dentro da instituição. Continuaria a ser o líder e ideólogo do Bayern e o mentor do seu crescimento. Um desafio, portanto. E uma exibição firme de orgulho inquebrantável.
A resposta do regime foi cínica. Com o Bayern caído em desgraça, o vizinho e rival Munique 1860 passou a ser fortemente beneficiado, passando a usufruir de uma estrutura moderna de campos de treino, técnicos especializados e, cúmulo dos cúmulos, a poder requisitar à sua vontade jogadores que estavam no exército.
Entretanto, o Bayern vivia à míngua de tostões e acabou por se ver obrigado a despedir alguns dos seus melhores jogadores – que eram judeus – como foi o caso do capitão de equipa Conrad Heidkamp, um fulano que escondera os troféus mais valiosos do clube aquando de uma rusga feita pela Gestapo para recolher material que servisse para transformar em dinheiro numa operação a que chamaram ‘esforços de guerra’.
O ataque furioso
A forma como, por inteiro, numa unidade impressionante, o Bayern se manteve impermeável às ideias ascorosas do regime nazi provocou a fúria do próprio Hitler que ordenou a total desjudificação do clube se queria continuar a existir. Foi essa iniciativa que abanou as traves-mestras do Bayern e acabou por atrasar muito o seu crescimento, sobretudo nos anos que se seguiram ao final da II Grande Guerra e apesar do regresso de Kurt Landauer.
Caçados como ratazanas, todos os dirigentes judeus dos bávaros foram expulsos do clube. A resistência ficaria, agora, nas mãos dos jogadores. Em 1934, muitos deles participaram na batalha campal no centro de Munique contra o grupo dos Camisas Castanhas.
O ponta-direita Willy Simmetsreiter viu-se perseguido por, em 1936, ter feito questão de ser fotografado ao lado do americano negro Jesse Owens que ganhara quatro medalhas olímpicas nos Jogos de Berlim. O avançado-centro Sigmund Haringer foi preso por criticar publicamente e com uma dureza inaudita a bandeira nazi como representativa da Alemanha.
O adversário do Benfica na próxima terça-feira parece hoje uma equipa invencível. Mas a sua força foi temperada com o aço de uma resistência admirável. Que merece jamais ser esquecida.