O filósofo alemão Friedrich Nietzsche escrevia que “temos a arte para não morrer da verdade”. Leonardo da Vinci defendia que esta “diz o indizível; exprime o inexprimível, traduz o intraduzível” e Oscar Wilde acreditava que “a arte começa onde a imitação acaba”. Sendo também ela o espelho da cultura de um país, como lidar com o seu roubo?
Adelaida Segarra, curadora da exposição Burgos. Légua zero da viagem de Magalhães Elcano, organizada pela Fundação VIII Centenário da Catedral de Burgos 2021, Espanha, e também professora de História da América da Universidade do mesmo município, foi surpreendida ao descobrir em 2019 que o primeiro mapa do Caribe, desenhado em 1514 pelo diplomata e historiador Pedro Mártir de Anglería juntamente com o arcebispo e cartógrafo real Juan Rodríguez de Fonseca, tinha desaparecido. Ao procurar entre as páginas de um livro onde o mapa repousou durante cinco séculos, a historiadora deparou-se com outra representação cartográfica daquela região no lugar da de 1514.
Por ser considerada “uma joia de valor político incalculável para a época e histórica hoje”, Segarra fez “soar os alarmes” e a polícia espanhola começou a investigar.
A aplicação digital da Interpol A Organização Internacional de Polícia Criminal, mundialmente conhecida pelo seu acrónimo Interpol, integrou então o “desenho” de há 500 anos na sua aplicação ID-Art, que “ajuda a descobrir bens culturais roubados, reduzir o tráfico ilícito e aumentar a probabilidade de recuperação desses mesmo”. Mais de 52 mil objetos de arte de 134 países membros – 723 deles espanhóis – roubados de catedrais, museus, coleções particulares e até mesmo do Palácio Real já foram identificados.
Corrado Catesi, coordenador de obras da Interpol, afirmou ao jornal espanhol El País que a base de dados da aplicação inclui fotografias, descrições e detalhes de todos os objetos. “É o único banco de dados global com certificado de informações policiais sobre peças roubadas ou perdidas”, elucidou, frisando que quem acede à aplicação tem a sua identidade protegida, para que “ninguém tenha medo de consultá-la”. “A subtração de tais joias artísticas e históricas criou um mercado ilícito e fluido que se espalha pelo mundo e cresce porque os países entram em conflito”, declarou o coordenador. “O mesmo se aplica às escavações arqueológicas ilegais”, acrescentou. Durante a pandemia, a Interpol detetou um “aumento acentuado das escavações ilegais na África, de 32%, na América, 187%, e, sobretudo, na Ásia e região do Pacífico Sul, com um aumento de 3.812%, em comparação com 2019. A razão? Segundo o responsável, este aumento pode estar relacionado com o facto de os locais arqueológicos e paleontológicos estarem, por natureza, “menos protegidos e mais expostos a escavações ilegais”.
No caso de Espanha, a base de dados mostra mais de setecentos objetos: armas, retábulos, pinturas, esculturas, miniaturas, coroas, altares romanos, capitéis, manuscritos, livros e obras com as mais diversas origens e cronologias.
Algumas das obras roubadas em Espanha É o caso de uma pintura chamada O Sonho de San José, roubada de uma casa particular em Villanueva de la Cañada, Madrid, no dia 1 de setembro de 2015. Segundo o jornal espanhol, no roubo, os ladrões “desativaram o sistema de alarme da residência para entrar e roubar esta valiosa obra pictórica juntamente com um desenho”, intitulado Caricaturas de cabeças. Ambas as obras estão atribuídas a Francisco de Goya. A lista inclui também várias obras de Salvador Dalí, incluindo Minotauro, uma estátua de bronze de 1981, com 1,46 metros de altura. De acordo com a Delegacia Geral da Polícia Judiciária, “a escultura também foi roubada de uma residência particular em Madrid, em 2015”.
“Em geral os ladrões preferem obras mais manejáveis e fáceis de transportar, mas isso não tem sido uma norma”, revelou Catesi. De acordo com o responsável, ao que parece, os criminosos não fazem distinções no tamanho dos objetos de valor que roubam. Na base de dados, também se encontra uma tapeçaria com 2,75 metros de altura e 3 metros de largura do século XVII, da escola francesa de Gobelins.
Uma miniatura que representava o escritor Miguel de Maraña, pintada por Bartolomé Murillo, foi também roubada das Irmãs da Caridade de Sevilha, em 1980 . Numa manhã, os responsáveis depararam-se com a vitrina onde esta tinha sido guardada vazia. A obra, de apenas seis centímetros, tinha sido doada pela superiora do convento de Santa Paula à Irmandade da Caridade. A fechadura da vitrina não apresentava quaisquer sinais de arrombamento.
Entre as obras desaparecidas constam ainda Busto de Mulher, retrato pintado por Picasso em 1938 e roubado em 1999, bem como o Retrato de um Homem, uma pequena obra de 33 centímetros de altura e 44 de largura – sobre a qual a Interpol oferece poucas informações.
Mas e se dissermos que nem mesmo um dos edifícios mais protegidos da Espanha, o Palácio Real de Madrid, está a salvo? Em 1989, os ladrões levaram dois pequenos quadros: o Retrato de uma Senhora, do artista Carreño de Miranda, e o Retrato do arcebispo Fernando Valdés, por Diego Velazquez.
As obras estavam guardadas numa área fechada ao público, mais precisamente na Sala Velázquez. O que surpreende na situação é que as fechaduras haviam sido trancadas recentemente e “todas as chaves mestras do prédio haviam sido alteradas por precaução”. Para ter acesso ao quarto, era necessário ir acompanhado por um segurança, por isso as investigações começaram pelos próprios trabalhadores do edifício: pessoal das empreiteiras que trabalhavam no palácio, mas também pessoal da conservação e restauro, “que tem maiores possibilidades de colocar objetos como estes no mercado”, afirmou na altura a Polícia.
Mais recentemente, em setembro de 2003, o artista Jaume Plensa embarcou num avião para Paris, onde foi organizada uma exposição na Galeria Lelong. Lá seriam exibidos 18 das suas esculturas e 26 dos seus desenhos e colagens. Plensa decidiu transportar pessoalmente as suas obras, colocando-as numa pasta. Mas não esperava aquilo que aconteceria a seguir: as obras desapareceram simplesmente enquanto o artista esperava sentado no terminal El Prat
“São gangues altamente especializadas, com ligações com o mundo das armas e drogas”, revelou o coordenador da Interpol. O roubo de obras de arte é “o quarto negócio ilícito que mais movimenta dinheiro no mundo, depois de drogas, armas e prostituição”.