Não, o engenheiro não tinha razão. Sou capaz de apostar aqui, singelo contra dobrado como nos velhos livros do Tom Mix, que se Portugal tivesse ganho 5-0 em Dublin em vez de regressar a casa com um bisonho 0-0 não teria perdido no domingo, na Luz, frente à Sérvia. Não, o futebol não se resume a números de telefone (4.4.2, 3.5.2 e o diabo a quatro). Tem homens e tem alma; tem ambições e pavores; tem inteligência e falta dela; tem poesia e tem prosa.
Quando uma equipa ganha por 5-0 em casa seja de que adversário for mete medo ao seguinte. E perde o próprio medo. Não, o engenheiro não tinha razão. Ficou preso a uma ideia fixa, só sua: a de que continuaremos pelo tempo fora a ganhar à França como naquela noite inesquecível e fervente de Paris de 10 de Julho de 2016. Mas, entretanto, já se passaram mais de seis anos.
O engenheiro vai vendo a França de Saint-Denis em todos os adversários, sejam eles quais forem, em todos os jogos, sejam eles onde forem. Não está apenas preso à sua ideia, está preso dentro de si próprio, dentro de um universo de contas, dentro de um mundo de prolongamentos e de penaltis, mesmo quando basta apenas deixar que a sua equipa seja aquilo que o conjunto dos seus jogadores pode ser.
Alguém, em algum lugar, tenha piedade de nós. Tenha piedade de Ronaldo e não lhe tire o último Mundial da carreira; tenha piedade de Bernardo Silva e dos seus pés de belbutina; tenha piedade de Bruno Fernandes e de Jota e de Ruben Dias e de Renato Sanches e de todos os que não merecem ficar para sempre encarcerados na cadeia do medo.
Depois da derrota frente à Sérvia, o nosso Qatar passou a ser a cova da piedade. Mas, convenhamos, alguém ficou verdadeiramente surpreendido? É apenas a história que se repete, ou não é? Há quanto tempo Portugal não vence uma selecção pelo menos da sua igualha? Desde a final da Liga das Nações, nas Antas, face à Holanda. Pelo caminho, um cemitério tristonho de fracassos: na Taça das Confederações, no Mundial da Rússia, no último Europeu… Chile, Uruguai, Bélgica, Sérvia… E aquele futebol triste, triste como no Só de António Nobre.
Há muito que venho escrevendo esse rol de tristezas, acompanhando a Selecção Nacional em todas essas competições. De todas elas saímos sem deixar saudades. Este Portugal da nova Ala dos Namorados precisa urgentemente de ser comandado por um General Sem Medo. Precisa, como escreveu Alexandre O’Neill, de um pássaro que levante o céu. Tem de deixar, definitivamente, de continuar a bater-se contra a França, em Paris, naquela noite em que usou a sua inferioridade para bater o Gigante que se ergueu na sua frente. Precisa de quem grite aos sete ventos: o Gigante somos nós!
O futuro Para já, antes dos jogos de hoje à noite, que terminarão depois do fecho desta edição, ainda não é claro quem será o nosso primeiro adversário nos play-off. Seremos cabeças-de-série, o que nos tira a Rússia do caminho, e começaremos por jogar em casa, se é que isso ainda faz diferença. 12 equipas; 12 jogos.
Os seis vencedores vão jogar entre si, estando estabelecido que o vencedor do jogo 1 enfrentará o vencedor do jogo 2 e por aí fora. O local do jogo será decidido por sorteio. Os três vencedores finais seguem para a fase final do Campeonato do Mundo.
Fernando Santos, afirmou-o após a derrota, sabe já de certeza absoluta que iremos estar no Qatar. O problema é que as certezas das contas do engenheiro não têm servido para somar e sim para diminuir: estava certo de que estaria no Qatar antes do jogo com a Sérvia como estava tão certo de ir aos quartos-de-final do Mundial-2018 que até comprou bilhetes para a família viajar para a Rússia ou como nem sequer desfez as malas antes de defrontarmos a Bélgica em Sevilha.
A aritmética de Fernando Santos tem a fé como prova dos nove e a fé pode mover montanhas mas não bule com a agulha de um pinheiro da floresta das contabilidades. Claro que o seu ciclo ainda não chegou ao fim, embora possa estar lá muito perto.
Cabe-lhe ser, para já, o renovador de si próprio, esquecer a inesquecível vitória de Paris a cada novo jogo, perceber que é necessário abrir a gaiola de onde sairão os pássaros que hão de levantar o céu. Neste momento preciso, já não tem nada a ganhar e tudo a perder. Da cova da piedade onde caímos ao Qatar a distância é curta. Tão curta como a paciência. E ainda mais curta do que a memória.