Portugal passou ontem pela primeira vez a barreira dos 250 mil casos de covid-19 ativos conhecidos: ou seja, 2,5% dos portugueses estão infetados – mas entre assintomáticos e pessoas que nunca chegam a ser diagnosticadas o número será superior. Ao longo do inverno, a projeção é de que 30% da população portuguesa venha a ser infetada, em linha com o que se projeta para o hemisfério Norte. Números que no início da pandemia já teriam feito disparar todos os alertas e que agora, com a vacinação em fase de reforço e uma variante aparentemente menos virulenta, ganham outro significado, mas têm pressionado SNS24, médicos de família, equipas de saúde pública – que vão deixar de fazer todos os rastreios com os infetados a receber um sms com um inquérito para preencher. Já é uma situação comparável à da gripe? É para aí que se caminha? É possível, mas ainda não parece ser o caso deste inverno – e mesmo a gripe tem anos mais severos.
Taxa de ataque mantém-se superior à da gripe sazonal
A Universidade de Washington foi a primeira a avançar há duas semanas com a projeção de que os contágios poderão este inverno superar as infeções de toda a pandemia, prevendo 3 mil milhões de infeções, em particular no hemisfério Norte, já que o SARS-Cov-2, como os outros coronavírus, parece ter uma dinâmica sazonal.
Os números que pareciam elevados começaram a materializar-se em diferentes países, desde logo nos EUA, que superaram um milhão de diagnósticos num dia. As projeções para Portugal não distam muito da modelação feita no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, que esta semana apresentou na reunião do Infarmed um modelo que, no cenário mais conservador, prevê um máximo de 42 mil contágios entre esta semana e a próxima, se a contenção for eficaz, seguida a médio prazo de um aumento de contágios com a abertura das escolas mas com menos força que no período de festas.
Cada modelo assenta nas suas premissas e o do Instituto de Avaliação de Métricas em Saúde (IHME) da Universidade de Washington, que publicamos ao lado, não incorpora medidas locais específicas mas tem em conta a mobilidade na população, que no final do ano já estava mais perto do pré-pandemia e agora sofreu em Portugal e em muitos países europeus outro travão – é esperada uma nova atualização na próxima semana. Mas as restrições não são as do último inverno e com mais contactos e, com uma variante mais transmissível, o expectável é que haja mais infeções. Carlos Antunes, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, estima 3,5 milhões de casos até ao final de março. Para termo de comparação, a gripe sazonal tem uma taxa de ataque de 5% a 15% da população, pelo que se projeta que a taxa de ataque do SARS-Cov-2 este inverno possa ainda ser o dobro do que seria normal numa época de gripe sazonal. Mas não são os únicos números que se podem usar como termo de comparação: atualmente, mesmo com rácios mais baixos de internamento por covid-19 do que antes das vacinas, esta quinta-feira havia 161 doentes internados com covid-19 em cuidados intensivos no Serviço Nacional de Saúde. Na última época de gripe sazonal antes da covid-19, no inverno de 2019/2020, passaram por cuidados intensivos 121 doentes com gripe ao longo dos cinco meses de monitorização da gripe feita pelo Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, menos do que os que hoje estão internados em simultâneo com covid-19. Foi uma época moderada, mas nos anos com maior impacto chegam aos 150 a 200.
Os dados dos boletins que não mostram tudo
Em termos de internamentos, um estudo divulgado no ano passado concluiu que em dez anos, entre 2008 e 2018, foram identificadas um total de 13.629 hospitalizações devido à gripe. Quantas hospitalizações motivou ao todo a covid-19? O Nascer do SOL tenta há várias semanas ter dados atuais junto da Direção-Geral da Saúde e da Administração Central do Sistema de Saúde, sem sucesso, mas um levantamento até agosto a que foi possível ter acesso indiciava que tinham estado internados até aí mais de 60 mil doentes com diagnóstico de covid-19 nos hospitais do SNS (note-se que alguns podem ter covid-19 como diagnóstico principal ou secundário, ou seja não ter sido a covid-19 que os levou ao hospital). Esse movimento de doentes, tendo uns alta, permanecendo outros vários dias no hospital e outros acabando por falecer, não transparece nos boletins da DGS, que só mostram os internados a cada momento. O que, mesmo na situação atual em que a pressão hospitalar é substancialmente menor do que há um ano do lado da covid-19 mas maior do lado não covid, pode não dar ideia do movimento que continua a sentir-se nos hospitais, que começou por ser crescente na região de Lisboa e se estende também ao Norte do país.
Um exemplo da última quinta-feira: ontem, no boletim da DGS, podia ler-se que no espaço de 24 horas houve mais 42 internados com covid-19 nos hospitais do SNS, elevando-se o total para 1353.
Dados a que o Nascer do SOL teve acesso permitem concluir que na região de Lisboa, em 24 horas, o número de doentes internados com covid-19 nos diferentes hospitais da região subiu de 622 para 650, portanto mais 28 doentes internados do que no dia anterior. Mas nessas mesmas 24 horas 60 doentes foram dados como recuperados, ou seja terão tido alta, e 13 acabaram por falecer. Fazendo as contas, terá havido só na região de Lisboa perto de uma centena de novos doentes internados na quinta-feira.
O que esperar ao longo do inverno: o aumento de infeções agora na população mais velha faz antever que, mesmo com maior proteção das vacinas, haverá maior impacto nos serviços de saúde e um aumento da mortalidade: a nível global, o IHME prevê possam vir a registar-se mais de um milhão de mortes este inverno associadas à covid-19, chegando-se a perto de 6,5 milhões de óbitos associados à covid-19 no final do segundo inverno da pandemia no hemisfério norte. Num ano, a nível global, estima-se que a gripe sazonal provoque 650 mil mortes e a época de maior stresse só arrancará no hemisfério sul no nosso verão.
O aumento da imunidade natural perante os elevados níveis de infeção, reforçando a imunidade conferida pelas vacinas, é uma das hipóteses para que o inverno seja importante na transição de pandemia para endemia, mas em contraponto há o risco de novas variantes e a incerteza sobre o impacto da Omicron nos não vacinados, mais velhos e sequelas. «Esperamos que depois de março já não haja muita transmissão de Omicron. No entanto, devemos esperar a emergência de novas variantes, algumas com capacidade de escapar à imunidade e manter a transmissão», diz ao Nascer do SOL Christopher Murray, diretor do IHME. Se este é o último inverno da pandemia ninguém adivinha, mas a tendência será tornar-se mais uma doença comum nesta altura do ano. «Acreditamos que continuará a haver transmissão especialmente no inverno devido à emergência de variantes. Contudo, com o aumento da imunidade de infeções prévias, acesso a reforços regulares da vacina e a antivirais, esperamos que a covid-19 possa vir a ter um impacto equivalente ou inferior à da gripe sazonal», conclui.
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