Vou contar a história dos homens e do seu feito. A Inglaterra nunca os esquecerá. Levaram a cabo uma das maiores proezas do crime para lá da Mancha e houve um deles que ficou anos a fio em liberdade, no Brasil, tirando um gozo profundo da situação, fazendo gato sapato da Scotland Yard e enchendo de satisfação os tablóides que, de vez em quando, iam até ao Rio de Janeiro para o fotografarem na Baía da Guanabara com o sorriso trocista de um garoto que escapou do castigo.
No total eram 18. O plano demorou meses a ser posto em prática. Objetivo: intercetar e roubar o comboio-correio noturno entre Glasgow e Londres. Mas era preciso um dia certo: aquele em que transportasse a maior fatia de dinheiro. Seriam pilhados 2,6 milhões de Libras Esterlinas.
No dia 7 de Agosto de 1963, pelas 18h50, o Travelling Post Office (TPO) Up Special Train saiu da Glasgow Central Station em direção a Euston Station, em Londres, onde deveria chegar pelas quatro da manhã. A máquina que puxava as doze carruagens da composição era uma English Electric Type 4, uma locomotiva a diesel D326. Transportava 72 empregados do Royal Mail. A escolha dos ladrões estava feita. Atacariam nessa noite, pela calada, num dos mais arriscados e arrojados golpes levados a cabo até aí. O seu objetivo estava bem definido: a segunda carruagem a contar da locomotiva, conhecida por HVP (High-Value Packages), e que costumava transportar largas quantidades de dinheiro. E aquele era, na verdade, o momento certo. No geral, o valor do transporte em dinheiro não ultrapassava as 300 mil Libras. Mas, dessa vez, por ter havido um feriado para o pessoal bancário dois dias antes, acumulara-se um valor muito mais alto: entre 2,5 e 3 milhões de Libras.
Bruce Richard Reynolds, conhecido porNapoleão, era o chefe do bando. Nascera a 7 de Setembro de 1931, em Charing Cross, Londres, e bem cedo, muito por culpa da morte da mãe quando tinha apenas quatro anos, se tornou um ladrãozeco bem conhecido pela polícia londrina. Gostava de se exibir e de mostrar uma saúde financeira que estava longe de existir. Antigo dealer, conduzia orgulhosamente um Aston Martin que não passava despercebido. Foi ele o verdadeiro cérebro da operação, embora com o apoio indispensável de Jonh Wheater, um advogado sem escrúpulos que arrendou a quinta na qual os salafrários se esconderam logo a seguir ao assalto, tão felizes da vida e tão idiotamente descuidados, que resolveram entreter-se a jogar Monopólio com as notas roubadas. A pilhéria saiu-lhes cara: as impressões digitais deixadas nas notas serviu, mais tarde, para ajudar decisivamente na sua condenação.
Às primeiras horas do dia 8 de Agosto, os larápios ocuparam os seus postos no lugar onde a emboscada teria lugar. De certa forma parecia uma cena do velho Oeste americano. Vestidos de empregados dos caminhos de ferro ingleses, montaram uma série de sinais sobre a linha e fortes holofotes para que a visibilidade fosse grande. Quando o condutor da locomotiva, Jack Mills, percebeu o frenesi que se montara, com um sinal vermelho pelo meio, diminuiu de imediato a velocidade até fazer com que a composição parasse por completo. David Whitby, um bombeiro, saiu do comboio e percorreu a linha na tentativa de perceber o que se passava. Em segundos viu-se atacado por um dos golpistas, um tipo volumoso chamado Buster Edwards. Não ofereceu resistência. Foi manietado e deixado nuns arbustos junto à linha. Mills, que tinha saído atrás dele não teve a mesma sorte: foi atingido na cabeça com uma barra de ferro galvanizado. O primeiro grande erro cometido pelo grupo que pretendia cometer um assalto limpo e sem vítimas. Logo em seguida as coisas complicaram-se ainda mais. Ronnie Biggs tinha trazido com ele um velho maquinista que deveria levar o comboio para uma zona menos visível onde pudessem pilhar o dinheiro à vontade. Mas o homem de Biggs estava ultrapassado e não fazia ideia de como pôr a funcionar a máquina que lhe fora entregue. A solução foi a de reanimar Mills e obrigá-lo a fazer o trabalho.
Em fuga
Mal conseguiram que o comboio estivesse no local escolhido, os patifes formaram um cordão humano e começaram a despejar os cem sacos cheios de dinheiro, transferindo-os para um camião. Em seguida, deixando Mills a esvair-se em sangue, tomaram o caminho de Leatherslade Farm onde ficariam escondidos até que a confusão acalmasse. O problema é que o rombo nas finanças do Royal Mail era demasiado grande para que a Scotland Yard perdesse tempo. Malcolm Fewtrel, superintendente chefe do Buckinghamshire Police Criminal Investigation Department chegou ao local do crime às 5 horas da manhã. Era um daqueles polícias parecidos com buldogues: onde ferrava os dentes não largava mais. Os seus homens deitaram mãos ao serviço e recolheram de imediato todos os testemunhos possíveis. Conhecedor profundo das ligações criminosas de alguns dos suspeitos, não tardou a tecer uma teia em redor do grupo de alarifes. Rapidamente, os nomes dos elementos da corja foi tornado público e espalhado aos quatro ventos pelos jornais: Bruce Richard Reynolds, o Napoleão, 31 anos; Douglas Gordon Goody, 33 anos; Charles Frederick Wilson, o Charlie Chas, 32 anos; Ronald Christopher Edwards, o Buster, 32 anos; Bryan Arthur, 32 anos; Ulsterman (o pseudónimo de dois suspeitos até aí sem provas concretas de ligação ao roubo, Patrick McKenna ou Sammy Osterman); Roy John James, a Fuinha, 28 anos; Jonh Thomas Daily, o Paddy, 32 anos; Henry Thomas Smith, também conhecido por Bill Flossing Jennings, idade desconhecida; James Edward White, o Jimmy, 43 anos; Alf Thomas, idade desconhecida; Roger John Cordrey, 42 anos; Robert Welch, o Bob, 34 anos; Thomas William Wisbey, o Tommy, 33 anos; James Hussey, o Big Jim, 31 anos; Danny Pembroke, também conhecido por Frank Monroe, 27 anos;Ronald Biggs, o Ronnie, 34 anos; Stan Agate, 67 anos, o ultrapassado maquinista substituto. Não havia dúvidas que a polícia trabalhara bem e depressa. O grupelho deixou de sentir seguro na quinta. Espalharam-se numa fuga atarantada.
Charlie Wilson e Ronnie Biggs foram os primeiros a serem apanhados, mas protagonizariam, mais tarde, fugas espetaculares das cadeias onde tinham sido encarcerados. Wilson conseguiu chegar a Montreal, no Canadá, onde levou uma vida tranquila até ser detetado por causa de uma chamada telefónica feita pela sua mulher para os pais, em Inglaterra. Buster Edwards fugiu para o México, mas não tardou a entregar-se. Bruce Reynolds andou a monte durante cinco anos. Primeiro viveu igualmente no México, com a mulher Angela e o filho Nick (que viria a tornar-se um músico conhecido por compor o fundo musical da série Os Sopranos), gastou à bruta as 150 mil Libras que conseguira trazer consigo na fuga, regressou à Europa, tentou arranjar trabalho em França e, num momento de desistência, voltou para o Reino Unido onde, retomando os seus contactos fora da lei, se condenou a ser apanhado em 1968, em Torquay, e condenado a 25 anos de prisão. A maioria dos que caíram sob a alçada da justiça sofreram penas entre os 20 e os 30 anos. Jack Mills, que morreu em 1970, vítima de leucemia, sobreviveu ao violento golpe na cabeça, pelo que não houve mortos a lamentar e a carregar ainda mais as fortes penas aplicadas aos assaltantes.
Nunca existiu uma certeza absoluta sobre a quantidade de dinheiro roubada ao Royal Mail. O passar dos anos arredondou a maquia para os 2,6 milhões de Libras, ao mesmo tempo que a imprensa e a Scotland Yard iam apresentando números exatos mas diferentes: 2,631,684 ou 2,595,997. Seja como for, um assalto único com um impacto transcendente. O facto de as três carruagens da frente não estarem, como habitualmente, vigiadas por membros da segurança da companhia fez crer, durante muitos anos, que haveria uma toupeira nos caminhos de ferro ingleses e que o facto não sucedera por mero acaso. Um dos mistérios que ficou dependurado até hoje.
Uns e outros
Apesar de, durante muito tempo, Reynolds ter sido considerado o mestre pensante do assalto ao comboio-correio, e ter pago essa conta com uma condenação bem pesada, a Scotland Yard veio, uns anos mais tarde, a suportar uma teoria diversa. Para os investigadores, teria sido Douglas Gordon Goody o verdadeiro mestre do crime. Nascido em Putney, Londres, em Março de 1930, ainda vivia em casa dos pais quando se juntou ao enigmático Ulsterman e projetou toda a mecânica da operação, não fazendo questão de retirar louros dela e deixando o vaidoso Reynolds assumir o papel de manda-chuva. Depois de ter saído da prisão em 1975, Gordon foi viver para Espanha e abriu um bar na praia de Mojacar, perto de Almería, chamado Chiringuito Kon Tiki. Num documentário televisivo feito pouco antes de morrer, com 80 anos, divulgou que Ulsterman era, de facto, Paatrick McKenna. Mas a afirmação foi repudiada pela família de McKenna que nunca fora anteriormente associado a qualquer tipo de malfeitorias e morreu pobre como Job. Reynolds manteve a sua versão. E acrescentou que McKenna só morreu pobre porque, num ataque de arrependimento, resolveu dar a sua parte do dinheiro do assalto a uma igreja católica onde costumava expiar os seus pecados.
Nos dias que se seguiram ao assalto, várias foram as pessoas que surgiram nas esquadras com malas ou sacos contendo dinheiro que os fugitivos se viram obrigados a deixar para trás. No total, foram recuperadas cem mil e novecentas Libras escondidas em arbustos de jardins ou em caixotes do lixo. A verdade é que o assalto fora um golpe terrível em termos financeiros e muitos milhares e milhares de Libras desapareceram por completo.
Curiosamente, Ronald Biggs, que teve uma participação muito discreta no roubo do comboio – coube-lhe recrutar o maquinista substituto, algo que fez tão mal que o golpe ia fracassando por sua causa – tornou-se a face mais famosa do golpe. Nascido em Stockwell, Londres, no dia 8 de Agosto de 1929, teve o currículo manchado logo que perfez 18 anos. Depois de se ter alistado na Royal Air Force em 1946, foi dispensado desonrosamente por tentativa de deserção após ter assaltado uma farmácia das redondezas do quartel. Iniciou aí uma vida de pilha-galinhas, entretido em pequenos assaltos que lhe valeram a encarceração na cadeia deWandsworth onde veio a conhecer Bruce Reynolds. De novo em liberdade, tentou emendar-se. Casou com Charmiant Brent Powell, de 21 anos, e optou pela profissão de carpinteiro. Em 1963, já pai de três filhos, Biggs estava teso como um carapau. O trabalho que levava a cabo na casa de um antigo maquinista, Stan Agate, também conhecido por Old Pete, não lhe dava para pagar os juros de um empréstimo que pedira para comprar um casa. Foi Stan, que nunca foi apanhado, que introduziu Ronnie no grupo de assaltantes e este retribuiu com a sua chamada para substituir da forma que já se viu o maquinista do comboio-correio.
Depois de ter sido apanhado pela polícia, Biggs cumpriu 15 meses na cadeia de Wandsworth. No dia 8 de Julho de 1965, escalou uma das paredes da prisão à custa de uma corda e desapareceu na noite. Poucos dias depois, Charmiant encontrava-se com ele em Paris. Ronnie escapara primeiro para Bruxelas e usou 40 mil Libras das 150 mil que carregava consigo numa operação plástica à cara de maneira a ficar irreconhecível. Em 1966 estava na Austrália com toda a família. Sabendo que a Interpol estava no seu encalço, mudou de país e de continente e instalou-se no Brasil. Mrs. Biggs ficou na Austrália e ambos acordaram no divórcio em 1974. O facto de o Brasil não ter acordo de extradição para o Reino Unido, sobretudo se o criminoso fosse pai de uma criança nascida em território brasileiro – Biggs fora pai de um garoto com Raimunda de Castro, sua segunda mulher – permitiu-lhe levar uma vida tranquila, dedicada à música, tendo gravado com diversas bandas e compositores brasileiros, cantando uma música com os Sex Pistols (No One is Innocent), divertindo-se a receber figuras famosas como o jogador de futebol Stanley Matthews e a conceder entrevistas a vários jornais britânicos, fotografado com um ar sorridente, com as praias do Rio de Janeiro como pano de fundo. Em 2001, ainda com 28 anos de pena por cumprir, Biggs revelou publicamente que iria regressar a Inglaterra. A viagem foi burlesca: feita num avião privado, pago pelo jornal Sun, que ainda lhe ofereceu 20 mil Libras pelo exclusivo da sua detenção. Com a saúde a degradar-se a um ritmo devastador, Ronnie viu três tentativas de libertação por compaixão serem recusadas. Desabafou: «Even in Brazil, I was a prisoner of my own making. There is no honour to being known as a Great Train Robber. My life has been wasted». Uma sequência de três AVC deixou-o sem conseguir andar nem falar. No dia 6 de Agosto de 2009 foi-lhe concedida autorização para prisão domiciliária. Estava à beira dos 80 anos. Muitos foram os que reclamaram da medida, considerando que tudo não passava de teatro levado à cena por Biggs. A verdade é que Ronnie melhorou o suficiente para sobreviver mais quatro anos, assistir ao funeral do seu capanga Bruce Reynolds e publicar uma autobiografia – Ronnie Biggs: Odd Man Out – The Last Straw. Depois, finalmente morreu. Dia 18 de Dezembro de 2013 – 46 anos depois do assalto ao comboio-correio Glasgow-Londres.