«Temos a unidade quase toda cheia. E está cheia porque os casos estão a aumentar e as crianças não estão vacinadas, basicamente resume-se a isso, pelo que o melhor a fazer neste momento é vacinarem-se, crianças e adultos». O apelo é de Maria João Brito, diretora do Serviço de Infecciologia do Hospital Dona Estefânia, em Lisboa.
Ao Nascer do SOL, a médica confirma que, tal como tem estado a acontecer noutros países, nota-se um aumento das admissões de crianças. Segundo o Nascer do SOL apurou, as crianças são uma pequena parte dos agora mais de mil internados nos hospitais com covid-19, mas são já mais de duas dezenas na faixa etária dos 0 aos 9 anos a nível nacional, tendo duplicado na última semana. E são mais do que os adolescentes, que tiveram acesso à vacinação no regresso às aulas em setembro.
É em Lisboa que, para já, se nota uma maior subida dos internamentos em todas as faixas etárias, mas, tal como aconteceu na África do Sul e se repete no Reino Unido, onde por exemplo desde dia 24 as admissões hospitalares duplicaram, a ideia de que a variante Omicron, podendo ser menos severa, poderia ter um impacto ligeiro na pressão sobre os hospitais parece começar a dissipar-se pelo impacto que tem a escalada das infeções. Mesmo sendo uma percentagem menor a precisar de internamento – cálculos que será preciso tempo para fazer a nível nacional -, os números começam a falar por si. Dados a que o Nascer do SOL teve acesso mostram que, por exemplo, em Lisboa, onde o espalhamento da Omicron se deu mais rápido, o número de doentes internados subiu de 314 na quarta-feira da semana passada, 23 de dezembro, para 445 esta quarta-feira (os dados ontem disponíveis). É um salto de 41% no espaço de uma semana, e em especial nos últimos dias. Sobre o maior internamento de crianças, que começou por ser sinalizado na cidade de Gauteng, onde se viveu o primeiro surto de Omicron, e já está também a fazer soar alertas nos EUA, Maria João Brito diz que não se pode dizer que seja a variante que afeta mais as crianças, simplesmente há que ter em conta que quem não está vacinado tem mais risco. E a maioria das crianças mais pequenas ainda não está. No caso do seu serviço, a maioria das crianças, internadas com pneumonia e também alguns casos de síndrome multi-inflamatória (MIS-C), não tinham doenças prévias. «Não sei se é a Omicron que atinge mais as crianças, se calhar não é. Mas as crianças não estão vacinadas e esse é o problema. Os casos vão subir mais. Sabemos que a vacinação foi antecipada nas faixas etárias mais novas mas teremos de ver se iremos a tempo para evitar uma maior subida nos internamentos, sobretudo com o início das escolas», diz, sublinhando que não se internam crianças que não têm necessidade disso, só em último caso, pelo que é um indicador a acompanhar.
No caso do Hospital D. Estefânia, em breve poderá motivar o alargamento da área de internamento covid-19, como aconteceu no pico do ano passado. Maria João Brito relata também alguns casos de adolescentes internados nos últimos dias, que não estavam vacinados por opção das famílias. «As crianças não estão vacinadas porque a maioria não o puderam ser ainda. Tivemos já três adolescentes que não estavam vacinados porque os pais também não estavam e depois quiseram vaciná-los, mas naquele momento já não dava e as pessoas ficam angustiadas quando veem as crianças com problemas de falta de ar, o que é compreensível. Mas quando falo da importância de vacinar é vacinar em todas as idades e que quem não está ainda vacinado se vacine, é a única hipótese que temos de acabar com a pandemia e não é só cá, é em todos os países», insiste, sublinhando que até aqui os dados nacionais têm mostrado um menor risco de hospitalização e letalidade entre os vacinados.
Os últimos dados tratados pela Direção-Geral da Saúde reportam ao mês de outubro e mostram que, naquele mês, por cada 100 pessoas com mais de 70 anos não vacinadas, 7,7 precisaram de ser internadas, o que contrasta com duas entre os vacinados. Nos idosos com mais de 80 anos, já com reforço, em cada 100 casos diagnosticados 4,7 precisaram de ser internados, o que contrasta com o rácio de 26 por cada 100 idosos sem vacina. E há idosos com mais de 80 anos sem vacina? Há: apesar dos boletins da DGS falarem de cobertura de 100%, os dados dos Censos revelaram que há mais pessoas em Portugal do que aquelas que se estimava, pelo que a cobertura vacinal neste grupo etário rondará os 97%, algo que a DGS disse ao Nascer do SOL que irá corrigir no início de 2022.
Com o aumento explosivo de diagnósticos de infeção associado à Omicron, que não é só o aumento da testagem que explica porque a positividade em Portugal duplicou no espaço de uma semana para mais de 8% e noutros países como a Irlanda vai perto dos 50%, mesmo com o reforço da vacina o cenário em termos de pressão sobre os serviços de saúde, com mais folga do que há um ano mas também com maior ocupação por outros doentes, parece complicar-se.
A DGS reduziu ontem o tempo de isolamento de 10 para sete dias, mas os cenários sobre o potencial absentismo apontam que poderá haver 600 mil a 650 mil pessoas isoladas em Portugal, entre infetados e contactos, na próxima semana, 6% da população. Podendo vir a ser menor, até porque boa parte dos rastreios e determinações oficiais de isolamento profilático já não estão a ser feitos em tempo útil, o cenário é mantido pelas instituições internacionais como sendo de risco elevado.
Nos EUA, o facto de ter sido reduzido o tempo de quarentena para os profissionais de saúde está a gerar críticas, mas em caso de necessidade é um cenário que começa a ser encarado. O que acontecerá depois das primeiras semanas de incerteza em janeiro sobre a severidade e impacto na mortalidade da Omicron – ainda assim mantém-se a expectativa na comunidade científica de que venha a ser menor do que há um ano – permanece em aberto. Mas começa a ganhar lastro a ideia de que, se for uma variante mais benigna e as vacinas mantiverem um nível de proteção elevado, a infeção natural de uma parte significa da população ao longo dos próximos meses pode não ser «má notícia». «Querer parar este vírus é como querer parar as constipações no inverno», disse ao Nascer do SOL o epidemiologista Manuel Carmo Gomes, que admite esse cenário de infeção natural, mas por agora é preciso acompanhar o impacto nos internamentos. Mudar o modelo de resposta à covid-19, com os cuidados primários assoberbados como nunca e a saúde pública sem conseguir dar vazão, é o que pedem os médicos, defendendo uma mudança de estratégia em que assintomáticos deixem de ser acompanhados telefonicamente pelos médicos e passem a ter por exemplo uma linha à qual possam recorrer caso tenham sintomas ou estes se agravem.
Na próxima semana, o Governo reavalia a situação, mas o cenário parece complicar-se e haverá ainda poucos dados sobre o impacto do Ano Novo e mesmo os internamentos, que começaram a aumentar em Lisboa, poderão estar a iniciar a trajetória de subida noutros pontos de país. Até agora sem sinais de alarme nos cuidados intensivos, espera-se por mais tempo para perceber se os doentes agravam, tendo sido os primeiros indícios de Inglaterra de que os internamentos podem ser mais curtos.
Mas 2022 começa com o nível de contágio na população a entrar em território desconhecido, em particular nos países mais desenvolvidos e com população mais idosa, que foram os que lidaram com o maior número de mortes desde o início da pandemia.