“Olha as horas! Já são quase nove menos um quarto. Vou só calçar as sapatilhas e vestir um casaco que está um briol que não se pode. Quando chegarem, vão pedindo um fino e uns bolinhos de bacalhau para mim, que eu ainda tenho de levar o jeco a passear.”
Para um habitante da cidade do Porto, esta frase não apresenta qualquer dissonância. Já um lisboeta ‘de gema’ poderá ficar um pouco atordoado, questionando-se, afinal, o que são “sapatilhas”, “briol” (frio), um “fino”, um “jeco” (cão), e os tais “bolinhos” de bacalhau? E “nove menos um quarto… não quererá dizer um quarto para as nove?”. “Talvez sejam uma nova receita de pastéis de bacalhau”, poderá pensar o lisboeta, e quem diz lisboeta diz o algarvio ou o alentejano. A questão é que, a variação não está na receita da iguaria, mas sim no nome que lhe é dado. Da mesma forma que os “finos” e as “imperiais” dão, todos os dias, tanto material cómico para os empregados de café que procuram um humor rápido, ou uma eficaz maneira de identificar um ‘forasteiro’.
A língua portuguesa é, verdadeiramente, um conceito ‘vivo’, dinâmico, em constante mudança e adaptação. A prova disso são as diferenças, de norte a sul, e do continente às ilhas, que se fazem sentir no vocábulo dos portugueses. De uma forma geral, e muito graças à internet, aos meios de comunicação e ao “encurtamento” de distâncias entre as regiões do país, os portugueses sabem muito bem, por exemplo, que um “fino” é uma “imperial”, e que, no norte, uma “sertã” é o que no sul é uma “frigideira”. A lista é infinita: as sapatilhas nortenhas são os ténis lisboetas, as cruzetas são cabides, os cimbalinos (assim nomeados graças às máquinas de café Cimbali) são bicas, os pingos são garotos, as malgas são tigelas, os aloquetes são cadeados, os picheleiros são canalizadores, os moinas são polícias, o lanche é a merenda, e os “tótil” são “bué”, mas este último exemplo já entra em parâmetros do português moderno, e ainda não está completamente definido como regionalismo.
Isto, olhando unicamente para as diferenças entre o português do norte do país (que, não se confunda, tem diferenças na linguagem dentro da própria região) com a forma de falar associada à capital do país e arredores.
Se pegarmos, por exemplo, no português falado em Trás-os-Montes, a história é outra. Os transmontanos contam uma série de expressões que, no resto do país, é necessário descodificar. Uliar, por exemplo, é o mesmo que uivar. Abondar usa-se quando se dá um objeto a alguém… e arrebunhar é o mesmo que arranhar. Quando se listam as expressões mais ‘típicas’ desta região, no entanto, há uma que não pode faltar: “Bô”. É um pouco de tudo, é uma versão curta de “Bom”, mas pode querer dizer “Ora essa!”. Curta, simples, esta é a mais icónica palavra do ‘falar’ transmontano. Nesta região, muito influenciada pelos ares da fronteiriça Galiza, aliás, outra curiosa marca linguística torna muito fácil a identificação de um transmontano em qualquer lugar. Quando chega o momento de dizer que horas são, muitos dirão, por exemplo, “são três da tarde”. Um transmontano, por sua vez, tenderá a dizer “são as três da tarde”, porque, bem, porque é assim.
E o tema das horas é mais um dos que marca as diferenças linguísticas por todo o país. Há quem note que, no norte, a ordem pela qual se dizem as horas não é igual à metodologia do sul. Às 8h45, por exemplo, alguém do Porto diria “são nove menos um quarto”, ao passo que um lisboeta diria “é um quarto para as nove”. Obviamente, são generalizações, que não estão escritas em pedra nem são regras infalíveis, mas a realidade é que as diferenças existem, e são marcantes das diferentes regiões deste país que, apesar de pequeno, conta com uma rica variedade de léxicos, construções frásicas, e até conjugações verbais.
Sim, até nas conjugações verbais o português varia, conforme a região. Tome-se o exemplo da ilha da Madeira, possivelmente o ponto do país onde o gerúndio mais se usa, logo a seguir ao Alentejo. “Estou comendo” e “estou a comer” são duas frases exemplificativas que podem delatar as origens de quem as profere. Os mesmos madeirenses que chamam ‘semilhas’ às batatas, e ‘horários’ aos autocarros. A variedade lexical no português é, mesmo, extensa.
pronúncia bem definida Além dos vocábulos e das conjugações verbais, outro dos parâmetros onde o português mais muda, conforme a região do país – ou do mundo – onde nos encontremos, é a pronúncia. Apesar de a grafia ser idêntica – ou pelo menos, muito semelhante – de norte a sul, de Angola ao Brasil, a realidade é que a mesma palavra pode ter muitas formas diferentes de se ler, dependendo de quem a leia, e de onde vem.
A palavra “cerveja”, por exemplo, é uma das que mais muda conforme a região. Este exemplo seria mais facilmente explicado se o i fosse um canal de televisão, ou uma rádio, mas através da grafia poderá também ilustrar-se como muda a sonoridade desta palavra. No norte, por exemplo, se fosse escrita da forma que é dita, seria algo como “cerbeija”. Algures, o “v” é trocado por um “b” – que, note-se, acontece frequentemente nesta região do país – e acrescenta-se um “i” antes do “j”, tal como acontece com tantas outras palavras. Já mais a sul, na capital, mais especificamente, a palavra passará a ser algo como “cervaija”. Uma modulação do “e” para “ai” que tende a acontecer por entre os lisboetas, e que se repete noutros vocábulos, como “igraija” ou “containte”.
Prosseguindo, e chegando ao Alentejo, a palavra ganha toda uma outra sonoridade: “cervêja”. Exemplo clássico das variações mais típicas do português associada a esta região, onde muitas vezes os “i”s são suprimidos, como no caso da “arêa” (areia).
São vários os exemplos que se podem dar sobre as mudanças na pronúncia das palavras, como o ‘dezóito’ do resto do país, e o ‘dezôito’ do norte. Desengane-se, aliás, aquele que acha, por exemplo, que em todo o “norte” se fala igual. É comum ouvir-se falar na “pronúncia do norte”, mas a realidade é que, entre Aveiro e Viana do Castelo, há ainda um enorme espetro de variedade na linguagem, nas expressões, nas pronúncias e nos vocábulos utilizados.
O mesmo acontece noutras regiões do país, como por exemplo no Algarve, onde os sotaques variam de barlavento a sotavento – o peixe em Faro é pêxe, por exemplo – e na própria região de Lisboa que, graças ao seu estatuto de capital, porto de chegada de pessoas vindas de várias partes do país e do mundo, ganha o seu próprio espaço linguístico, onde basta cruzar o rio para a Margem Sul se se quer procurar alguma mudança na linguagem.
mas afinal, de onde vêm estas mudanças? A história, o clima, a topologia, as migrações e as vivências culturais são apenas algumas das razões que podem estar por trás da rica variedade de vocábulos, expressões idiomáticas e pronúncias que se fazem sentir pelo país inteiro. Mas o que causa estas mudanças, e como perduram?
Para ajudar a esclarecer estas questões, Maria Aldina Marques, diretora do Departamento de Estudos Portugueses e Lusófonos da Universidade do Minho, deixa imediatamente um ponto assente: “A heterogeneidade e a variabilidade são sinais positivos da vitalidade de uma língua. Uma língua que fique muito homogénea, está a morrer”, define a docente, ao i, dando conta dos pontos positivos e das origens destas diferenças linguísticas dentro de um mesmo país.
“As línguas são fenómenos sociais. Nós somos portugueses, mas dentro de Portugal temos comunidades sociais e linguísticas variadas que vão desenvolvendo variações, dentro daquilo que não deixa de ser a língua portuguesa”, continua, colocando o ênfase destas mudanças no mundo lexical. “Ao nível do léxico, que é uma categoria aberta, todos os dias podemos inventar novas palavras e esquecer outras que vão passando. É muito natural que tenhamos uma variabilidade em termos do léxico”, explica a professora.
O assunto não é, de todo, novidade, e para explicar as diferenças lexicais pelo país, Maria Aldina Marques recua vários séculos na história, recordando que a língua “deriva do latim, e começou por ser falada nesta região do norte do Porto e Galiza”. “Daí que os estudiosos lhe chamassem o Galego-português, que é uma evolução de um latim trazido até esta zona noroeste da Península, diferente, por exemplo, do latim trazido também para outras zonas da Península Ibérica. Com o processo de Reconquista, este galego-português é levado para Sul, e, à medida que o Reino de Portugal se estende, a língua que vai é o galego-português”.
Depois da breve contextualização histórica, a docente passa então ao cerne da questão: Porque é que em alguns sítios se utilizam algumas palavras, e noutros outras, para os mesmos objetos? “Na altura, não havia desertos, não é? Havia populações. Algumas terão fugido, mas outras ficaram, e falavam as suas próprias línguas. Por isso temos aqui logo um fator de heterogeneidade que vai levando a novos contactos e a um processo de diferenciação que vamos encontrar depois. Ao longo dos séculos, cada comunidade teve a sua dinâmica própria, o que leva a que algumas sejam mais conservadoras e mantenham determinadas características que noutras se vão alterando”, explica, acrescentando ainda: “Contactos mais fechados, mais abertos, mais escolarizados, menos escolarizados, lugares que são mais destino de imigração, menos destino de imigração… tudo isso são fatores que vão contar nesta diversidade que temos atualmente”.
Até os “movimentos populacionais” dentro do país são, refere a docente, uma das razões por trás desta riqueza e variedade linguística no país. Ao levar, por exemplo, populações de locais continentais para povoar os Açores ou a Madeira, ou vice-versa, as trocas de vocábulos tornaram-se vivas e dinâmicas, tal como dentro do próprio continente, em casos de pessoas que se movimentaram entre diferentes cidades por variadas razões.
Português ‘correto’? Há, de uma forma geral, um eterno debate sobre se existe uma forma ‘mais correta’ do que outra de falar português. Não se está aqui a falar da correção gramatical e ortográfica, mas sim do uso de determinadas palavras, vocábulos e até pronúncias.
Maria Aldina Marques, no entanto, descarta por completo a hipótese de que haja um português ‘mais correto’ do que outro, relembrando que a língua é ‘viva’ e dinâmica, mudando conforme os costumes, história e tradições das diferentes populações. E mais, por vezes, estas discussões concluem – erradamente, segundo a opinião da docente – que o português ‘mais antigo’ seria o mais correto.
“Isto do mais antigo ser o mais correto está associado à tal ideia errada de corrupção da língua. São ideias que agora não se justificam”, refere a docente, antes de deixar a sua sentença: “Em termos linguísticos, não há um português mais correto que outro. Há formas diferentes de falar, e o que nos interessa é descrever essas diferentes formas, encontrando as regras e as características. Não há noção de correto ou incorreto em linguística.”
Apesar das declarações assertivas, no entanto, Maria Aldina Marques não deixa de fora um conceito muito importante neste contexto: o prestígio. “O que acontece socialmente é que há variedades de prestígio, associadas ao poder – político por um lado, e ao conhecimento por outro. Daí vem Lisboa, como capital do reino, e Coimbra, como cidade com a Universidade mais antiga, associadas ao prestígio social”, explica a professora, que desmonta assim uma crença partilhada frequentemente: o português ‘correto’ não é só aquele que é falado em Coimbra, ou em Lisboa.
Adaptações A docente da Universidade do Minho levanta ainda uma questão caricata, relacionada com as ‘adaptações’ que são feitas, em determinadas ocasiões, entre as diferentes ‘formas’ do português no país, acabando por predominar, por vezes, umas em detrimento de outras. Na televisão, por exemplo, Maria Aldina Marques aponta para uma ‘homogeneização’ da pronúncia, do sotaque e dos vocábulos utilizados, aproximando-se sempre do português que é falado em Lisboa. Afinal de contas, é na capital que se encontram a maioria das principais estações televisivas do país, e para onde muitos pivots e repórteres, oriundos de outras zonas do país, acabam por ‘emigrar’ para ingressar nesta profissão. E mais, nesta atividade, estes jornalistas, muitas vezes naturais de outras regiões, como o Alentejo ou o norte, acabam por ‘adaptar’ a sua forma de falar perante a câmara para um português mais parecido àquele que é falado na capital do país. “Quem trabalha na televisão sente isso de forma particular. Tenho reparado como algumas pessoas vão do Porto para Lisboa trabalhar na televisão e estão com todo o sotaque de Lisboa e nada do Porto. É esta ideia de que se tem que falar assim e não se admite alguém que venha com um sotaque carregado do Porto”, acusa. Ainda assim, este conceito é amplo, reforçando a docente que, mesmo dentro do “falar do Porto, estamos a homogeneizar aquilo que na realidade é variável”. “Uma pessoa que nasceu e vive no Porto, pode ter traços mais ou menos marcados da região”, conclui ainda a docente.
Mas afinal, porque é que acontece esta homogeneização, principalmente nos diferentes canais televisivos, da linguagem falada? “Em primeiro lugar, pelo prestígio”, começa por revelar a docente, antes de falar no “enraizamento nos falantes do ‘certo e do errado’, e de que em Lisboa é que se fala bem”. “Alguém que não tenha esse ‘dialeto’ de prestígio, vai sofrer nas suas oportunidades sociais, sem dúvida nenhuma”, ataca ainda.