É impossível subestimar a importância do ano de 1922 para a literatura. Em janeiro, Franz Kafka, a quem restam pouco mais de dois anos de vida, redige o grosso do enigmático O Castelo.
Em fevereiro, Rilke escreve os seus Sonetos a Orfeu e termina as Elegias de Duíno. Também em fevereiro, no dia 2/2/22, a livraria Shakespeare and Company, em Paris, publica Ulysses, o romance modernista com que James Joyce revolucionou a literatura do século XX. Pela mesma altura, T.E. Lawrence termina finalmente e manda imprimir às suas custas Os Sete Pilares da Sabedoria, depois de ter perdido o manuscrito inicial num comboio.
Em abril, sai pela Gallimard Sodoma e Gomorra II, o quarto dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
Em junho, a Collier’s publica The Diamond as Big as the Ritz, de F. Scott Fitzgerald.
Em outubro, T. S. Eliot funda a influente revista The Criterion, onde aparece o seu famoso poema ‘The Wasteland’. Também em finais de outubro, Viriginia Woolf escreve a história que estará na base de Mrs. Dalloway.
No mês seguinte, a 18 de novembro, Proust morre de pneumonia no seu apartamento, tendo ainda conseguido terminar o seu magnum opus na cama.
Entre outros, estão em plena atividade Fernando Pessoa, o irlandês W. B. Yeats, o alemão Thomas Mann, o suíço Herman Hesse e o argentino Jorge Luis Borges.
Curiosamente, dois dias antes da morte de Proust em Paris, nascia na modesta aldeia da Azinhaga do Ribatejo José Saramago. O grande romancista francês e o único português galardoado com o Nobel da Literatura (1998) ainda foram contemporâneos por umas breves 48 horas.
Ano saramago em perspetiva
Escrevia Saramago, no aclamado Ensaio sobre a Cegueira, publicado em 1995, que «dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos».
Essa «coisa», no caso do escritor ribatejano, era uma constelação de universos, que desapareceu em 2010, em Tías, Espanha, mas deixando para trás uma vasta marca da sua presença sobre a Terra.
O centenário do nascimento do Nobel português «constituirá uma oportunidade privilegiada para a consolidação da presença do escritor na história cultural e literária, em Portugal e no estrangeiro», anunciou Carlos Reis, comissário para o Centenário de José Saramago, no site da sua fundação. Além do escritor, será recordada e homenageada a «sua figura como cidadão».
As celebrações, aliás, já começaram: na noite de dia 16 de novembro, no São Luiz, em Lisboa, a escritora espanhola Irene Vallejo leu o seu Manifesto pela Leitura, seguindo-se um concerto pela Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Na aldeia da Azinhaga foi plantada a 99.ª de uma centena de oliveiras. Nessa mesma terça-feira, alunos de mais de uma centena de escolas portuguesas, mas também estudantes em Espanha, Brasil e outros países da América Latina, fizeram uma leitura, em simultâneo, do conto A Maior Flor do Mundo.
O amplo programa de evocação do centenário está distribuído por quatro eixos: «O eixo da biografia, dando atenção ao trajeto biográfico, formativo e cívico do escritor, em relação com a sua produção literária; o eixo da leitura, entendendo-se o centenário do escritor como momento adequado para se revigorar a leitura da sua obra e também para conquistar novos leitores, desejavelmente jovens; terceiro, o eixo das publicações, tanto no plano das obras evocativas, de divulgação ou de extensão transliterária, como no das edições ilustradas, com iconografia do escritor e da sua obra; o eixo das reuniões académicas, uma vez que José Saramago é um escritor com forte presença na academia, em Portugal e no estrangeiro, motivando reuniões científicas em diferentes locais», enumera Carlos Reis.
Do programa comemorativo para o próximo ano fazem parte a edição de uma fotobiografia, cinco conferências comissariadas pelo escritor argentino Alberto Manguel, um Colóquio de Estudos Saramaguianos no Brasil, a edição de uma moeda comemorativa e um ciclo de cinema pela Cinemateca Portuguesa. Regressa ainda aos palcos a ópera Blimunda, de Azio Corghi e José Saramago, inspirada na personagem do Memorial do Convento, e estreia o espetáculo de teatro de rua A Passarola, pelo Trigo Limpo Teatro ACERT.
A 16 de novembro de 2022, uma centena de escolas do ensino secundário promoverão ainda a leitura, em simultâneo, de páginas dos romances Memorial do Convento e de O Ano da Morte de Ricardo Reis, que o crítico George Steiner considerou «um dos maiores romances da literatura europeia recente». Nesse dia será plantada a centésima oliveira na Azinhaga.
Joyce aos 40, Ulysses aos 100
Lá fora, o mundo académico e literário celebra o centenário da publicação de Ulysses, o difícil e colossal romance de James Joyce que Marilyn Monroe foi fotografada a ler num parque infantil. Terminado em 1921, Ulysses foi saindo em ‘fascículos’ na americana The Little Review, acabando por ser alvo de um processo por obscenidade.
Incapaz de publicar o seu livro no mundo anglo-saxónico, Joyce aceitou a oferta de Sylvia Beach, dona da livraria anglófona Shakespeare and Company (que não corresponde à atual Shakespeare & Co, nas margens do Sena) depois de se conhecerem num jantar em Paris em 1920. Reza a história que, às sete da manhã de 2 de fevereiro de 1922, Beach foi à Gare de Lyon receber os primeiros exemplares recém-impressos do ‘livro proibido’ de Joyce, trazidos pelo maquinista da locomotiva que vinha de Dijon, deixando um na morada do escritor e colocando outro na montra da sua livraria. A data coincidiu com o 40.º aniversário do escritor.
No centenário da publicação, o Trinity College de Dublin organiza um simpósio em torno de Ulysses. Também em Dublin, o Museu da Literatura da Irlanda, vai assinalar a data, com o lançamento da plataforma digital Ulysses 100, que reunirá artigos, exposições online e filmes.
No centenário da morte de Proust
Foi poucos meses depois de ter terminado o seu mítico manuscrito de milhares de páginas que o asmático Marcel Proust contraiu a gripe que iria provocar uma infeção fatal nos seus pulmões. As derradeiras horas de vida do escritor ficaram descritas pela sua governanta Céleste Albaret em Monsieur Proust (publicado em Portugal pela Imprensa da Universidade de Lisboa).
«‘Não me apague a luz, está bem?’. ‘Monsieur, sabe que eu nunca acharia que me cabe a mim fazer uma coisa dessas. O senhor é que dá as ordens’. ‘Não desligue’, Céleste. Há uma mulher grande e gorda no quarto – uma horrível mulher grande e gorda vestida de preto. Quero poder ver’», pediu o escritor. «’Não se preocupe, Monsieur. Espere um pouco – vou mandá-la embora. Ela está a assustá-lo?’. ‘Sim, um pouco’, respondeu. ‘Mas não lhe deve tocar’».
O comovente final surge poucas páginas depois. Só estavam presentes duas pessoas, além do moribundo: o seu irmão médico e a governanta. «Voltei ao quarto e fiquei ao lado do Professor Proust», descreveu Albaret. «Só estávamos os dois. M. Proust nunca tirou os olhos de nós. Foi horrível. Ficámos assim por uns cinco minutos, até que o professor subitamente avançou, inclinou-se suavemente sobre o irmão, e fechou-lhe os olhos. Ainda estavam voltados para nós».
A cama de ferro onde Proust terminou Em Busca do Tempo Perdido, reviu as provas e soltou o último suspiro encontra-se no Carnavalet – Museu da História de Paris, integrada numa reconstituição do seu quarto, com a sua mobília e objetos pessoais. O Museu tem patente até 10 de abril de 2022 a exposição Marcel Proust – Un Roman Parisien (um romance parisiense), dedicada à presença da cidade na obra do autor. Com 280 peças, entre pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, maquetes, acessórios, peças de vestuário, manuscritos, documentos e filmes de arquivo, a exposição promete um «mergulho imersivo» na história da cidade e no mundo proustiano.
Recorde-se que em 2021 foi publicado Les Soixant-quinze Feuillets (75 folhas), um manuscrito de 1908, quando Proust tinha 36 anos, que esteve durante décadas na posse do editor Bernard de Fallois. Les Soixant-quinze Feuillets foi descrito por Fallois como um «guia precioso» ou mesmo uma espécie de ‘chave’ para a leitura de Em Busca do Tempo Perdido.