Por Rui Patrício, advogado
«Cautela, amigos, com o olho mobilado pelo lugar-comum».
Alexandre O’Neill, ‘Olha o Passaroco!’, in Uma Coisa em Forma de Assim
Nunca como agora se discutiu (enfim, digamos ‘discutir’, com generosidade conceptual) a justiça no nosso país. Embora raramente a pretexto de uma análise global e profunda da mesma, e quase sempre a propósito de uma dúzia de processos ou, melhor dito, de ‘casos’, como se os mesmos (ou a representação comunicacional e parcial deles) fosse espelho de uma realidade muito mais vasta e complexa. Nessa discussão, avultam, do ponto de vista do diagnóstico, o tremendismo (’está tudo muito mal’) e, do ponto de vista das causas, a estafada conversa da treta que aponta a ‘falta de meios’ e/ou o ‘excesso de garantias’ como os culpados disto tudo. Ora, tenho para mim, que conheço bem a justiça e vivo nela profissionalmente há quase três décadas, que «não está tudo mal» e que as causas do que não está bem e poderia estar melhor não radicam nem na ‘falta de meios’ nem ,muito menos, no ‘excesso de garantias’.
Aliás, e insisto no que já disse várias vezes (desculpem a teimosia), a justiça está globalmente bem melhor do que estava há vinte ou trinta anos. E, no que não está bem e no que piorou, não se trata essencialmente de falta de meios – pese embora em certas áreas, sobretudo técnicas, um reforço ajudasse, e em todas as áreas uma melhor noção de gestão de meios também viesse a calhar. E muito menos se trata de excesso de garantias, excesso aliás que não existe, antes pelo contrário, sendo certo que nos últimos vinte anos o caminho foi sempre a cortar e a erodir garantias (é fazer a lista, muito fácil, basta querer e basta saber do que se fala). E assim, aliás, prevejo que continue, até ao dia em que cada qual, certamente com surpresa, leve com a marreta processual, musculada e muito ‘eficiente’, na cabeça desprevenida. Prevejo que continuará, sim, porque é um caminho fácil, barato, e dá milhões (de likes), e quadra bem com a pedra-de-toque da nossa atualidade, que é, numa revisitação evolutiva de Andy Warhol, o pensamento instantâneo, onde todos têm que ter, sobre tudo e mais alguma coisa, opinião e (muitas vezes) iniciativa, de preferência ruidosas e/ou chocantes. E sempre rápidas, a galope, para diante é que é o caminho. Não são já tanto os quinze minutos de fama que dão sentido à existência, mas os quinze minutos de ‘acho que’; e vamos lá, com som e com fúria.
Os problemas (que os há) são outros, os verdadeiros problemas, e resumem-se numa dúzia ou pouco mais de palavras, sobre as quais, havendo disposição, tempo, energia, serenidade e, last but not least, coragem, podíamos discutir a sério, e quem sabe melhorar um pouco. São estas as palavras principais, a meu ver: formalismo; ritualismo; protagonismo; corporativismo; egocentrismo; ineficiência; preguiça; calculismo; ressentimento; populismo; tabloidização; desconfiança; e cinismo. (Ah, e já agora, a praga do copy and paste, com o qual se tapa o sol com uma popular, embora muito remendada, peneira, que toda a gente vê mas que nem uma criança ousa dizer, como disse no conto do rei que ia nu.)
E ninguém é inocente, embora haja graus diferentes de culpa, como em tudo na vida. Mas para lá chegarmos, ao verdadeiro diagnóstico e à tentativa de terapêutica, era preciso termos, individual e coletivamente, todos os órgãos bem no sítio e a funcionar bem, em especial os três que Camilo Castelo Branco destacou: coração, cabeça e estômago. E um quarto, que mesmo metaforicamente não fica bem (até porque não é politicamente correto) enunciar aqui, em letra de forma. Mas que era preciso, era. Dava era uma trabalheira dos diabos. E não entretinha nada. O que não pode ser, pois vivemos num tremendo (isso sim, tremendo) horror ao esforço e ao vazio, e todos os dias, a todas as horas, há que dizer coisas e fazer coisas, ou fazer de conta que sim. E tudo muito em ismo. Uma espécie de histerismo. A discussão sobre a justiça, no divã de um Freud, dava um rendimento tremendo. Ai, isso dava, dava. Desde que, claro está, se baixasse um pouco o volume, porque não há ouvido que aguente.