Presépios de lata em 2022

Mais tarde, nos fatídicos anos da troika, na voz despida de Rui Veloso, via a sobriedade que nos era requerida de tempos, em que, sem saber como nem porquê, teríamos vivido acima das nossas possibilidades.

Por José Maria Matias, aluno do mestrado de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade Nova de Lisboa

No princípio dos anos 2000, lembro-me de uma viagem de carro com o meu pai pois partilhava o entusiasmo dele por irmos ouvir um álbum de Rui Veloso que tinha acabado de comprar. O álbum teria sido lançado em 1998 e terei escutado pela primeira vez no inverno de 2002. A certa altura, tocou uma faixa com o título: Presépio de Lata. O meu pai parou a cassete e explicou-me que através daquela canção iria perceber que existiam pessoas que não tinham o Natal que eu tinha tido. Que existia pobreza, fome e miséria no país. Estávamos no princípio do século XXI, ainda se vivia no seio do frenesim da Expo-98, dos grandes anos de convergência com a Europa de Cavaco Silva. Foi por esta altura que deixávamos o euro-entusiasmo do futuro e entrávamos numa fase de euro-resignação. As instituições sociais mantinham o combate ao flagelo da toxicodependência, tínhamos saído do pântano de Guterres e começava-se a falar seriamente numa atenção para com a ecologia. Ainda não tinha noção, pela idade, destas realidades, mas já me relacionava, ainda que sem perceber, com este Mundo que já era o meu. 

Por alguma razão que nunca compreendi, a faixa 9 do álbum, Avenidas, não terá sido um dos grandes êxitos de Rui Veloso. Tinha tudo para o ser. Nas plataformas digitais, está longe de ter as visualizações que merecia. No entanto, desde aquele inverno do princípio do século, a música acompanhou-me ao longo dos anos. Tudo parte do dedilhar da guitarra que entrega à voz grave, embargada, resignada, mas consciente de Rui Veloso. A música é um embalo cru numa cadência de perpétuo presente sem horizontes. Poderia ser um retrato daqueles anos de transição e uma profecia do presente. Uma leitura daquilo que iríamos viver, mas também espelho de um tempo em que se combatiam problemas a sério. Mais tarde, nos fatídicos anos da troika, na voz despida de Rui Veloso, via a sobriedade que nos era requerida de tempos, em que, sem saber como nem porquê, teríamos vivido acima das nossas possibilidades. Resultado de anos a fio à sombra do reluzir das luzes incandescentes sobre um artificio rosa fluorescente, que por demasiado tempo nos encadeou a realidade. Contudo, essa, invariavelmente bateu-nos à porta, o que nos deixou assim, despidos e por momentos nem guitarra tivemos. Ficávamos à capela, correndo o risco de a fita parar de vez.

Passados 23 anos do lançamento daquele álbum, o país parte para eleições. De alguma forma, parece que estamos mais distantes do que nunca daquelas lentes, perdemos a capacidade de olhar para os problemas. Nos últimos anos afogámo-nos em discussões estéreis e algumas longe de nós por oceanos. É espantoso que não se perceba que 25 anos de socialismo não deixaram o país mais racista, mas deixaram o país mais pobre. Profundamente mais pobre, sobretudo, da ideia que um cidadão em 1998 poderia ter do seu futuro: o presente de hoje. A pobreza continua a ser o maior obstáculo para um cidadão poder realizar os seus sonhos. Trocou-se o mérito que privilegia o trabalho, por uma igualdade que nos igualizou na miséria. E por fim, um Estado que deveria estar ao serviço das famílias, mas que colocou as famílias ao serviço do Estado. Como se fosse a voz que servisse a guitarra e não a guitarra que estivesse ao serviço da voz. 

Através de uma doutrina moral e de um empobrecimento económico progressivo, sabemos que o Socialismo nunca gostou de presépios. Mas, então, o que lhes sobrou? A lata. Essa sim, em abundância e que não se inibem de distribuir. Jingle Bells.