O que aconteceu quando dois dos exércitos mais poderosos que o mundo alguma vez tinha visto embateram na primavera de 1941? Que demónios deixaram à solta? Quais as motivações de Hitler para tentar algo tão radical como invadir a União Soviética? E como reagiu Estaline a isso?
Laurence Rees, historiador e autor de documentários premiados, procura responder a estas questões no livro Hitler e Estalin – Os Tiranos e a Segunda Guerra Mundial (ed. vogais). Licenciado em Oxford, Rees quis desde sempre fazer programas de História. Para isso, entrou para a BBC, onde recebeu formação como jornalista.
Essa aprendizagem haveria de revelar-se decisiva para o seu percurso, já que tanto os seus documentários como os seus livros se apoiam grandemente em testemunhos diretos dos protagonistas. Ao longo dos últimos trinta anos falou com guardas dos campos de concentração, sobreviventes do Holocausto e vítimas da opressão soviética.
A sua mais recente obra, que se debruça sobre os dois grandes tiranos do século XX, não é diferente, contando com muitos relatos na primeira pessoa. E é isso, em parte, que a torna tão original e apelativa. Laurence Rees conversou com o Nascer do Sol por telefone, a partir da sua casa em Londres.
Acha que é uma pura coincidência, um acidente da História, que dois dos mais sanguinários ditadores que alguma vez existiram tenham sido contemporâneos? Ou houve circunstâncias na Europa que propiciaram o aparecimento de tiranos deste calibre?
Não sei se se pode dizer que foram as circunstâncias que conduziram a isso, porque em qualquer época há muitos fatores em jogo, muitas possibilidades. Mas quanto mais estudo este período mais me convenço de que a pré-condição essencial para a ascensão tanto de Hitler como de Estaline foi a Primeira Guerra Mundial e a forma como acabou.
Devido às coisas terríveis que Hitler e Estaline fizeram – e especial o Holocausto –, quando olhamos para trás as pessoas tendem a focar-se na Segunda Guerra Mundial, porque foi a guerra mais sangrenta e mortífera da História. Nem todos percebem que não se pode ter a Segunda Guerra sem a Primeira.
É muito difícil fazer História virtual, nunca saberemos o que teria acontecido se mudássemos um dado tão importante. Mas é difícil imaginar Hitler a ascender ao poder sem as circunstâncias da Primeira Guerra Mundial e a forma como terminou.
E o mesmo em relação à revolução na Rússia.
Claro, a revolução de 1917 também foi uma consequência da forma como a guerra estava a correr aos russos. Ou seja, não é apenas por uma questão de sorte – ou de azar – que Hitler e Estaline chegam ao poder naquele momento. A Primeira Guerra Mundial tinha deixado a Europa num potencial estado revolucionário. O medo do fascismo, o medo do bolchevismo – há uma série de coisas a acontecer ao mesmo tempo.
As pessoas esquecem-se de que não é apenas o czar que é deposto na Rússia. Também a Alemanha pôs fim à monarquia. É um acontecimento enorme, uma mudança estrutural no maior Estado da Europa Central. Subitamente, tem um sistema político completamente novo. Cada vez mais estou convencido de que a Primeira Guerra Mundial foi não apenas o catalisador, mas a pré-condição essencial para o que se seguiu.
O antissemitismo é uma característica central da política de Hitler. Mas não era certamente uma característica exclusiva dos alemães…
De modo algum!
Qual era o sentimento de Estaline em relação aos judeus?
De um modo geral, Estaline não é racista. Mas tem uma relação complicada com as diferentes nacionalidades que coexistem na União Soviética. Ele acabará por perseguir grupos étnicos inteiros como os chechenos, os calmuques [nómadas budistas de origem mongol], os tártaros da Crimeia. E também acabará por perseguir judeus proeminentes, em particular os médicos judeus, no final da vida. Decididamente vemo-lo a transformar estes grupos em alvos. Mas não o faz necessariamente por motivos racistas ou antissemitas.
Fá-lo porque acredita que a coisa mais importante é ter uma União Soviética uniforme, sem estes grupos étnicos que possam dar origem a movimentos nacionalistas. Isso é para ele uma grande preocupação. O nacionalismo é inimigo de tudo o que ele pretende que seja a natureza da União Soviética. Por isso persegue esses grupos, mas não creio que o faça pelas mesmas razões que Hitler. Note que existem alguns judeus no aparelho soviético, e até no governo, e sabemos como Estaline pode eliminar qualquer um que trabalhe com ele…
É interessante, por exemplo, quando ataca a mulher de Molotov, Polina Zhemchuzhina, que era judia. Acusa-a de estar a promover o Estado Judaico de Israel de uma forma que ele considera perigosa. E ela acaba por ser deportada. É verdade, portanto, que Estaline persegue personalidades judias, mas seria errado dizer que o faz com as mesmas motivações que Hitler.
A Operação Barbarossa [invasão da União Soviética pelo exército alemão], na primavera de 1941, é o momento em que estes dois colossos colidem. Como se explica que Estaline, que era tão desconfiado – e apesar de todos os alertas dos seus serviços secretos –, se deixasse apanhar de surpresa?
Essa é uma questão que desconcerta os historiadores há muito tempo. Penso que há duas formas de o perceber. A primeira é: se fores híper-desconfiado do mundo e tiveres um relatório dos serviços secretos a dizer que alguém está prestes a atacar-te, a primeira coisa que fazes é pôr em causa a validade do relatório. ‘Quem está por trás disto?’. ‘Com que intenção me vieram dar esta informação?’.
E quanto mais óbvia a prova, mais predisposto estás a pô-la em causa. Em circunstâncias normais, se é óbvio é porque deve ser verdade. Para ele não: ‘É tão óbvio… o que será que esconde?’. Molotov usa esse argumento depois da guerra. Diz que o problema com os relatórios dos serviços secretos é que não são necessariamente uma antecipação do que vai acontecer, pode haver todo o tipo de motivações por trás deles.
Nós podemos dizer: ‘Ele sabia que os alemães estavam a concentrar soldados junto à fronteira. Como pôde achar que não havia perigo?’. E a resposta é: todos os seres humanos contestam aquilo que não encaixa no seu sistema de crenças. Tentamos sempre prever o comportamento dos outros com base na nossa visão do mundo. Isso pode ser um problema tremendo, porque ao ver isto, Estaline pensa: ‘Hitler teria de ser louco para me atacar’.
Achava que seria uma espécie de suicídio?
Toda a gente sabe que uma das razões por que a Alemanha perdeu a Primeira Guerra Mundial – não se esqueça de que eles têm essas lições muito presentes – foi por ter ficado esmagada numa guerra em duas frentes. E a razão por que Hitler tinha feito o pacto de não-agressão com Estaline tinha sido precisamente para evitar uma guerra em duas frentes.
Portanto Estaline estaria a pensar: ‘Por que haveria ele de invadir, especialmente tendo em conta que nós lhes fornecemos tantas matérias-primas?’. Estaline não conseguia encaixar essa ideia, parecia-lhe completamente ilógica. Porque é eles estão a alinhar-se na fronteira leste? Na cabeça de Estaline, estariam lá para aumentar o seu poder de persuasão quando fossem negociar um novo acordo ou exigir mais matérias-primas.
‘Em qualquer dos casos’, pensava Estaline, ‘seriam loucos em lançar um ataque-surpresa porque eu posso dar-lhes o que eles querem se mo pedirem de antemão’. Para ele, há outras maneiras de interpretar o que dizem os relatórios dos serviços secretos. E ainda havia outra hipótese: ‘Talvez haja mais de uma fação na Alemanha e, entre os generais de Hilter, alguns estejam a ver se eu mobilizo as minhas tropas e lhes dou um pretexto para me atacarem’.
Ele colocava todos esses cenários. E depois há uma segunda razão para ele não estar disposto a acreditar. É que ele percebe que, a acontecer, será possivelmente catastrófico. Percebe que as forças alemãs são incrivelmente poderosas. Ficou chocado com a rapidez com que derrotaram os franceses. Está assustado. E nessas circunstâncias, parte dele, pelo menos, está em negação.
Não quer enfrentar a realidade?
Não quer, de facto. Mas o que pode ele fazer? No lugar dele, em abril ou maio de 1941, se lhe dissessem que ia haver uma invasão muito em breve, o que faria? Ele sabe que está vulnerável, que decapitou o corpo de oficiais do Exército no Grande Terror. Basta ver o péssimo desempenho que os soviéticos tiveram na guerra contra a Finlândia. Estaline está consciente de tudo isto.
Não havia muito que pudesse fazer, então?
Todos os historiadores militares dizem que devia ter mandado recuar as suas forças para mais longe da fronteira. Mas a estratégia do Exército Vermelho era o oposto disso: assim que o inimigo atacasse, avançarem tão rápido quanto conseguissem. Ou seja, teria sido preciso reconfigurar toda a estratégia de defesa numa questão de dias ou semanas. Qualquer um de nós já viu políticos, confrontados com uma situação terrível, ficam paralisados, incapazes de agir. Estaline é um ser humano, e está a reagir a acontecimentos que ele preferia que nunca sucedessem.
A dado momento explica no livro que, ao contrário do que muita gente julga, o objetivo de Hitler nunca foi ocupar todo o território soviético. Quais eram então os seus planos? Forçar um tratado como o de Brest-Litovsk [assinado em março de 1918, em que o recém-empossado governo bolchevique, para sair da guerra, cedeu vários territórios e perdoou dívidas às potências imperiais]?
Isso mesmo. Hitler não é um louco. Ele percebe que é impraticável conquistar toda a extensão da Rússia. Para lá dos Urais, não há nada que ele queira. O que é fascinante é que ele nunca define exatamente onde quer que o seu exército pare. Os soldados foram encarregues de uma tarefa sem um limite definido. Todos sabem que não lhes foi pedido que conquistem toda a União Soviética, mas não têm a certeza de onde devem parar.
Conheci oficiais que combateram em Estalinegrado e eles diziam que falavam entre si da ideia quase mística de atingirem o Volga, o rio largo que corre ao lado da cidade, e de como para lá do rio estava a estepe selvagem russa. E pensavam: ‘Atingimos o Volga. Chegámos’. Talvez fosse esse o objetivo, mas não estava inscrito em nenhuma ordem. As pessoas cometem um erro quando dizem que Hitler nunca devia ter invadido a Rússia, que foi uma loucura. Isso é porque não conhecem as circunstâncias em que terminou a Primeira Guerra Mundial e o tratado de Brest-Litovsk.
Qualquer alemão, naquela época, sabia que era possível fazer um acordo com os soviéticos que os obrigasse a cederem terrenos agrícolas de primeira, porque tinham testemunhado Brest-Litovsk. Se bem que os alemães procurassem, julgo eu, um acordo ainda mais penalizador para a União Soviética.
Referiu Estalinegrado, que foi uma batalha decisiva para o rumo da guerra. Há quem diga que Hitler estava obcecado com Estalinegrado. Estaline também deu ordens para que fosse defendida a todo o custo. Acha que o facto de a cidade ter o nome do ditador russo pode ter pesado a nível simbólico?
Penso que não. O que interessava a Hitler era o petróleo. Se Estalinegrado caísse, teria acesso a todo o petróleo de que precisava. Esta guerra tinha tudo a ver com conquistar território para obter matérias-primas. Uma guerra incrivelmente moderna, se a virmos a essa luz. Qualquer nação moderna precisa de petróleo. A Alemanha não tem petróleo suficiente, por isso vai roubá-lo.
Estalinegrado é um lugar estrategicamente muito importante, porque fica a norte dos poços de petróleo, e para Hitler é perigoso ir buscar o petróleo se Estalinegrado continuar a ser uma base para grandes operações do Exército Vermelho. Por isso não me parece que essas considerações simbólicas estivessem em jogo. E também não acho que Estalinegrado seja o ponto de viragem da Segunda Guerra Mundial.
Acho que o ponto de viragem é antes, em outubro, quando Estaline decide não abandonar Moscovo. Pode defender-se a tese de que toda a história do século XX teria sido diferente se Estaline tivesse evacuado Moscovo. A partir do momento em que não conseguem tomar Moscovo e os americanos entram na guerra, não vejo como os alemães poderiam dar a volta à situação.
Diz-nos que esta guerra visa a obtenção de petróleo e matérias-primas… E talvez trabalho escravo, também?
Sim. Hitler escreve sobre isso no Mein Kampf, no início da década de 1920. Fala em criar um império na região ocidental da União Soviética. Temos de ter noção de uma coisa: tanto o Japão como a Alemanha olham para a Grã-Bretanha e veem um vasto império global que inclui a Índia, de onde os britânicos tiram muitas matérias-primas. E dominam a Índia à distância, com uma administração relativamente pequena ajudada por uma multidão de indianos. Os outros pensam: ‘Por que não temos também um império assim?’.
Hitler queria ter o seu próprio Raj?
Os japoneses decidiram: ‘Vamos ter um império, e vamos tê-lo na China’. Uma das guerras mais sangrentas e mais esquecidas da História é a tentativa japonesa de colonizar partes da China. Do mesmo modo, Hitler olha para a União Soviética.
A Grã-Bretanha é um império marítimo. Já o império alemão seria terrestre, na Europa de Leste – e por isso Hitler sempre pensou que uma parceria entre a Alemanha e a Grã-Bretanha era possível. As duas potências podiam coexistir. Ao mesmo tempo não via esta apenas como uma guerra ofensiva. É certo que queria um império, porque não achava justo não ter um, mas era também uma guerra preventiva porque se dirigia contra povos que considerava uma ameaça.
Que tipo de ameaça?
Em primeiro lugar, são bolcheviques – e ele tinha visto revoluções comunistas na Alemanha no final da Primeira Guerra, por isso tinha um ódio visceral ao bolchevismo e ao comunismo. Em segundo lugar, são eslavos, e ele pensa que os eslavos são povos inferiores. Terceiro, ainda que sejam uma minoria, há um grande número de judeus na União Soviética.
E os judeus, aos seus olhos, são o povo mais perigoso de todos. Portanto ele vai fazer tudo para os eliminar. O que esta guerra tem de muito diferente em relação às conquistas do império britânico, por exemplo, é que, desde o início, Hitler não quer o povo. Isto parece-nos inacreditável, mas Himmler é claro: ‘Queremos a terra, mas não queremos estas pessoas que vivem nela. Precisamos de um pequeno número para servirem de escravos mas na verdade dezenas de milhões deles vão ter de morrer’. Não há nada na História que seja comparável a isto. Costumamos focar-nos no Holocausto porque foi o que aconteceu de facto, mas poucas pessoas sabem que se a Alemanha tivesse ganho teria sido muito pior. E isso estava planeado desde o início, não era um acidente.
Um dos pontos em comum entre o nazismo são os campos de concentração. Vê diferenças importantes entre os campos nazis e o ‘arquipélago de Gulag’?
Vejo. A mais óbvia é que em nenhuma fase o Gulag serve de campo de extermínio. Conceptualmente, o Holocausto é diferente de qualquer outro crime. Ao longo do tempo evoluiu para a decisão de desenvolver meios modernos de extermínio para, numa janela de tempo inconcebivelmente curta, eliminar um povo inteiro. Não conheço equivalente disso.
Mas também podemos olhar para como Estaline decidiu exterminar o povo calmuque. Por causa de um pequeno grupo de calmuques ter colaborado com os alemães, Estaline queria deportar toda a nação. Isto não é muito diferente da visão nazi de que todos são culpados, independentemente do que cada um fez individualmente. Estaline está a dizer: ‘Cada calmuque é culpado’. Até aqueles que combateram pelo Exército Vermelho. Deporta-os para a Sibéria e muito rapidamente a taxa de mortalidade excede a de natalidade, ou seja, vão desaparecendo como povo.
Com a morte de Estaline e outras mudanças políticas, o povo calmuque consegue sobreviver. Mas Estaline tinha-o colocado na rota do extermínio. É diferente do que os nazis fizeram, mas há aspetos que não são dissemelhantes. Em todo o caso temos de sublinhar que o Holocausto é conceptualmente diferente do que Estaline fez, no sentido em que há a decisão de eliminar um povo através de métodos modernos de extermínio. E também é diferente a nível ideológico.
Um especialista em assuntos russos dizia-me uma vez que a principal diferença era que os nazis matavam com gás e os soviéticos matavam com trabalho…
Essa é uma diferença óbvia. Mas os nazis não matavam apenas com gás, também organizaram execuções em massa. Nos massacres de Majdanek [campo de concentração na Polónia ocupada] mataram a tiro mais pessoas do que em qualquer outro período de dois ou três dias com gás. Pode-se contrapor o massacre de Katyn [ordenado por Estaline] mas é um ato isolado para liquidar a inteligência polaca.
A noção de execuções indiscriminadas de mulheres e crianças, como fizeram os nazis na União Soviética, não tem equivalente no império de Estaline. Sim, os soviéticos mataram muita gente com trabalho, mas não houve uma intenção de pegar num grupo particular e dizer: ‘Vamos eliminar todas e cada uma destas pessoas’. Houve muitas vezes negligência completa, falta de cuidado, abusos, torturas, todo o tipo de coisas horríveis. Para que fique claro, é um sistema desprezível. Conheci muitos sobreviventes destes horrores, é um regime revoltante de todos os pontos de vista. Mas não concordo que essa – matar com gás ou matar com trabalho – seja a única diferença entre o nazismo e o estalinismo.
Ia precisamente falar deste traço distintivo dos seus livros que é incorporarem muitos testemunhos recolhidos através de entrevistas. Parece mais próximo do método de um jornalista do que do de um historiador.
Completamente. Eu sempre quis fazer documentários de História. E na BBC, antes de te deixarem sequer chegar perto disso, dão-te formação como jornalista. Sou um jornalista de formação apaixonado por História. Durante um longo período fui diretor dos programas de história da BBC e encomendei e produzi documentários sobre os romanos, as pirâmides ou os astecas.
Em relação aos filmes que fiz, como realizador, produtor e argumentista, o que me atraiu sempre foram as pessoas. Não acredito que tivesse seguido este caminho se as pessoas não estivessem disponíveis para falar. Se eu hoje tivesse 21 anos – quem me dera! – e estivesse a começar a carreira, não passaria tanto tempo a estudar o nazismo, simplesmente porque não poderia falar com ninguém.
A grande alegria do meu trabalho foi conhecer tantas pessoas que viveram naquele período. E também é isso que torna o meu trabalho tão diferente do dos académicos. Sim, eles passaram anos e anos nos arquivos, mas há algo que se ganha ao conhecer pessoas como Oskar Groening, que foi membro das SS em Auschwitz, poder fazer-lhe as perguntas. É incrível, porque permite-te estender a mão e tocar no passado, o passado está ali sentado à tua frente.
A maior parte dos momentos memoráveis da minha carreira foram esses encontros, como quando conheci o sonderkommando Toivi Blatt, que esteve em Sobibor [campo de extermínio na Polónia ocupada], e pude perguntar-lhe como se sentia ao ter de trabalhar como prisioneiro judeu a limpar cadáveres. Como é? Como é que isso te transforma enquanto pessoa? Tive a sorte de, quando comecei, os antigos nazis, por exemplo, estarem numa idade em que começavam a reformar-se, e sentiam que podiam falar sem receio de sofrer consequências.
O segundo grande golpe de sorte foi a queda do Muro de Berlim, que me permitiu a mim e à minha equipa ir à antiga união Soviética. Muita gente que tinha vivido aqueles tempos nunca tinha tido oportunidade de falar abertamente. E agora podiam. Por isso conseguimos reunir este material em que ninguém alguma vez tinha tocado. Isso mudou a minha vida.
Há um provérbio africano que diz: ‘Um velho a morrer é uma biblioteca em chamas’. Conhecia?
Não conhecia, mas é tão verdadeiro.
Encara estas pessoas como arquivos vivos, arquivos falantes?
Quando comecei, há trinta anos, muitos historiadores olharam com desdém para isto. [imita um tom enfadado] ‘Como podes confiar no que as pessoas dizem, nas memórias?’. E afinal nos últimos anos vejo cada vez mais académicos a fazê-lo. Mas claro que não se pode levar à letra tudo o que nos dizem. Se falares com um homicida, ele vai dizer-te sempre: ‘Acredita em mim, não fui eu’. Vamos escrever que não foi ele? Não, vamos investigar. Foi isso que me ensinaram a fazer na BBC. Já um académico não tem esse treino. E, de resto, descobri que os documentos podem mentir tanto como as pessoas, ou até mais.
Regressando ao tema do seu livro, Hitler disse desde o início aos seus generais para nesta guerra com a União Soviética porem de parte todas as noções tradicionais de cavalheirismo e de honra. As atrocidades cometidas pelos alemães acabaram por virar-se contra eles quando, por sua vez, o Exército Vermelho marchou sobre a Alemanha?
Sem dúvida. No verão de 1943 os italianos perceberam que estavam a perder a guerra. E por isso conseguiram ver-se livres de Mussolini e assinar a paz com os Aliados. Porque é que os alemães não fizeram o mesmo? O povo alemão sabia que estava envolvido nesta guerra terrivelmente violenta e cheia de atrocidades contra os soviéticos e também sabia que os judeus estavam a ser perseguidos.
E foi levado a acreditar que caso baixasse os braços viriam aí hordas de eslavos que eram uns monstros e uns violadores. Foi um caso típico de ‘quem semeia ventos colhe tempestades’. Há um aspeto curioso. Muitos soldados do Exército Vermelho com quem falei disseram-me: ‘Quando chegámos à Alemanha e vimos como eles eram ricos não conseguíamos percebemos porque é que eles nos tinham invadido’.
Como reagiu Estaline à notícia de que Hitler se tinha suicidado?
Não acreditou. Nós sabemos que Hitler morreu no bunker, mas Estaline viu nisso uma oportunidade para montar mais uma teoria da conspiração e dizer: ‘Os Aliados capturaram-no ou estão a protegê-lo’. Acho que ele teria feito isso. Diria que Hitler tinha morrido e punha-o numa jaula e levava-o para Moscovo. Estaline é alguém que quando vence não tem sentimentos de piedade.
Sabemos que Estaline leu o Mein Kampf, bem como os depoimentos do ajudante e do mordomo de Hitler. Esta curiosidade era recíproca?
Penso que sim. Hitler, na década de 30, quando começam as purgas, diz a Goebbels: ‘Estaline deve ter uma doença no cérebro’. Mais tarde, quando os oficiais conspiram para o matar, Hitler diz a Goebbels: ‘Afinal Estaline tinha razão’. Tenho a certeza de que ambos tinham uma admiração gigantesca pela crueldade um do outro.
Quando Ribbentrop vai a uma segunda reunião em setembro de 1939 para finalizar alguns pormenores do pacto nazi-soviético, o que vemos é que estas duas nações são capazes de se entender fantasticamente bem. Não há moral, não há piedade, não há vida democrática – há apenas poder.
Ao fim de 30 anos a estudar estas duas personalidades, qual deles – Hitler ou Estaline – se lhe afigura mais complexo, mais desafiante?
Hitler. Imaginemos que quando estava em Munique, antes da Primeira Guerra Mundial, tinha sido atropelado por um autocarro. É difícil imaginar como tudo teria sido tão diferente. Claro que Estaline também tem as suas ambições, e o que ele faz é incrível: reorganiza um país gigantesco. Mas em última análise é sempre cauteloso, penso que não tinha qualquer plano para dominar o mundo. O que obtém depois da Segunda Guerra é uma consequência do conflito. Ele limita-se a aproveitar a oportunidade.
É uma figura revolucionária, mas não é o responsável pela revolução, é alguém que se mantém sempre na sombra de Lenine e é fundamentalmente um burocrata. Um burocrata brutal, sinistro e medonho. Já Hitler era carismático. Podemos dizer que este indivíduo tomou três das decisões que tiveram maiores consequências na História do mundo. A primeira foi a de invadir a Polónia, que ele sabia que podia desencadear uma guerra mundial.
A segunda foi a de invadir a União Soviética em 1941 e começar a maior e mais sangrenta guerra que o mundo já viu, e alguma vez vai ver – não consigo imaginar uma guerra equivalente, porque quando chegar perto desse ponto envolverá armas atómicas. Esta foi a maior guerra terrestre a que o mundo assistirá (até podemos ser todos eliminados por bombas atómicas, mas em termos de luta militar, não será sequer parecido).
A terceira foi a ideia do Holocausto. Cada uma destas três decisões moldou a História da segunda metade do século XX. E foram todas decisões pessoais. Isso torna-o um dos indivíduos mais extraordinários que alguma vez viveu. É um legado de horror, mas é um legado e tanto.