Tal como certas joias ou pedras preciosas – o diamante Hope, que pertenceu à malograda rainha Maria Antonieta, é um dos melhores exemplos disso – há nomes em que o glamour e a tragédia parecem andar de mãos dadas. Olhando para o destino dos descendentes da dinastia – um caído na miséria, outro assassinado aos 46 anos – não será difícil ver no apelido Gucci, além do óbvio pedigree, uma espécie de maldição.
A 31 de janeiro de 1997, a Polícia italiana detinha Patrizia Reggiani sob a acusação de ter encomendado, dois anos antes, o homicídio do seu ex-marido, Maurizio Gucci. Motivos do crime, os habituais: o ciúme, o despeito, o desespero, o vil metal. E uma quase total falta de escrúpulos. A ‘Viúva Negra’, como a batizou a imprensa da época, acabaria por confessar como, em conluio com uma cartomante que funcionava como amiga, confidente e conselheira, contratara dois assassinos a soldo para liquidarem Maurizio, pouco depois de se consumar o divórcio. «Estava uma bela manhã de primavera, muito sossegada», descreveu ao The Guardian, em 2016, o homem em cujos braços morreu o milionário, porteiro do edifício de Milão onde Maurizio tinha o seu escritório. «O Sr. Gucci chegou com algumas revistas na mão e disse bom dia. Depois vi uma mão. Uma mão bonita, limpa, e estava a apontar uma pistola».
O juiz declarou Reggiani autora moral do homicídio e condenou-a a 29 anos de prisão. A mulher saiu em 2015, após cumprir 18 anos de pena, psicologicamente destroçada.
Casa Gucci, o filme de Ridley Scott que acaba de se estrear nos cinemas portugueses, retrata Patrizia Reggiani como uma ‘pistoleira’, ambiciosa, inculta e manipuladora.
Tudo terá começado numa festa da alta sociedade milanesa, em que conheceu o tímido herdeiro do império de moda. Na altura, ele estudava Direito e não se interessava especialmente pelos negócios da família. Ela trabalhava com o pai, que tinha uma pequena empresa de camionagem – um negócio visto como próximo das teias da máfia.
A lição de Maquiavel
Apesar da ignorância (como cedo demonstra ao não saber identificar uma famosa pintura de Klimt que, esclareça-se, nunca pertenceu à família Gucci), Patrizia parecia conhecer de cor os preceitos de um texto clássico publicado pela primeira vez em 1532. «Não me considero uma pessoa particularmente ética», diz a certa altura. Puro Maquiavel. Depois de conquistar o coração de Maurizio, manobrou para que o marido ganhasse influência na empresa familiar: fez com que ele se reconciliasse com o pai, Rodolfo (que o tinha deserdado justamente por causa do casamento, que não aprovava), e mais tarde procurou em Aldo Gucci, o tio do marido que dirigia a operação em Nova Iorque, um aliado para a sua ascensão. As intrigas e diligências resultaram em cheio. Não fica claro até que ponto Maurizio se deixou manipular ou se Patrizia simplesmente libertou uma ambição que ele próprio já alimentava no seu íntimo. O certo é que, juntos, chegaram ao topo da organização.
O maestro e os instrumentos
O elenco do filme de Ridley Scott é uma fabulosa constelação de estrelas: Lady Gaga, que diz ter uma costela italiana, veste surpreendentemente bem a pele da pistoleira Patrizia; o longilíneo Adam Driver, não sendo sequer parecido com Maurizio, também é convincente nos seus fatos de corte impecável; Salma Hayek vai muito bem como cartomante Pina Auriemma. E por fim, as estrelas maiores deste firmamento, Jeremy Irons e Al Pacino, o primeiro no papel do contido e refinado Rodolfo; o segundo no papel do irmão Aldo, mais aberto, cosmopolita e expansivo.
«É como se os atores fossem diferentes instrumentos musicais», disse Lady Gaga (num depoimento que se encontra nas notas de produção), «como uma orquestra – tudo, da percussão aos metais, sopros e cordas. E como somos todos atores tão diferentes, Ridley é o maestro que dirige a sinfonia de todos estes diferentes elementos orquestrais».
Tanto quanto a história, as personagens e os atores, impressionam os ambientes em que Casa Gucci foi filmado. A aristocrática mansão de Rodolfo dá o tom, quando surge em contraste com o descampado de terra batida onde está sediada a empresa de camionagem. Para o efeito foi escolhida a Villa Necchi, outrora residência da família que lhe deu o nome, hoje transformada em museu. É o legado da velha Europa, rica, culta e conservadora.
Outro dos locais eleitos para as filmagens foi uma villa paladiana no Lago Como, a Norte de Milão, que no século XVI pertenceu ao arcebispo de Roma. Em termos de exteriores, embora a história se desenrole sobretudo em Milão, muitas das ruas que surgem são de Roma, uma cidade certamente mais fotogénica do que a capital da Lombardia (e da moda).
E depois há os ambientes modernos de Nova Iorque e do apartamento milanês onde Maurizio vivia com a sua segunda mulher, Paola, recheados de mobiliário de design e de arte contemporânea.
A elegância perdida
Há momentos em que Casa Gucci nos recorda outra saga, O Padrinho – seja quando Maurizio vai passear de barco com Patrizia e nos lembramos de como Michael Corleone eliminou o débil Fredo, seja no facto de o homicídio de Maurizio ocorrer numa escadaria (evocando a icónica cena final da saga de Coppola, na escadaria do teatro Massimo de Palermo). Evidentemente, a presença de Al Pacino também contribui para acentuar esse paralelo.
Ainda sobre o local escolhido para a reconstituição do homicídio, o diretor de arte Arthur Max falou no seu «sentido operático». A ópera é, de facto, uma inspiração constante de Casa Gucci, e só há a lamentar as escolhas musicais não serem nalgumas ocasiões menos óbvias. Outra fonte de inspiração parecem ser as séries – e que bela série daria este enredo, com outro balanço e com alguns esclarecimentos adicionais acerca dos complexos meandros das guerras pelo controlo da empresa.
Casa Gucci conta uma grande história, filmada por um grande realizador e servida em bandeja de prata por grandes atores. Apesar de se privilegiar o ritmo e a eficácia, há complexidade q.b. – sobretudo na personagem de Maurizio, que de um «ratinho silencioso», como lhe chama o primo Paolo, se transforma num empresário pragmático e implacável. Aliás, é precisamente quando assume essa faceta mais fria perante a ex-mulher que assina a sua sentença de morte.
As qualidades da obra são acentuadas pela riqueza visual e pelo sentido do estilo, ou da elegância, que emana de uma casa palaciana, de uma limusina Mercedes da década de 1960 ou da maneira como Adam Driver conduz e se apeia de uma bicicleta.
Uma elegância perdida, que contrasta de forma gritante com os visuais espampanantes e bizarros exibidos pelas celebridades de hoje: basta pensar na própria Lady Gaga, que se apresentou nos MTV Awards de 2010 com um vestido de carne; ou em Jared Leto, que na Met Gala de 2019 apareceu de vestido de veludo vermelho comprido, a segurar uma réplica da sua própria cabeça… Talvez não seja por acaso que Gaga foi escolhida para representar a mulher que mandou assassinar o herdeiro da Gucci e que a Leto tenha sido atribuído o papel (por vezes a roçar a caricatura) de Paolo, o apalhaçado filho de Aldo Gucci, um estilista patético, frustrado e que não prima pelo bom gosto.