Na minha frente senta-se um rapazinho que não ri. Um sorriso simples, de vez em quando, na sua figura séria, concentrada. João Silva: não poderia ter nome mais português. Juanito: não podia ter alcunha mais espanhola. Uma vida entre cá e lá desde que nasceu em Monforte, há 22 anos, e quis ser toureiro, toureiro a sério, não apenas lidador mas matador, algo que Portugal não pode dar-lhe.
Monforte, ali à beira da fronteira da liberdade. Monforte, vizinha de Fronteira, onde também andou na escola; o pai, Hugo, bandarilheiro; a mãe em cuidados extremos, Ana, também connosco numa conversa que devia ter sido uma entrevista mas foi apenas conversa, perguntas e respostas encadeadas em diálogo, cada um procurando o caminho do outro, como na arena, afinal, mas aqui sem morte, apenas curiosidade, frente a frente jornalista e matador de alternativa tomada em Badajoz, com Antonio Ferrera de padrinho e Cayetano de testemunha. Palavras ao encontro de palavras, frases encadeadas em frases. Era preciso Badajoz para que Juanito pudesse ser, um dia, matador. Aos 13 anos partiu, sozinho, na senda incontrolável de uma voz que o comandava por dentro. Estudava de manhã, aprendia à tarde a arte de dominar os novilhos. O olhar é penetrante. Não perde um pormenor do que vai acontecendo ao longo do diálogo. Tão jovem, ainda. De uma juventude inquietante porque abarca consigo o mundo inteiro, desde este início de tarde em Alcácer do Sal à Cidade do México que o espera daqui a pouco para três meses de contrato antes de regressar a Espanha e preparar a época da sua consagração.
Como é que alguém tão estreito, tão leve, se impõe aos monstros negros que surgem na sua frente como pesadelos? 700, 750 quilos. «O meu corpo é fibra, só fibra. Trabalho-o todos os dias em corridas, sobretudo de montes, dez quilómetros pelo menos, todas as manhãs, e depois à tarde, com o meu preparador. É fundamental. Só assim posso estar pronto no caso de algo correr mal, no caso de uma colhida…». A conversa vai ser também sobre o medo. Homem e fera. «Negro toro, nostálgico de heridas/corneándole al agua sus paisajes/ revisándole cartas y equipajes/ a los trenes que van a las corridas», escreveu Rafael Alberti em El Toro de la Muerte. Morte na arena. A excitação do sangue para lá das barreiras. Vejo imagens de Juanito enganando a besta de joelhos fincados no chão, o rodopio da capa, o touro em seu redor não atinando com o esconderijo do toureiro por detrás das reviengas. Uma fuga a vermelho e amarelo, capa e contracapa. Uma fúria que fumega das narinas. E vai e vem. Parece um tango. Estão quase juntos, quase íntimos. O traje de luces contrariando a pele preta de azeviche. Gritos e aplausos. O animal cansado, vencido. Não descobriu o lugar por onde passar para além da capa que o confunde. E Juanito levanta-se do terreno seco, da terra batida, desdobra as pernas, estica-se a todo o comprimento do seu tamanho e, de repente, é muito maior do que a realidade da sua altura. Domou o bicho e os homens que os rodeiam. Para mim, o resto é silêncio.
Sombra da morte
– Precisei de Espanha porque em Portugal não posso matar o touro. Fiz uma escolha. Quero ser um dos grandes. Quero triunfar como matador. Mas espera! Espera! Não é a morte que me move. Não é a morte do touro. Antes de ser um matador serei sempre um toureiro. Não vou para a arena com o objetivo de matar o touro. A morte do touro é apenas a consequência de um espetáculo que ambos oferecemos ao público que nos rodeia. Um espetáculo que tem morte dentro dele, é certo, mas que não foi construído para obedecer à morte. A morte também pode ser a minha morte. É o fim de uma coreografia, de todo um conjunto de movimentos que ambos vamos construindo ao longo da lida. Tenho na minha mão uma arma, que é a espada, o touro tem consigo as armas dos cornos. Eu sei que arrisco a minha vida sempre que estamos frente a frente. E isso joga com as emoções. Não só as nossas, toureiro e touro, mas com as de todos os que se sentam em nosso redor para nos verem atuar. Nenhum de nós entra na arena com a fixação de matar apenas por matar. Para mim, isso seria a negação daquela que considero a minha arte. Vou interpretar o meu papel, tudo aquilo para o que trabalhei durante muitas horas, para o que me preparei física e mentalmente. Sabendo dos riscos, mas também conhecendo profundamente o que preciso de fazer.
Não sobram dúvidas que, em castelhano, a tourada é motivo de poema. Desde o famoso trecho do conde Fernán González datado de 1250. Manuel Machado reduziu-se a frases curtas: «Una nota de clarín/desgarrada/penetrante/rompe el aire con vibrante puñalada…/Da principio el primer espectáculo». É disso mesmo que Juanito fala. Do espetáculo. De um espetáculo que para lá da fronteira que ele atravessou definitivamente com apenas 13 anos tem sobre si o peso formidável da morte. Do touro? Sim. E também do toureiro, como sucedeu com Manolete e Islero, o miúra que o enfrentou, descobriu-lhe o ponto fraco da artéria femoral. Um golpe de baixo para cima, rasgou-lhe a perna e desfê-lo em sangue. Não, nem sempre, como escreveu Alberti, o touro está nostálgico de feridas. Por vezes está ansioso para ferir o adversário que o baralha a capote, rodopiando em duas pernas à sua frente, num misto de valentia e de loucura. E por isso o mesmo Rafael escreveu também: «De sombra, sol y muerte, volandera/grana zumbando, el ruedo gira herido/por un clarín de sangre azul torera/Abanicos de aplausos, en bandadas/descienden, giradores, del tendido/la ronda a coronar de los espadas/Se hace añicos el aire, y violento/un mar por media luna gris mandado/prende fuego a un farol que apaga el viento».
João Silva, Juanito, conhece Alberti:
– Certa vez, num jantar, houve alguém que se levantou para recitar poemas dele que tinham o toureio como fundo e fiquei verdadeiramente comovido.
«Esse miúdo tem Duende», dizem de Espanha, onde o adotaram. Ele que já esteve na arena com mestres como El Juli ou Miguel Ángel Perera. ODuende de Lorca. «Quem se encontra na pele do touro que se estende entre os Júcar, Guadalete, Sil ou Pisuerga (não quero citar as torrentes junto às ondas cor de juba de leão que agitam o Plata), ouve-se dizer com certa frequência: ‘Este tem muito duende’. Manuel Torres, grande artista do povo andaluz, dizia a alguém que cantava: ‘Tu tens voz, conheces os estilos, mas jamais triunfarás, porque tu não tens duende’. (…) Sons negros, disse o homem popular da Espanha, e coincidiu com Goethe, que define o duende ao falar de Paganini, dizendo: ‘Poder misterioso que todos sentem e nenhum filósofo explica’».
Juanito tem Duende. Ele cujo corpo estreito e esculpido todos os chastres querem vestir com o traje de luces que brilhará quando o sol estiver no céu exatamente às cinco em ponto da tarde. O brilho é dele, não das lantejoulas.
– Uma vez disse-me: mãe, se eu morrer na arena não fiques triste porque morrerei feliz, confessa Ana.
E ele, interrompendo:
– Ora mãe, quando disse isso ainda era muito miúdo.
Não quer morrer na arena El Niño com Duende. Quer sair em ombros no ponto mais alto do seu triunfo.
– É mais forte do que eu, continua a mãe. Quando ele tomou a alternativa, não aguentei. Tive de sair e vir sentar-me cá fora. Não era capaz de aguentar a angústia de o ver ali, correndo risco de vida.
E Juanito, no consolo possível:
– Sempre te disse que não olhes para mim como filho enquanto eu estiver na arena.
Como é que uma mãe olha para um filho sem ver o filho? Digam-me que eu não sei.
Juanito tem o privilégio de se preparar em Ronda, na Quinta dos Ordoñez. Ronda: esse lugar único daAndaluzia, à beira do desfiladeiro profundo de El Tajo, a garganta que tem, no fundo, o rio Guadavelín.
– Às vezes faço uma caminhada longa. Desço até lá abaixo e depois tomo o carreiro que sobe o monte, íngreme. A vista é linda. Serve para me concentrar para o trabalho que se segue.
Frente à praça há a estátua de um touro. A praça é antiga como a noite dos tempos. Foi construída em 1785 e berço do toureio a pé sob os gestos de Pedro Romero, no século XVIII. Só tem lugar, em redor, para cinco mil pessoas, mas a arena é a maior de Espanha, 66 metros de diâmetros, mais seis metros do que Las Ventas, em Madrid. «Plaza de piedra de Ronda/la de toreros machos:/pide tu balconería/una carmen cada palco;/un Romero cada toro,/un Maestrante a caballo/y dos bandidos que pidan/la llave con sus retacos», escreveu Fernando Villalón.
Juanito em Ronda sonhando com Madrid: «Todos os dias, junto do lugar onde está sepultado Dominguín, me preparo para o dia de, finalmente, subir ao palco em Las Ventas. Será um grande dia da minha carreira, lidar em Madrid. Eu sei que irei lá chegar e sei que apresentarei lá algo de novo, algo meu, algo que me distinga dos outros. Sei porque trabalho muito e fortemente para isso».
– Se tivesses de escolher, seria Las Ventas o lugar do teu máximo triunfo?
– Não. Gostava de triunfar em Bilbao.
– Porquê Bilbao.
– A praça Vista Alegre é a praça mais importante do norte de Espanha. Sempre cheia de um público muito particular e muito sensível. Só os grandes toureiros triunfam ali. Madrid é algo de diferente. É, se quiseres, o ponto derradeiro de tudo o que tenho feito até aqui e vou continuar a fazer. É o objetivo final de tudo aquilo que tenho pensado e imaginado para a minha lide. Com vontade de criar uma surpresa e demonstrar e afirmar a qualidade do toureio português.
O estudante de touros
O entrevistado estuda o entrevistador com olhares atentos que brilham de quando em vez. É aí que se percebe a sua necessidade perfeccionista. Está à vontade, mas não deixa, por isso, de medir as palavras, de confirmar que está a ser bem entendido, bem interpretado. Ele é, também, um estudante de touros.
– Sei tudo sobre os touros que irei lidar. Preparo-me muito para isso. Mal sei qual é o bicho e a sua ganadaria vou procurar os seus antecedentes em, pelo menos, duas gerações. Aliás, conheço pelo menos duas gerações de touros de todas as ganadarias de Espanha. Quero saber de onde vem, que sangue lhe corre nas veias, que tipo de características vou encontrar quando o enfrentar. E isso estuda-se através da genealogia. Os bichos herdam muitas das movimentações e dos tiques dos antepassados. Vale a pena perceber isso no momento de enfrentá-los.
A tarde corre. Fascina-me toda a mecânica de pensamento de um rapazinho sedento de triunfos mas sem pressas. Sabe o que fazer, passo a passo. Sabe onde estará, mês a mês, dia a dia. A paixão consome-o mas, por cima dela, reina uma tranquilidade quase fria de calculismo. Tem vindo a somar triunfos, como naquela tarde, em Herrera del Duque, Badajoz, na qual partilhou a arena com Emilio de Justo e El Cid e cortou três orelhas. Em Almería foi colhido a sério. O corno da besta rasgou-lhe a anca.
– Já tinha sido colhido várias vezes como novilheiro, mas é muito diferente quando se está numa corrida. Enfrentamos animais de 700 quilos, com uma força bruta. Senti a dor, mas olhei para o meu corpo e percebi que estava pronto para continuar. Levantei-me e fingi que nada se passara. Só assim se pode sobreviver neste mundo do toureio.
– E se fores colhido lá no teu sonho de Las Ventas?
– Saberei levantar-me. Como sei exatamente o que irei fazer, os passes que irei executar. Sou um criador. É isso que quero fazer em Madrid: mostrar a minha criação. Se for colhido, estou seguro de que irei reagir como se estivesse noutro lugar qualquer, e continuar a lidar o touro dentro dos parâmetros que estou a construir para esse momento especial. Estou pronto. E, nessa altura, ainda mais pronto. Só irei para a enfermaria se já for impossível levantar-me!
Na praça de touros de Alcácer do Sal, fico entre barreiras a vê-lo posar para as fotos do Miguel. Fervem-me nos ouvidos as palavras de Federico Garcia Lorca que afastam para longe a terrível mosca do aborrecimento. A Captura e a Morte: «Às cinco horas da tarde./Eram cinco da tarde em ponto./Um menino trouxe o lençol branco/às cinco horas da tarde./Um cesto de cal já prevenida/às cinco horas da tarde./O mais era morte e apenas morte/às cinco horas da tarde».
Como pensar em morte perante a visão de tão absoluta juventude? E como não pensar em morte se ela é o resultado final da dança entre o touro e o toureiro?
– Eu não quero morrer! Sou jovem e adoro a vida! Mas tenho sempre dentro de mim aquela linha vermelha que posso vir um dia a ultrapassar. Nós, os toureiros, vivemos dentro dessa realidade. É uma escolha. Tal como lido com o touro, lido também com a morte. Como já disse, para mim uma tourada não é apenas um caso de vida e de morte. Em Espanha chamam-lhe uma liturgia. Eu considero-me um participante num espetáculo muito belo, ao qual quero acrescentar mais beleza e, sobretudo, surpresa, através dos passes que crio e vou aperfeiçoando. O tal espetáculo que acaba na morte, do touro geralmente, às vezes do toureiro, mas no qual a morte é a consequência de todos os movimentos que formos interpretando.
E, com a palavra morte, a poesia de Lorca continua a vibrar-me pelo corpo nessa magia de entender a suprema vontade do homem de por em causa a própria vida: «Um ataúde com rodas é a cama/às cinco horas da tarde./Ossos e flautas soam-lhe ao ouvido/às cinco horas da tarde./À sua frente o touro já mugia/às cinco horas da tarde./O quarto irisava-se de agonia/às cinco horas da tarde./A gangrena de longe já se acerca/às cinco horas da tarde./Trompa de lis pelas virilhas verdes/às cinco horas da tarde./As feridas queimavam como sóis/às cinco horas da tarde,/e as pessoas quebravam as janelas/às cinco horas da tarde./Ai que terríveis cinco horas da tarde!/Eram as cinco em todos os relógios!/Eram cinco horas da tarde em sombra!».
A caminho do México
– Vais agora cumprir um contrato no México. Afinal, o que é que o México pode acrescentar à tua carreira? Dinheiro?
– Não. Não vou por dinheiro. O México vai dar-me vivência. Outro tipo de sensações, outro género de desafios que me permitam crescer como toureiro. Lá os touros investem mais devagar, pode servir-me para preparar outras coreografias. E este é um tempo de descanso, na Europa. Vou trabalhar uns meses para surgir bem no início da próxima época. Para aplainar o meu caminho para Las Ventas. Ficarei por lá entre novembro e janeiro. Vou certamente aproveitar bem esse tempo.
-Las Ventas é, decididamente, o lugar onde queres triunfar.
– Sim. Mas também em França.
– Em França? Em França o toureio é muito restrito.
– Sim. Sobretudo após esta fase de pandemia decresceu muito e os movimentos anti-taurinos aproveitaram para avançar com reivindicações que tornam as corridas ainda mais difíceis. Mas na zona que vai de Arles até ao País Basco francês, o público é muito exigente. Gostava de ter a oportunidade de me exibir lá. Apresentar o meu trabalho e perceber como será recebido.
-Por mim recuso-me a entrar nesse mundo de ódio e maledicência que são as caixas de comentários dos jornais. Autênticas fossas a céu aberto. Não tenho qualquer consideração por quem, escondido no anonimato ou sob um nickname qualquer, vomita alarvidades que não passam de insultos baratos. Neste jornal, cada um tem o seu mail por debaixo da assinatura. Só tenho consideração por quem me contacta por lá, mesmo que discordando do que escrevo. Mas não tenho dúvidas de que cada vez que se traz o mundo dos touros à baila, há um grupelho que se escama. Não vai ser diferente com esta entrevista.
– Pois. Mas eu dependo de mim, do que penso, do que imagino, e não daqueles que me rodeiam e das suas opiniões. Estou demasiado focado no meu trabalho para me dispersar por caminhos como esse. Respeito a opinião de toda a gente, mas considero-me um criador. Um criador de coreografias, de espetáculos que envolvem os touros e os bandarilheiros que trabalham comigo e com os quais preparo as minhas entradas em cena. Não vou deixar, de maneira nenhuma, que as opiniões dos que são contra as touradas interfiram na minha necessidade de concentração.
-E essa concentração, como a consegues?
– Na solidão!
– Isso é duro.
– Mas necessário. Passo muito tempo sozinho, numa solidão que me faz ficar completamente focado no meu trabalho. Dizem que é na solidão que se preparam as grandes obras e eu concordo. Vivo instalado no campo, com harmonia em meu redor, e tive uma psicóloga que me ensinou a arte da mente em branco…
– Esvazias-te?
– Sim. Deixo tudo de lado, tudo à distância, para ficar sozinho e pensar naquilo que preciso verdadeiramente de pensar: como trabalhar para ser cada vez melhor, para conseguir surpreender aqueles que vão ver-me tourear, para ganhar forças para a tal batalha, para a tal liturgia que é a minha vida.
– Queres mesmo profundamente ser um dos grandes matadores de todos os tempos.
– Claro! Para ser mais um tinha continuado a estudar.
Mergulhado em si mesmo
João Silva. Juanito para os espanhóis que o admiram. Basta ver o que os jornais têm escrito sobre ele. Não os nossos, alguns por ignorância, outros por aquele medo que invadiu Portugal de se ser agredido pelos que pensam de forma diferente. Falam da violência das touradas, mas não falam da violência das injúrias e dos ultrajes daqueles que se dizem defensores de uma Democracia muito própria na qual vale afrontar e apoucar os que não seguem as suas cartilhas da forma mais reles e mais baixa que um cérebro caliginoso possa conceber. Levantar-se-ão sempre vozes contra qualquer coisa. Distinguimo-las pelo veneno abjeto que vem preso ao eco que propagam.
«Juanito eres un torero portugués que se ha convertido en un referente para los jóvenes becerristas, ya que dejó su país natal y emigró a Badajoz con 13 años para formarse como torero», escreveu-se numa reportagem da EFE, a agência noticiosa espanhola, sobre ele. «Tampoco se olvida de su tierra lusa, por lo que acudirá a Lisboa con “mucha ilusión y con toda la responsabilidad”, insistió el torero que se siente portugués de raíces, aunque tiene “el corazón extremeño”, concluyó».
Juanito atuou no Campo Pequeno no dia 10 de setembro. Foi infeliz neste regresso a casa, colhido na lide do terceiro toiro da noite quando saía ao quite, a capote, durante a lide de Manuel Dias Gomes. Nada de grave. Fica-lhe na memória para quando voltar a Lisboa. O touro esperará por ele, como garantiu Alberti: «Nostálgico de um homem com espada/De sangue femoral, gangrena feia/Já ninguém há de deter-te o passo forte».
Já ninguém detém o passo forte de Juanito a caminho das estrelas. E ele sabe-o melhor do que ninguém. Vi no brilho dos seus olhos, logo abaixo das sobrancelhas carregadas que lhe dá um ar mais velho e sabedor mas mais não é do que uma indisputável persistência, o lugar onde quer viver: no Escalafón taurino onde continuam a habitar os José Gomez Ortega (Joselito), CayetanoOrdoñez (El Niño de La Palma), Luis Miguel Dominguín, Manuel Jiménez Moreno (El Chicuelo), Manuel Rodríguez (Manolete), Manuel Benitéz (El Cordobés), Francisco Rivera (Paquirri), José María Dolls Abellán (El Manzanares) ou Julián López (El Juli).
Mas se lhe peço um nome, ele dá-me José Tomás Román Martín, El Torero de Madrid, talvez a última grande lenda do toureio espanhol, que viu abrir-se na sua frente por sete vezes La Puerta Grande de Las Ventas.
– Estudei muito a sua forma de tourear. É um dos meus favoritos. Mas não quero comparar-me a ele. Não quero ser como ele. Quero ter a minha própria forma de tourear, levar para a arena as minhas ideias.
– E o medo? Fala-me do medo.
– O medo invade-me mais nos momentos em que estou sozinho do que quando estou na arena. À frente de um touro sinto-me livre. O medo que tenho não é do animal, é do fracasso, de não conseguir agradar o público. De não conseguir dar a quem me vê algo de diferente.
– Tens a necessidade da surpresa.
– Tenho. Mas mais do que querer surpreender os outros quero surpreender-me a mim próprio.
Juanito e o seu Duende. À espera que o Duende chegue e descubra, como por toda a Andaluzia, rocha de Jaén e búzio de Cádiz, aquilo que sai num instinto eficaz. «O maravilhoso cantador El Lebrijano, criador da Debla, dizia: ‘Nos dias em que canto com duende não há quem possa comigo’; a velha bailarina cigana La Malena exclamou um dia, ao ouvir Brailowsky tocar um fragmento de Bach: ‘Olé! Isso tem duende!’, e aborreceu-se com Glück, com Brahms e com Darius Milhaud. E Manuel Torres, o homem com maior cultura no sangue que conheci, disse, escutando o próprio Falla tocar seu Nocturno del Generalife, esta esplêndida frase: ‘Tudo o que tem sons negros tem duende’. E não há nada mais verdadeiro».
– Não posso ser eu a falar do meu talento ou da falta dele. Nem sequer penso nisso. Passo demasiado tempo numa batalha interna que me exige um esforço total para ser melhor a cada dia. Quero, isso sim, a liberdade de ser diferente. Os outros que escrevam ou falem do meu toureio. Eu preciso do meu tempo. É fundamental para o que quero inventar a cada dia.
– E a fé? Fala-me da fé.
– Sou crente. Rezo. Não há praça de touros que não tenha uma capela. Mas tenho a necessidade de distinguir a fé de manias. Há quem tenha manias, repita gestos, tiques. Isso só serve para tirar o foco daquilo que está para acontecer. A minha fé não envolve manias. Uma fé de apenas acreditar. A diferença entre a fé e as manias é muito estreita. E as manias só servem de desculpa para os fracassos.
Um céu de sol e sombras sobre Alcácer. «O meu grande orgulho será o momento em que ficar na recordação das pessoas que me vão ver. Que o meu trabalho lhes agrade e saiam da praça com a satisfação que lhes devo. Tive a sorte de lidar com touros desde criança e de poder seguir a profissão que escolhi. Agora cabe-me a missão de ser alguém no mundo em que vivo». Há nele o espírito da terra. E um movimento de seivas pelas veias. Em castelhano, o touro revive nos poemas. «Como el toro me crezco en el castigo,/la lengua en corazón tengo bañada/y llevo al cuello un vendaval sonoro./Como el toro te sigo y te persigo,/y dejas mi deseo en una espada,/como el toro burlado, como el toro», rimou Miguel Hernández. Juanito cresceu a conhecer os touros…