Inspirado no romance Bambi, A Life in the Wood, escrito pelo austríaco Felix Salten, o desenho animado produzido pela Disney em 1942 encantou gerações e consolidou o seu estatuto de “clássico” do cinema pouco tempo depois do seu lançamento. A quinta longa-metragem de animação dos estúdios da Walt Disney não deixa ninguém indiferente, já que o personagem principal – Bambi, um pequeno cervo – que vive numa floresta com a sua mãe e os seus amigos animais, fica órfão após a morte da progenitora, vítima de caça.
Contudo, segundo o jornal britânico The Guardian, o conto original de Bambi, teve uma origem muito mais sombria do que aquela que todos conhecemos – como “um romance existencial sobre perseguição e antissemitismo na Áustria dos anos 1920”.
O outro “lado” da história Agora, uma nova tradução procura precisamente reafirmar o “lugar de direito” da obra prima de Felix Salten de 1923 na literatura adulta e mostrar ainda, como o escritor, já nessa altura, alertava que os judeus seriam aterrorizados, desumanizados e assassinados nos anos que se seguiram. Rompendo com a versão um tanto higienizada com a qual o público está familiarizado, o novo texto visa “tornar claras as conotações políticas e sociais que ‘construíram’ a versão original”.
A nova edição será publicada pela Princeton University Press e lançada nos EUA no dia 18 de janeiro, traduzida por Jack Zipes, professor emérito de alemão e literatura comparada na Universidade de Minnesota, e ilustrada por Alenka Sottler.
Felix Salten, o autor da obra, era neto de um rabino nascido na Áustria em 1869 e há quem o considere “um produto do florescimento cultural na capital do império austro-húngaro do século XX”. Um escritor prolífico que andou nos mesmos círculos que Sigmund Freud, o pai da psicanálise.
O autor que mudou o seu nome de batismo, Siegmund Salzmann, durante a sua adolescência para se “desmarcar” como judeu na sociedade austríaca, ganhava a vida como jornalista em Viena. Segundo Jack Zipes, Salten foi um visionário, já que “viu a direção para que sopravam os ventos políticos”. “Acho que ele previu o Holocausto. Havia sofrido muito com o antissemitismo quando era pequeno e, naquela época, na Áustria e na Alemanha, os judeus eram culpados pela derrota [do Império Austro-Húngaro] na Primeira Guerra Mundial. Este romance foi um apelo”, disse ao jornal britânico The Guardian.
Quando a Alemanha anexou a Áustria em 1938, Salten conseguiu fugir para a Suíça. Naquela época, tinha vendido os direitos do filme por mil dólares, a um realizador americano, que, em seguida, os vendeu à Walt Disney. Ao que parece, o próprio Salten nunca ganhou nada com a famosa animação. Privado da sua cidadania austríaca pelos nazis, passou os seus últimos anos “solitário e desesperado” em Zurique, morrendo em 1945, como Bambi, sem nenhum lugar seguro para chamar de lar.
Por isso, longe de ser uma história infantil, o desenho animado era, já na altura, e na verdade, uma parábola sobre o tratamento desumano e a perigosa precariedade de judeus e outras minorias num mundo dominado pelo fascismo – quase como se de uma profecia se tratasse.
Em 1935, o livro foi proibido pelos nazis, que o viram como uma “alegoria política sobre o tratamento dado aos judeus na Europa” e uma forma de “propaganda judaica”, o que resultou na sua queima. “O lado mais sombrio de Bambi sempre esteve lá”, sublinhou Jack Zipes. “Contudo, o que acontece a Bambi no final do romance foi escondido pela Disney depois de esta assumir o controlo do livro e transformá-lo num filme patético, quase estúpido, sobre um príncipe e uma família burguesa, acrescentou, sublinhando que romance de Salten é completamente diferente daquilo que foi projetado nos grandes ecrãs e transportado para muitas casas com crianças em todo o mundo.
O enredo “É um livro sobre a sobrevivência na própria casa”, frisou o tradutor. Desde o momento em que nasce, Bambi está sob constante ameaça de caçadores que invadem a floresta e atacam indiscriminadamente. Eles matam qualquer animal que quiserem”.
É claro que os animais da floresta vivem num constante terror, o que acaba por deixar o leitor “nervoso”: “Todos os animais são perseguidos e acho que o que abala o leitor é que também existem alguns animais que são traidores, que ajudam os caçadores a matar”, adianta Zipes.
Depois da mãe de Bambi ser assassinada, o mesmo acontece com o seu querido primo Gobo, que foi levado a acreditar que “era especial” e que os caçadores seriam “gentis” para com ele. Bambi também leva um tiro, mas sobrevive graças a um veado majestoso que o trata como um filho e que pode muito bem ser seu pai. No entanto, também este acaba por morrer, deixando o pequeno protagonista totalmente desolado e por sua conta. “Apesar de sobreviver, Bambi não sobrevive. Está sozinho, totalmente sozinho… É uma história trágica sobre a solidão, mais precisamente, a solidão de judeus e outros grupos minoritários”, aponta. O final dá-nos a sensação de que Bambi e todos os outros animais selvagens da floresta simplesmente “nasceram para serem mortos” e estes sabem que serão caçados e que acabarão por morrer. “O tema principal é: ‘Tu não tens escolha’”, afirmou o também professor.
A determinada altura da obra, duas folhas de uma árvore questionam-se porque é que têm cair no chão e interrogam-se também sobre o que acontecerá nesse momento. “Essas folhas falam muito a sério sobre questões realmente sombrias que os humanos possuem: não sabemos o que vai acontecer connosco quando morrermos e não sabemos porque é que temos de morrer”, reflete.
O poder da história “infantil” A partir de um conto sobre a vida selvagem, numa floresta, Salten conseguiu superar os preconceitos negativos que muitos dos seus leitores mantinham sobre os judeus e outras minorias, defende Zipes: “Isso permitiu-lhe falar sobre a perseguição aos judeus com a liberdade que desejava”, argumentou. Bambi poderia questionar abertamente a crueldade dos seus opressores e, por isso, sem ser didático, conseguiu encorajar o leitor a sentir mais empatia pelos grupos oprimidos: “Muitos outros escritores, como George Orwell, também escolheram animais para fazê-lo, já que estes lhes deram mais liberdade para lidar com problemas que poderiam deixar os seus leitores chateados. Não é isso que se pretende. O desejo é que estes leiam e, no final, reconheçam que se trata de uma tragédia”, elucidou ao mesmo jornal.
Quando foi publicado em 1923, o livro não teve sucesso imediato entre o público. “Apenas quando Salten mudou de editor é que se tornou muito mais bem-sucedido”, explicou Ursula Storch, curadora de uma exposição sobre Salten e outros artistas negligenciados no Wien Museum, à AFP, no início deste ano.
Storch adiantou ainda que, embora o próprio Salten nunca tenha feito um comentário sobre o significado da história, o seu livro é “uma evocação poderosa do lado negro da natureza humana e da relação entre os humanos e o meio ambiente”.
“É um livro profundamente ancorado no seu tempo e é muito mais do que uma simples história infantil sobre a perda de uma mãe”, defendeu o filósofo Maxime Rovere, autor do prefácio de uma edição francesa anterior do livro. Dada “a impressão de medo, a maneira como os animais têm constantemente de fugir”, Rovere disse ainda que é “impossível não fazer o vínculo com a experiência pessoal de Salten”, vivendo como viveu numa era de crescente antissemitismo.
A nova tradução tentará, pela primeira vez, “transmitir em inglês a maneira como certos personagens do romance de Salten têm um talento vienense quando falam em alemão”. “Os animais têm uma maneira maravilhosa de falar, o que faz com que o leitor sinta que está num café em Viena. Dá para reconhecer, logo à partida, que os personagens não falam ‘como os animais falam’. Eles são seres humanos!”, remata Zipes.