Há tempos ouvia um antigo amigo da família a descrever o meu avô como alguém que fazia «imensa cerimónia em discordar». Contava-me esse amigo que «às vezes até dizia as coisas mais perigosas e radicais» – de Esquerda, imagino – só para «conseguir a discórdia» do meu avô. Em vão!, explicava-me. «Lá abanava a cabeça, dizia que não era bem assim mas que até tinha alguma razão». Por outras palavras, nem não, nem sim: a simpatia do ‘nim’. Talvez por ter sido diplomata, o meu avô tenha permeado a sua personalidade à da sua profissão (ou, talvez, ao contrário: a sua queda para o ‘nim’ e o bom gosto nas gravatas tê-lo-á levado a tal).
Bebi um pouco dessa educação: eventualmente não nas gravatas, mas sim no evitamento de confronto. E se por um lado considero-a no campo social, por outro desconsidero-a no campo das ideias. No campo das ideias – surpresa do ano – há posições a tomar e verdades objetivas a defender. Neste pequeno texto procurarei contestar dois assuntos normalmente consensuais: o de que o gosto não se discute e o de que o conceito de ‘avanço civilizacional’ é falacioso. Os subjetivistas trincam a língua.
Wagner é objetivamente melhor do que Wet Bed Gang (WBG). «Ah, mas eu gosto mais de WBG e os gostos não se discutem». Discutem-se sim e és um ceboleiro se gostas mais de WBG do que de Wagner. Sem entrar por questões técnicas musicais, Wagner é superior a WBG porque, sem falar, diz mais da condição humana do que os WBG falando. Wagner tem mais profundidade, mais beleza, mais aventura, mais majestosidade. Wagner leva-nos a lugares aos quais não conseguiríamos ir sem a sua música. WBG leva-nos aos lugares-comuns da vida: sexo, dinheiro e drogas. Claro que estas três têm a sua importância, mas não preciso de música foleira para chegar a essa conclusão: sei-o porque respiro. Numa frase: WBG não tem nada para dizer, enquanto Wagner é fonte insaciável de palavras. Dir-me-ão que o ponto é tão óbvio que não merece explicação. Discordarei: neste mundinho subjetivo em que tudo tem de ser igual para não magoarmos ninguém, algumas excelências – que se albergam sob essa máxima – devem ser esclarecidas que o seu gosto pode, sim, ser inferior ao dos seus pares.
Um debate parecido – mais sério e denso – com o dos ‘gostos não se discutem’ é o de que a história não segue uma linha teleológica e que, por isso, não há ‘avanço civilizacional’. Os pós-modernos que dão penas aos galos que acham que os gostos não se discutem são os mesmos que defendem que o ‘avanço civilizacional’ é um conceito subjetivo segundo o qual, por exemplo, a Inglaterra não é mais desenvolvida do que o Burundi. Choquem-se: a Inglaterra é mais desenvolvida do que o Burundi. Os cuidados médicos que recebemos partindo uma perna em Londres são diferentes dos que receberíamos partindo-a em Guitega. No mesmo sentido, o ensino público na Noruega é mais completo do que o da Somália ou, em Portugal, as mulheres são mais respeitadas do que no Omã. Como disse Fukuyama a Foucault e companhia: «Duvido que esses professores saiam do seu conforto em Paris e vão ensinar Filosofia Pós-Moderna para Teerão». Estes pós-modernos buscam a verdade em livros e letras para depois tentarem que o mundo se torne nesses livros e letras. Cozinham o bife com o óleo da sua ideologia, queimam-no e, mesmo assim, forçam-nos a prová-lo como se de uma iguaria exótica se tratasse. Deviam, sim, olhar para a realidade e cozinhá-la de acordo com o que veem – ou seja, despida de ideologia.
Dois pequenos pontos. Duas sobreposições: posições que ficaram sobre outras. E sem grandes cerimónias: afinal, há coisas que se discutem.