Volvidos quase seis meses da morte de Nuno Santos, a 18 de junho, após ser atropelado pelo carro do ministro da Administração Interna, ocorreu aquilo que muitos haviam previsto: Eduardo Cabrita demitiu-se. Contudo, a saída não estava só anunciada, estava articulada com o primeiro-ministro. O Nascer do SOL sabe que o dirigente tinha combinado com António Costa que, no dia em que fosse veiculado o despacho de acusação do Ministério Público em relação ao acidente, se fosse dado a conhecer que o motorista do veículo havia sido culpado da morte do trabalhador, abandonaria o cargo. «Não posso permitir que este aproveitamento político absolutamente intolerável seja utilizado no atual quadro para penalizar a ação do Governo, contra o sr. primeiro ministro ou mesmo contra o Partido Socialista. Por isso mesmo, decidi pedir a exoneração das minhas funções de ministro da Administração Interna», justificou ontem Eduardo Cabrita, fechando um capítulo.
A velocidade a que ia o carro
A acusação esclarece um dos pontos que o Ministério da Administração Interna manteve sob reserva ao longo destes meses. «Apurou-se que Marco Pontes conduzia a viatura referida na faixa mais à esquerda da AE6, que circulava a cerca de 163km/h», lê-se na acusação, a que o Nascer do SOL teve acesso, sendo que, logo de seguida, é esclarecido que «os factos descritos são suscetíveis de integrar a prática dos seguintes ilícitos criminais: um crime de homicídio por negligência» e «um crime de condução perigosa».
«De acordo com a acusação, o arguido conduzia, naquela ocasião e lugar, veículo automóvel em violação das regras de velocidade e circulação previstas no Código da Estrada e com inobservância das precauções exigidas pela prudência e cuidados impostos por aquelas regras de condução», indicou o Departamento de Investigação e Ação Penal de Évora, que teve a seu cargo a investigação da tragédia.
Os primeiros momentos logo após ser conhecida a acusação voltaram a ser polémicos. Na inauguração de um posto da GNR em Lagos, questionado sobre se sabia que o carro circulava a 163 quilómetros quando se deu o acidente, Eduardo Cabrita respondeu que «era passageiro» e que o despacho de acusação conhecido «é o Estado de Direito a funcionar». Mais especificamente, referindo-se à acusação de homicídio por negligência que o Ministério Público fez ao seu motorista, o ministro declarou somente que «esta fase permitirá esclarecer as condições do acidente». Insistindo que as acusações integram o Estado de Direito, quando lhe foi perguntado se este funciona «mesmo», asseverou «que é essa a confiança que tem nas instituições», sem aludir à morte do trabalhador.
Em conferência de imprensa, pouco depois das 17h30 de ontem, Eduardo Cabrita recapitulou os dois mandatos no MAI. «Sou Ministro da Administração Interna desde outubro de 2017. Assumi estas funções num contexto particularmente difícil para o país, em verdadeira situação de trauma nacional, na sequência dos incêndios de outubro e de julho desse ano, que provocaram a morte a mais de centena de portugueses. Desde então, tenho trabalhado intensamente com muitas e muitos para assegurar que Portugal é um país seguro nas suas várias dimensões», começou por destacar, salientando que procurou restaurar «a confiança no sistema de proteção civil» e «a sua profunda reorganização» nos «quatro anos em que foi garantido o principal objetivo estratégico que nos trouxe aqui: que nenhuma vida humana seria perdida em contexto de incêndio rural. Só profissionais perderam a sua vida, nenhum civil».
Cabrita, que também desempenhou o cargo de Ministro Adjunto entre novembro de 2015 e outubro de 2017, acrescentou que «igualmente na área da Segurança Interna, Portugal afirmou-se nos indicadores nacionais: no reconhecimento externo, como o Global Peace Index, como um dos países mais seguros. Desde que existe o Relatório de Segurança Interna, desde 1999, jamais tínhamos tido quatro anos de indicadores tão baixos quer de criminalidade geral quer de criminalidade violenta e grave», observou, agradecendo, mais uma vez, «aos milhares de homens e mulheres que servem Portugal nas forças de segurança e na proteção civil» e frisando que lhes «devemos imenso».
Declarou que o país «é dos poucos que participou em todas as operações de acolhimento de migrantes a partir de navios do Mediterrâneo», na medida em que «tem forças, designadamente da GNR, que salvaram milhares de vidas nas ilhas gregas» e acolheu «até hoje, cerca de cinco centenas de afegãos em busca de liberdade e segurança».
Sobre a covid-19, sublinhou que «o MAI assumiu a responsabilidade pela coordenação da aplicação das medidas previstas em estado de emergência e quer as estruturas de proteção civil quer, com maior visibilidade, as forcas e serviços de segurança foram decisivos para que a coesão social, e a paz pública fossem asseguradas durante estes dois anos tão difíceis».
Van Dunem, de saída, acumula pastas
«Como sabem, no dia 18 de junho, a viatura que me transportava foi vítima de um acidente no qual se viu envolvida e que tragicamente determinou a perda de uma vida. Mais do que ninguém, lamento essa trágica perda irreparável», disse por fim o ministro cessante, admitindo que, «desde então, foi com grande sacrifício pessoal» que verificou, «com estupefação, o aproveitamento politico que foi feito de uma tragédia pessoal».
«Só a lealdade, o tempo e as circunstâncias que enfrentávamos há seis meses, e a solidariedade do senhor primeiro-ministro, permitiram o prosseguimento de funções neste verão tão difícil. É por isso que, hoje, não posso permitir que este aproveitamento absolutamente intolerável seja usado para penalizar a ação do governo contra o primeiro-ministro ou mesmo contra o PS. E por isso, entendi, solicitar hoje a minha exoneração de ministro», clarificou.
Poucos minutos depois, no Porto de Leixões, António Costa reagiu confirmando que havia aceitado o pedido de demissão e comunicado o mesmo ao Presidente da República. Continuando a defender que a «acusação nada diz sobre o ministro», o também Secretário-Geral do PS indicou que este documento «refere-se ao motorista que tem naturalmente direito à presunção de inocência, exercício do contraditório, e apuramento da verdade», defendendo o legado de Eduardo Cabrita na pasta.
Mas, inevitavelmente, o período de governação de Cabrita ficará associado ao falecimento de Nuno Santos na autoestrada, com um ministro a circular em excesso de velocidade sem motivo aparente. Sabe-se que o funcionário estava a iniciar o atravessamento da estrada depois de ter ido buscar sinalização ao separador central quando foi atropelado mortalmente ao km 77,6 da A6.
Antes da tragédia, Cabrita somava já várias polémicas: durante meses manteve silêncio sobre a morte de Ihor Homeniuk às mãos do SEF, seguiu-se a extinção do SEF e o caso da autorização dos festejos do Sporting. Em 2019, o ajuste direto para compra de golas antifumo no âmbito do programa Aldeias Seguras, alvo de inquérito por corrupção, que fez cair o ex-secretário de Estado da Proteção Civil Artur Neves, um dos arguidos. Neste sentido, o Nascer do SOL teve conhecimento de que Cabrita não integrará as listas de candidatos do PS daqui a quase dois meses. Nesta fase, fica a acumular a pasta do MAI com a da Justiça Francisca Van Dunem, que já disse que não quer fazer parte de um futuro Governo.
«O motorista não foi constituído arguido sequer, não foi condenado a nada. Vou esforçar-me para que sejam constituídos arguidos ele e o senhor ministro», disse em outubro, ao SOL, José Joaquim Barros, advogado da família do trabalhador. «A situação é dramática. A família ainda está traumatizada. A seguradora do trabalho tem-se portado bem e a família recebe apoio psicológico para além da pensão provisória que a seguradora Caravela está a pagar sem ter havido um acordo», esclarecia então a defesa da família. Em novembro foi noticiado que além desta pensão, a viúva e as filhas do trabalhador estão a receber uma pensão de sobrevivência de 259,91 euros, atribuída pela Segurança Social. Corresponde a 60% da reforma que o trabalhador receberia à data da sua morte, escreveu o JN. Uma indemnização dependerá do desfecho do processo.