Nos grupos brasileiros nas redes sociais dedicados à covid-19, o vírus que dominou as atenções nos últimos tempos começou a dar lugar a outro: o vírus influenza. “Alguém aí com a nova gripe com uma pequena falta de ar que não passa?”, questionava há dias um internauta numa página onde ao longo dos últimos meses só se falou do SARS-Cov-2 e dos seus sintomas persistentes. Abrindo sites noticiosos do outro lado do Atlântico, é também disso que se fala: uma epidemia de gripe associada à estirpe AH3N2 “Darwin”, identificada na Austrália. O que está fora do lugar? É verão no Brasil e as epidemias de gripe sazonal são esperadas no outono/inverno. Na cidade de São Paulo, nos últimos dias havia mais pessoas hospitalizadas com gripe do que com covid-19, noticiou a imprensa, e antes do Natal houve alertas para o risco de uma “tempestade perfeita” com a covid-19 a circular ao mesmo tempo e confirmada a Omicron no país. Esta segunda-feira confirmou-se também no Rio de Janeiro o primeiro caso do que tem sido chamado de “flurona”, a co-infeção com o vírus da gripe e o SARS-Cov-2 ao mesmo tempo, numa jovem de 16 anos.
Ao telefone de Brasília, Isabel Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), explica ao i que a antecipação da época gripal que se tem vivido no Brasil é inédita mas para já não há indícios de que a nova estirpe seja mais severa do que o H3N2 que circula habitualmente e que ciclicamente é associada a anos em que a gripe tem maior impacto na saúde. O problema, explica, é que a população foi apanhada “completamente suscetível”: como no último outono/inverno não houve praticamente gripe, não contactou com o vírus. Por outro lado, a vacina que esteve disponível no hemisfério Sul na última época gripal, destinada a proteger os mais vulneráveis de doença grave, não contemplava esta estirpe do AH3N2 que agora domina as infeções – e que tinha sido prevista pelos grupos de aconselhamento científico da Organização Mundial de Saúde para a época de gripe sazonal deste ano. Aqui importa perceber como funciona o processo: todos os anos, com meses de antecedência, a OMS emite recomendações sobre as estirpes a incluir nas vacinas contra a gripe do hemisfério Norte e hemisfério Sul, que são então produzidas a nível global. No caso do hemisfério Sul, a “receita” fica disponível em setembro e a vacinação inicia-se entre março/abril, apanhando o início do outono, da mesma forma que no hemisfério Norte a campanha da vacinação da gripe começa em outubro. Mas se no caso do Brasil se tenta acelerar o processo, vive-se a época gripal antes do tempo e sem uma vacina específica.
“Tivemos uma antecipação nunca vista da influenza que estava prevista para 2022. Já tínhamos tido em alguns anos o início das epidemias de gripe em janeiro e fevereiro, mas não em outubro como começou desta vez”, resume Isabel Ballalai, sublinhando que cada país é um caso e que há que ter em conta que a gripe circula todo o ano, pelo que é provável que o vírus já estivesse em circulação no último inverno e, que encontrando população mais susceptível, com menos defesas e menos restrições, se tenha espalhado precocemente, como há também mais vírus respiratórios a circular do que no ano passado (um fenómeno idêntico foi sinalizado no verão do hemisfério norte, incluindo em Portugal).
“Tudo isto levou à epidemia de influenza que estamos a viver em boa parte do país”, sublinha a médica, explicando que vêm somar-se agora a esta tendência os aumentos de infeções por Sars-Cov-2 associados à variante Omicron. “Está a começar, mas já existe circulação comunitária, o que estará ligado às viagens de Portugal, da Europa, dos EUA e Canadá, destinos mais populares entre os brasileiros e ao mesmo tempo este período de contactos do fim do ano. As urgências têm estado lotadas com influenza e agora começam a aumentar os casos de covid-19”, diz.
Sobre ilações a tirar desta gripe fora do tempo para o hemisfério Norte, Isabel Ballalai diz que a principal é perceber a importância da vacinação, o que só vem ao de cima nos anos maus de gripe, como o que se vive agora no Brasil ainda no verão. “Sempre que temos uma circulação muito alta da influenza, parece que a população enxerga a gravidade da gripe. Esta cepa não é mais grave que outras, a grande questão é que somos suscetíveis e por isso é expectável que leve a mais hospitalizações, pessoas em UCI e óbitos. A dica, e não é nossa mas o que é sempre dito pelas instituições internacionais, é que a população entenda a importância de se vacinar contra a influenza. No último inverno tivemos uma adesão baixa à vacinação porque as pessoas estavam preocupadas só com a covid-19. Aqui no Brasil até costuma haver boa adesão, mas a população só busca a vacina quando enxerga o perigo. Quando temos um ano com uma época moderada ou baixa de gripe, a população não consegue enxergar o problema, as mortes, as hospitalizações. Quando temos um surto grande como estamos a ter agora, como vivemos em 2016, fica mais claro: toda a gente conhece alguém com influenza, alguém que foi hospitalizado, e isso torna concreto o risco e concreta a necessidade de se proteger”.
Embora se antecipem semanas mais complicadas com os dois vírus em circulação, Isabel Ballalai mantém o otimismo de que o aumento de casos de covid-19 não tenha a mesma severidade das últimas vagas. A preocupação e incompreensão neste momento, diz, é a hesitação na vacinação das crianças, apontando críticas ao Governo de Bolsonaro. “Neste momento estamos a viver mais um capítulo. A nossa agência regulatória, a Anvisa, licenciou a vacina da Pfizer para crianças de 5 a 11 anos, analisando dados de milhões de doses administradas que mostraram um bom perfil de segurança e eficácia, e para nossa surpresa, apesar do comité técnico de imunizações do Ministério da Saúde se ter posicionado a favor da vacinação desta faixa etária, o Ministério da Saúde recebeu um grupo contra vacinas numa audiência fechada e decidiu lançar uma consultoria pública para a população se manifestar contra ou a favor da vacinação. Isto nunca aconteceu no Brasil: a população não tem dados científicos para dizer se faz sentido vacinar ou não as crianças. Infelizmente a cúpula brasileira continua a manifestar-se contra e o nosso Presidente já manifestou que não vai vacinar a filha”.