E nunca mais dançou Ballet

Aurora é uma mulher de 70 anos. Viúva. Joelhos cintilantes e sempre frios. Tem um pequeno café de aldeia, cujo chão está marcado pelos quilómetros que lá percorreu anos a fio. É daqueles cafés tão pequenos que é normal pedir-se fiado ou parar-se em quatro piscas para se tomar uma bica. É pobre até aos…

Aurora é uma mulher de 70 anos. Viúva. Joelhos cintilantes e sempre frios. Tem um pequeno café de aldeia, cujo chão está marcado pelos quilómetros que lá percorreu anos a fio. É daqueles cafés tão pequenos que é normal pedir-se fiado ou parar-se em quatro piscas para se tomar uma bica. É pobre até aos ossos: o pouco dinheiro que faz serve para pagar as aulas de Ballet da neta – que para já só não é pobre porque ainda não se apercebeu.

2020. Covid. Fecham portas: dificuldade em comer, dificuldade em viver. Nesse Natal, o bacalhau não nadou à mesa. – Para o ano há de ser melhor.

(mas não foi).

– Isolem-se!

Isolámo-nos.

– Vacinem-se!

Vacinámo-nos.
Café reaberto e desejo de voltar a ver a neta dançar.

– 85% da população vacinada. Pessoas podem voltar a dançar nas discotecas.

E no Ballet? – No Ballet também.
Até o cão levámos a ‘tomar a pica’.

Novembro 2021. O café funciona ininterruptamente desde agosto. Voltaram os ‘quatro piscas’ à sua porta. Aurora, passados quase dois anos, volta a conseguir juntar dinheiro para a mensalidade do Ballet da neta. Após meses de luta, a neta poderá, em dezembro, dançar de novo. Quiçá sobre para o bacalhau.

Dezembro 2021. Casos aumentam. Passa a ser obrigatório um conjunto de tecnologias para se receber quem queira levar quatro colheres de sopa à boca.

– Tem de ser.

Aurora informa-se com a filha. As mãos doridas do sabão-rosa passam agora a manusear o tablet que irá apontar tremulamente ao certificado dos clientes. Custou 70€: a neta não dançou em dezembro nem dançará em janeiro.

– Tem de ser.

Sempre que vê clientes porta adentro vai apressadamente na sua direção, atirando os joelhos para a  frente dos pés. Não há razão para pressa: ninguém dá com o certificado. Aurora espera, de forma mansa. Sente-se culpada pela chatice.

– Tem de ser – diz, sorrindo.

Os clientes entram. Aurora volta para trás do balcão. Mascarada, prepara-lhes a diária: hoje é sopa de nabos e panados de peru com arroz de tomate. Entre tachos e tachinhos, dois senhores de colete entram pela porta. Aurora não repara (continua ocupada com o arroz de tomate «que ficou muito preso»). Passados poucos minutos de se sentarem, dirigem-se-lhe. Aurora vira-se.

– Boa tarde. Posso ajudar?

São fiscais da ASAE, que viram clientes a entrar sem certificado.

– Temos de suspender o seu estabelecimento.

«No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada

Eles comem tudo, eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada»

Uma vida toda: da lavoura para a lavandaria. Da lavandaria para o café. Do sabão rosa para esta porcaria de aparelho para ler certificados que nem sabe ligar. De que valeu tanta corridinha com os joelhos tortos? Tanta mansidão e sorrisos de culpa? Tanta esperança? Se o Estado não tem culpa da pandemia, o povo também não. Aurora tudo fez, a tudo se vergou, a tudo sorriu mansamente para conseguir cumprir com as exigências do Estado e manter o café aberto. Tombou ao seus pés. Nesta história, não terá sido Aurora a falhar por estar de costas quando o Estado lhe entrou pelo café adentro. Falhou, sim, o Estado – que, insistindo numa postura grotescamente inquisitória, traiu o seu povo pelas costas. O Estado: que em vez de dar a mão às Auroras desta vida tira-lhes o tapete.

Nesse ano voltou a não haver bacalhau. O tablet foi passado a trocos. A neta apercebeu-se de que era pobre.

E nunca mais dançou Ballet.

*

Esta semana, a ASAE, PSP e GNR organizaram uma megaoperação para controlar o cumprimento das medidas pandémicas por parte dos estabelecimentos. Instauraram-se 41 «processos de contraordenação». Destes, 16 foram por ausência de verificação de certificados Covid, tendo 10 estabelecimentos sido «imediatamente suspensos».

Lisboa, 10 de dezembro