Os portugueses adoram primos. E não falo dos filhos da irmã do vosso pai. Falo do conceito português de ‘primo’ – ou seja, toda e qualquer pessoa que orgulhosamente tratamos como ‘primo’ mesmo que não haja qualquer aproximação sanguínea do século XVII para cá. Balizando, aqueles ‘primos’ avulsos com quem nunca passamos o Natal mas que poderiam perfeitamente lá estar.
Há primos para tudo e em vários graus. Há, por exemplo, aquele que só o começa a ser a partir do terceiro gin. Há, ainda, aquele que está num lugarão numa agência de rating em Londres e que, «por acaso, ainda é meu primo». E, claro, aquele que está um bocado mal na vida mas que, garantimos, é «um tipo porreiro» que, «curiosamente, ainda me é qualquer coisa». Mas atenção: ele não é «um tipo porreiro» por ser um tipo porreiro. É-o por «ainda» ser primo. Apresentar alguém como seu primo é munir essa pessoa com um selo de confiança: «atenção que este é dos nossos» – é o que se diz sem se dizer. Uma espécie de título nobiliárquico que procura legitimar uma pessoa perante outras, tanto abrindo portas em corações como em eventuais botões de punho sociais.
Há, contudo, um processo anterior a este: o momento em que dois novos primos ‘selam o laço’. No bar, o primo munido da preciosa informação solta a fatídica frase: «Sabes que, por acaso, a tua mãe é prima de um primo da minha bisavó que em 1732 foi para o Vanuatu e lá casou com uma prima da Somália com três olhos que veio para Portugal no 25 de Abril e conheceu o primo do teu pai em Ponte de Lima». Festa certa! Confetes por todo o lado! Fogo de artifício! Venha o vinho do Porto e queijo! Quem diria?! Os astros alinharam-se! «Como é possível? Que coincidência! Como não nos conhecíamos antes? O mundo é mesmo pequeno!». Note-se que, neste preciso momento, estas duas criaturas não se fizeram amigos: fizeram-se primos! Muito acima! Primos, pá! A partir de agora, para o João, o Martim deixou de se chamar Martim e o João, para o Martim, deixou de se chamar João: deste dia em diante, até que a terra os coma, tratar-se-ão, mutuamente e com muita alegria, como ‘primo’. E isto é bonito.
«Temos que ir almoçar, primo!». Logo começa uma institucional troca de sugestões de restaurantes e convites dirigido a todos ‘primos’ que, entregins, encontraram em comum. O restaurante, esse, «não é conhecido»: é, sim, de «um amigo que abre só para nós e onde o tio Jaime ia muito».
Os primos… os primos… Adoramos primos. Às vezes sinto que os portugueses têm uma espécie de carência crónica: estão sempre à procura do outro. Do calor do outro, do reconhecimento do outro, do amor do outro, da amizade do outro, da esmola do outro – como se alguém lhes tivesse cortado o cordão umbilical metafísico com um astrolábio. Como se todos mancassem do coração. Será que ficaram todos com ‘daddy issues’ desde que D. Sebastião não voltou de Marrocos?
Até podem ter ficado. Mas não há mal! Têm solução: afinal, em cada esquina há um primo! Em cada esquina um laço familiar para tricotar. Em cada esquina alguém pronto para, de Super Bock em punho, ‘armar primo’ outrem. Em cada esquina alguém para dar carinho. Eis a beleza de ser português: uma vontade ardente de abraçar o outro com o coração – nem que para isso se tenha de ir inventar desculpas de parentescos às gravuras de Foz Côa. «Aquele ali, com cabeça de burro e pernas de humano, em 12.000 a.C., ia muito à casa do Tio Vilas que, por acaso, casou com uma prima perneta que era irmã da Joana Paleolytico, tia-avó do teu nonagésimo quarto avô paterno. Olha que não é assim tão distante!».
Lisboa, 29 de outubro 2021