Rui Veloso. Foi numa cave no Porto que nasceu o pai do rock português

Hoje é considerado o ‘pai do rock português’, mas o caminho de Rui Veloso, o autor de alguns dos mais consagrados discos da música portuguesa, como Ar de Rock e Mingos & Os Samurais, foi longo e marcado pela mãe, que levou, em segredo, músicas como ‘Chico Fininho’ à Valentim de Carvalho.

Quantos jovens portugueses não terão feito serenatas com a música A Paixão (Segundo Nicolau da Viola), quantos não terão ouvido os seus primeiros riffs de blues rock na Chico Fininho ou quantos não se terão apaixonado a dançar um slow com a Não há estrelas no céu?

Todas estas canções são pilares do universo rock da música portuguesa e fazem parte do espólio de uma importante instituição nacional: Rui Veloso. 

O ‘pai do rock português’, ou ‘tio’ como alguns especialistas preferem corrigir, passou de ser um jovem apaixonado pelos blues de B.B. King, Muddy Waters ou Eric Clapton para se sagrar um dos mais importantes músicos de Portugal, com uma influência que ainda hoje é sentida em músicos como Miguel Araújo.

Agora, a carreira do artista vai ser celebrada em quatro espetáculos marcados para este fim de semana (13 e 14 de novembro) na Super Bock Arena, no Porto, e a 26 e 27 de novembro no Campo Pequeno, em Lisboa, que pretendem assinalar o 40º aniversário da sua carreira, onde estarão presentes convidados como Maro, Miguel Araújo, Dany Silva, Paulo Flores & Manecas Costa.

Apesar do jovem magricelas de bigode que escrevia músicas descomprometidas como Rapariguinha do Shopping ou Ai Quem Me Dera A Mim Rolar Contigo Num Palheiro já se encontrar bem distante, o seu espírito continua bem presente dentro de Veloso e continua a ser uma lenda que vale a pena recordar.

O músico que cantou sobre todos nós

Rui Manuel Gaudêncio Veloso nasceu em Lisboa no dia 30 de julho de 1957, mas muito cedo se mudou para o Porto, com três semanas de vida, e, nesse local, ganhou um sotaque que se tornou indissociável ao músico, apesar de ter atenuado com o passar dos anos, especialmente depois de ter regressado à capital. 

Filho do engenheiro e ex-presidente da Câmara Municipal do Porto, Aureliano Capelo Veloso, e de dona Emília Veloso, o jovem Rui desde cedo mostrou interesse e uma inclinação para a música, tendo aprendido a tocar harmónica aos seis anos. Mas foi com a guitarra ao peito, que aprendeu de forma autodidata, e a emular os grandes mestres do blues, que descobriu a sua vocação.

Pouco tempo depois, viria a formar a sua primeira banda, Magara Blues Band, juntamente com Mano Zé no baixo e Manfred Minneman no piano, onde interpretam canções em inglês aos fins de semana nos bares e casa de amigos. 

Em 1976, Rui iria conhecer um homem que viria a marcar a sua carreira de forma muito profunda, o compositor e letrista Carlos Tê, escritor de alguns dos maiores êxitos do músico, como Chico Fininho ou Máquina Zero.

Juntos formaram uma das parelhas mais bem-sucedidas em Portugal que chegou a ser comparada a John Lennon e Paul McCartney dos Beatles (mas com um sotaque nortenho e com uma apreciação pelo café com um bocado de bagaço).

Os parceiros rapidamente começaram a criar músicas e, reza a lenda, que os primeiros frutos desta parceria, gravados em cassete, foram levados pela sua mãe, em segredo, que aproveitou a ausência de Veloso durante uma viagem para o estrangeiro, para levar estas gravações aos Estúdios da EMI – Valentim de Carvalho para perceber se as canções do filho tinham futuro. 

Os produtores do estúdio ficaram maravilhados com as bobines que ouviram, onde já estava incluído a Chico Fininho e diversas canções em inglês. 

Então surgiu o convite para Rui abandonar a cave dos seus pais e começar a gravar mais músicas, mas foi-lhe imposto um objetivo pelo estúdio: tinha que deixar as canções em inglês e gravar mais nove canções como Chico Fininho.

A história do Chico Fininho, o ‘freak da Cantareira’, que gingava «pela rua ao som do Lou Reed», foi a carta de apresentação de Rui Veloso e o que fez tantas pessoas interessarem-se pela sua música, no entanto, quando foi criada, esta não passava de uma piada entre Rui Veloso e Carlos Tê. 

«Costumávamos ir para a cave dos meus pais depois de fumar umas coisas e cantávamos todos o Chico Fininho e riamo-nos muito», recordou Rui Veloso no programa Alta Fidelidade. «Toda a letra desta canção é um estereotipo humorístico de uma figura que eu e o Tê conhecemos, pessoas que conviviam connosco e que andaram connosco na faculdade», explica, revelando que existia mesmo «um Chico Fininho». 

«Havia um tipo que era o Chico Fininho, que era danado para a porrada e muito magrinho, mas cuidado com ele», disse, enquanto o apresentador Vasco Palmeirim se ria às gargalhadas.

Mas, apesar de em 2020 Rui Veloso se rir sobre os tópicos desta canção, na altura em que foi publicada causou grande controvérsia pelo conteúdo explicito da canção, seja pelos palavrões utilizados na letra, «Segue o seu caminho / Com merda na algibeira», como também pela menção a uma grande quantidade de drogas, como o speed, heroína ou o ácido.

«Há vinte anos, a descrição do Chico Fininho era tão vívida, a canção era tão sugestiva, que muitos julgavam que ele era alguém de carne e osso, que com sorte poderia ser encontrado num qualquer café do Porto, sendo detetável pela sua indumentária ou pelo seu inconfundível calão urbano […]. O próprio Rui Veloso teve alguma dificuldade em impor uma personalidade própria, já que muitos chegaram a suspeitar que o ‘freak’ fosse uma espécie de ‘alter ego’ do cantor, uma reencarnação que Veloso usasse para singrar no ‘underground’ citadino», escreveu Nuno Corvacho no Público, em 2000. «Mas, por irónico que pareça, o Chico Fininho é anterior à própria emergência de Rui Veloso no mundo do espetáculo». 

«O Chico Fininho não era ainda um heroinómano, embora andasse lá perto», explicou Carlos Tê, nesse mesmo artigo ao jornal português. «Não era aquele toxicodependente de andar para aí aos caídos que é hoje a imagem normal», acrescentando que «se o Chico Fininho ainda existir hoje, deve andar por aí a arrumar carros».

No entanto, Rui e Carlos abriam uma porta que era impossível de ser encerrada. Mesmo já existindo diversos grupos de rock em Portugal, desde o Quarteto 1111, ao Tantra, Psico ou Tempo, o seu primeiro disco, Ar de Rock (1980), que incluía a música do Freak da Cantareira, mas também êxitos como Rapariguinha do Shopping, Sei de uma Camponesa, Bairro do Oriente, Afurada ou Saiu para a Rua, com um instrumental mais assente no rock ‘n’ roll e no blues, mas também com uma linguagem mais acessível e contemporânea com os mais jovens, contagiou toda uma geração que cantarolava as música do duo de compositores e levou muitas pessoas para as suas caves e garagens para criar a sua própria música, como os Xutos e Pontapés, UHF ou os GNR. 

Mas isto seria apenas o início, ainda havia muita música para lançar cá para fora.

Revolução dos Samurais

Rui e Carlos andavam a marinar ideias para criar o seu próprio Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, um disco duplo conceptual onde abandonariam as suas personalidades e vestiriam a pele de personagens fictícias para contar a história de Mingos & Os Samurais, uma pequena banda suburbana do Grande Porto que atuava em salões de festas da província durante as décadas de 1960 e 1970, onde, através das vivências deste grupo, seria traçado o retrato da vida durante a ditadura e após a revolução do 25 de Abril.

Esta ideia existia desde 1982, mas apenas foi possível concretizar em 1990, depois de assegurarem a independência financeira devido ao sucesso que foi o álbum homónimo lançado em 1986.

Tematicamente, Carlos Tê queria criar um disco que falasse sobre as dificuldades sentidas durante a adolescência, sobre problemas políticos e que também criticasse a globalização do rock.

Para tal, Tê socorreu-se de inspirações cinematográficos, como Peggy Sue Got Married ou The Hunter, para pintar este álbum, com elementos muito visuais, e que explorava o passado dos portugueses e as represálias que os jovens portugueses sofreram depois de regressar da guerra, um sentimento espelhado na música No Dia em que o Meno Rock Morreu.

Todas estas questões, aliadas pela sensibilidade pop de Veloso, mais limado e adequado para o consumo familiar do que Ar de Rock, assim como uma apurada capacidade para misturar estilos, onde também surge influências de bossa nova ou jazz e do bom velho e fiel rock ‘n’ roll, tornaram o álbum Mingos & Os Samurais um dos mais bem-sucedidos de Portugal.

Mingos & Os Samurais, lançado em 1990, ficaria 24 semanas no topo das tabelas dos discos mais vendidos, graças a temas como Não Há Estrelas No Céu, O Prometido É Devido, A Paixão (Segundo Nicolau da Viola) ou Um Trolha d’ Areosa, chegando inclusive a atingir oito discos de platina, o que equivalia à venda de mais de 40 mil discos, mas «sobretudo no facto de Rui Veloso e Carlos Tê terem conseguido fazer deste disco um imenso espelho onde mais do que uma geração podia descobrir o seu reflexo», escreve a Blitz.

O sucesso do duplo álbum serviu para provar que o mercado português estava pronto para acolher uma nova geração de jovens bandas portuguesas de rock que iriam testemunhar grandes sucessos comerciais, nomeadamente, os Delfins, Resistência, Pedro Abrunhosa, Madredeus, Silence 4, enumera a revista portuguesa. 

Os que deixa e os que ficaram para trás

Rui Veloso é um homem que, ao longo da sua vida, sempre foi fiel aos seus mestres, tendo tido o privilégio de atuar ao vivo, em 1990, com o grande B.B. King, no Casino Estoril, tendo o Rei do Blues chamado o guitarrista de seu ‘filho português’, mas também com um grande mestre da guitarra portuguesa, Carlos Paredes.

No entanto, o mestre, que em entrevistas confessa que continua a ouvir este estilo musical e grandes artistas dos primórdios do blues e rock anglo-saxónico, deixou uma escola em Portugal, que continua presente em artistas contemporâneos nos mais diversos setores da música, desde a soul dos HMB, ao hip-hop de Bezegol ou ao cantautor Miguel Araújo. 

«[O disco] andava pelos carros, ouvia-se dias a fio. Para além de a música me cativar muito, porque era assim uma espécie de música anglo-saxónica ao jeito daquela que eu gostava, só que cantada em português e com referência geográficas que eu conhecia, como a Areosa, que era ao pé da minha casa, ou de Matosinhos, coisas que me diziam respeito. Era como se de repente fosse possível que a música de que eu gostava fosse mais próxima ainda e não uma coisa distante, a falar dos Estados Unidos ou de Inglaterra, de Liverpool», disse Miguel Araújo ao Público, em 2018. «Todos estes acontecimentos fizeram fervilhar em mim uma paixão pela música».

No entanto, a relação de Rui Veloso com a geração de ouvintes mais jovens é algo conturbada, muito graças às suas declarações controversas a rejeitar a «musicalidade» de algumas linguagens mais contemporâneas.

«Não sou muito fã de hip-hop», disse no programa Maluco Beleza de Rui Unas. «Fico baralhado quando chamam música àquilo, porque geralmente não tem música. Tem uns ruídos, uns acordes, uns grooves muito repetitivos. (…) Eu chamaria ao rap street poetry, poesia de rua», disse, em 2018.

Mais tarde retratou-se: «Quando eu disse que o hip-hop, para mim, não era bem música, o que quis dizer é que, se ouvir hip-hop, não aprendo nada musicalmente. […] A maioria do pessoal do hip-hop não é músico, não sabe tocar um único instrumento. Fazem street poetry. Quando quero aprender, vou ouvir os mestres», disse no podcast Posto Emissor, da Blitz, mas já tinha entrado num caminho sem retorno para alguns fãs.

Mesmo não agradando a todos, Rui Veloso deixa-nos um portfólio de algumas das mais memoráveis canções rock cantadas em português, que poderão ser ouvidas na Super Bock Arena e Campo Pequeno, com o objetivo de celebrar todas as portas que o ‘pai do rock português’ ajudou a abrir para as gerações vindouras.