O prefácio, bem como a edição pertencem a Karen V. Kukil, curadora associada de Livros Raros do Smith College, e a tradução é de José Miguel Silva e Inês Dias.
Esta edição com mais de 700 páginas, inclui dois volumes inéditos entre 1957 e 1959. Dois volumes que foram selados por Ted Hughes, o marido da escritora durante vários anos.
Na nota de edição original ficamos a saber que Hughes anos antes de morrer já vinha a trabalhar na publicação destes diários na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos da América e que em 1997 delegou esse projecto aos dois filhos Frieda e Nicholas. Projecto esse que foi finalizado em 1999, já depois da morte do escritor, e que só agora, passadas mais de duas décadas chega a Portugal.
Infelizmente, os dois diários que Plath tinha escrito nos últimos três anos antes do seu lamentável desfecho não constam neste volume, porque um sumiu e o outro, que registava as suas notas até três dias do seu suicídio foi destruído por Hughes.
Não há dúvida que estes são diários esmagadores, tumultuosos. Listrados de introspecção e dramatismo. De poesia, de fragmentos de cartas na maioria para amigos próximos, de suores frios. De sonhos que poderiam não ter sido impossíveis. De ervas daninhas e folhas douradas.
Na primeira parte, compreendida entre julho de 1950 e julho de 1953 podemos colher algumas dessas folhas douradas num dos múltiplos poemas que vão emergindo ao longo da narrativa: “Folhas douradas baloiçam/ ao vento. / Fios dourados rebentam. // Em vertiginosos remoinhos / E moções de fantasia / Folhas batidas pelo sol /Planam para o chão. // Restolhando rua fora /Numa dança seca e sem morte/ Com pés negligentes as folhas avançam. / Ofegantes, / Inquietas, / douradas folhas rodopiam, / volteiam, / formam espirais, /Círculos, enrolam-se(…)”.
Ao longo destas centenas de páginas também os leitores, tal como estas folhas douradas vão restolhando, rodopiando e avançando numa espiral tumular a cada capítulo. É que estes são diários que nos remetem sempre para a mais desalumiada paisagem.
Até mesmo em Benidorm, destino eleito por Sylvia e Ted para a lua de mel, a paisagem abre alas à nostalgia, a uma solidão que parece nunca se despegar. Vemo-la entranhada, de frente a inclinar-se sobe nós. Ofegante, vertiginosa, introspetiva. Sentimo-la a cada parágrafo amarrar-nos como um cordão umbilical de espinhos à volta do pescoço. Sentimos-lhe o laço a estrangular-nos e o ar a esvair-se. Acontece que a sensação do ar a esvair-se é de uma angústia tremendamente prazerosa. É uma solidão que nos persegue, martela, volteia, despedaça, esgana. Mas é uma solidão que se cumpre em cada palavra. E estes são doze anos vertidos em palavra.
Plath deu início a esta escrita durante o verão de 50 antes de ingressar na faculdade.
O desânimo letárgico; as dúvidas; as autorrecriminações; o pânico do fracasso; da rejeição; o pulsar neurótico; o cinzentismo; a fraqueza; a amargura atordoante; a sua impotência catártica e a fatalidade são as linhas com que este seu tear diarístico se move. Se move e nos sova.
“Numa espiral, regresso a mim mesma, aqui sentada, a nadar, a afogar-me, doente de desejo. Tenho demasiada consciência injectada em mim para poder romper costumes sem efeitos desastrosos; a única coisa que posso fazer é apoiar-me invejosamente na fronteira e odiar, odiar, odiar os rapazes, que podem satisfazer livremente a fome sexual, sem medos, e ser inteiros, enquanto eu me arrasto de um encontro para outro num desejo húmido, sempre insatisfeito. Tudo isto põe-me doente.”
A desigualdade de géneros, a sexualidade, a própria literatura, a morte, a religião, o aborto, o casamento, a maternidade, são temáticas postas em causa de tal forma por Plath, mas que pela desmesurada insistência num ‘eu’ angustiado e deprimido, por vezes fazem-nos desviar do seu principal foco. Porém, essa desfocagem, isto é, a perda de alguma nitidez nestes diários acaba por ser tão assombrosa e aliciante como a que encontramos no seu único romance A Campânula de Vidro ou em qualquer dos seus poemas ou contos. É que na verdade, em Plath, só a desfocagem tem o poder de aureolar este tom sedutoramente desmoralizante, trágico e egocêntrico. É um tom árido, de desespero, lacerado. Mas ao mesmo tempo é um desespero que ganha vida. Que se deixa incidir vigorante pela mínima fresta. Que nos conduz para a berma da inevitabilidade. Sim, porque por mais que Plath se esforce por se manter de cabeça erguida à tona da superfície, tudo é inevitavelmente sufocante e dramático.
É incrível como desde o início destas páginas ela tem a noção do quão terá que se esforçar para se manter organizada e activa. Para não se perder. Para não perder fundamentalmente o seu foco literário. Em 1951 escreveu “(…) estou tão ocupada a tentar manter a cabeça fora de água, que mal sei quem sou, e muito menos quem são as outras pessoas. Mas tenho de me disciplinar. Tenho de ser imaginativa e criar enredos, motivações sólidas, explorar os diálogos- em vez de me limitar a tentar registar descrições e sensações. Este último é um gesto inútil, sem sentido, a menos que se sintetize mais tarde num conto. É também um agudo sintoma de um ego hipersensível e improdutivo.”
É notório o esforço com que Plath lutava contra a improdutividade, a ‘lassidão rabugenta’ e esse ego hipersensível que a dominava. Daí a esquematização de métodos para impor uma rotina. Daí a anotação de tudo. Ideias para poemas, para contos. Visões perturbantes, possíveis intrigas, histórias, argumentos e traços de personalidades. O ambiente do mundo académico e crítico que a rodeava. A sua América, “estupenda-como-um-milhão-de-dólares”, as viagens, as férias, os filmes, as peças de teatro a que assistia. Os autores que nunca abandonava. Barrett, Freud, Ronsard, Tourneur, Huxley, D. H. Lawrence, Edmund Spencer, Bergson, Wallace Stevens, Joyce, Frank O’Conor, Yeats. Aliás, uma das epígrafes que constam na primeira página do seu diário entre 50 e 53 pertence a Yeats, “Só começamos a viver quando concebemos a vida como tragédia”. E Plath seguiu à regra esta máxima.
David Sexton, considerou num artigo publicado no London Evening Standard que estes diários “tornam Plath mais aterrorizante do que nunca: auto-obsessiva, furiosa, entregue a um nível insuportável de intensidade”.
Contudo, os admiradores de Plath poderão duvidar dos critérios que levaram a estas considerações, dado que os leitores de A Campânula de Vidro, Ariel, O Colosso, Três Mulheres ou Mary Ventura e o Nono Reino há muito que estão familiarizados com o seu ‘nível insuportável de intensidade’.
Regressemos a 1950. Se aqui começamos por acompanhá-la ainda antes de entrar no Smith College, na residência de estudantes, entre exames de botânica, nos laboratórios de química, ou nos seus encontros frustrados e constrangedores às cegas, em 54 perdemos-lhe o rasto. Não temos qualquer apontamento seu. Isto porque em agosto de 53 Plath tentou suicidar-se. Só mais tarde a 22 de novembro de 55 é que voltamos a poder mergulhar de novo na sua vida. Nos seus dias efervescentes e famintos. Na sua vida de escritora, mulher casada, dona de casa e mãe.
Divididos em oito partes, esta organização mantém-se rigorosamente fiel ao formato original com a eliminação de algumas estrofes em muitos dos seus poemas; o uso de maiúsculas; de sublinhados; de pequenas estrelas; desenhos; círculos e rabiscos. As oito narrativas principais encontram-se separadas cronologicamente, assim como os quinze fragmentos de diários e cadernos de apontamentos, estes, porém sob a forma de “apêndices”, dado que foram escritos em simultâneo.
De acordo com Karen V. Kukil “As revisões finais de Plath foram preservadas e as suas supressões e correcções substanciais são analisadas na obra. A grafia, a utilização de maiúsculas, a pontuação e a gramática, assim como os seus erros, foram transcritos e são apresentados em comentários editoriais. Na verdade, nesta edição não há omissões, supressões ou correcções das palavras de Plath.”
Kukil frisa que “Manteve-se cada pormenor dos diários físicos, incluindo o hábito de Plath de sublinhar certas palavras e passagens”.
Allison Pearson, no Daily Telegraph considerou que “Os diários estão repletos de presságios e prefigurações – às vezes tão autoconscientes que quase se transformam em planos. O livro parece a mais longa nota de suicídio já escrita”.
Embora estes diários tenham levantado uma onda de opiniões divergentes, eles não podem de maneira alguma ser encarados como uma narrativa menor. Muito menos como um tratado suicida, porque os seus esquiços literários e a sua originalidade estão lá. A espontaneidade e a fluência narrativa, os devaneios, a sua habitual porosidade inflamada estão lá.
Analisando com pormenor, o que existe entre estes diários e o resto da obra de Plath poderá ser um pequeno patamar. Não há um oceano a delimitar nenhuma fronteira entre ambos. Não há uma distância que se vá ossificando. Porque muitas das referências, a tensão é a mesma. Porque as dúvidas existenciais, as fissuras entre o masculino e o feminino, as sombras que se deslocam no seu íntimo são as mesmas. Porque a maioria das impossibilidades com que Plath se debate se encontram disseminadas em outros textos.
Como não estabelecer uma ponte entre Sylvia e Esther de A Campânula de Vidro? Ou entre a Lady Lazarus, a devoradora de homens e a Sylvia que confessa que só pode acabar com um homem, e tem “de deixar muitos na berma do caminho, abandonados”? ou ainda, como não associar o capítulo reservado à sua lua de mel com o Caderno De Um Verão em Espanha?
Se regressarmos também aos tempos da Smith e mais tarde em Newnham College em Cambridge, qualquer leitor atento verá logo nestes registos um cruzamento com A Campânula de Vidro através das alusões ao hospital psiquiátrico, a certos diálogos com as colegas ou ao ambiente estudantil, a seu ver profundamente competitivo e paralisante.
Plath nestes diários oferece-nos um mundo dominado maioritariamente por homens. Um mundo fosco, complexo atolado de desigualdade, inclemência e contradições. Mas ela própria é uma mulher povoada de contradições e dilemas. Ela é a mulher americana na busca desenfreada pelo homem ideal. “Talvez precise de um homem, uma coisa é certa, ainda não o encontrei… Com o tempo, suponho que me habituarei à ideia de casar e ter filhos. (…) Se ao menos o conseguisse encontrar… a um homem que fosse ao mesmo tempo inteligente, fisicamente atraente e simpático. Se eu posso oferecer tal combinação de qualidades, porque é que não posso esperar o mesmo num homem?”.
Esta busca pelo ideal masculino é frequente a cada passo nestes textos. Plath almeja um homem que a preencha, que a arrebate sexualmente, que lhê dê mais mundo. Mas por outro lado, ela debate-se consigo própria porque sabe que o seu íntimo deseja muito mais do que isso. Daí, a condição feminina estar sempre a ser escrutinada e colocada por si em causa.
"Porque é que têm de ser relegadas para a posição de custódias de emoções, cuidadoras de bebes e alimentadoras da alma, do corpo e do orgulho do homem? Ter nascido mulher é a minha tragédia. A partir do momento em que fui gerada, estava condenada a ver toda a minha esfera de acção, de pensamentos e sentimentos rigidamente circunscrita pela minha inescapável feminidade”.
Plath, tal como no poema de Macneice que inaugura estes diários, nunca deixou de morder a vida como uma maçã ácida. A feminidade como uma maçã ácida.
Em 1965 Gunther Sthulmann no prefácio do primeiro diário de Anaïs Nin escreveu que Nin “ao criar o seu diário, deu-nos já, talvez, um novo tipo de literatura (…)” Plath com os seus diários também nos ofereceu um novo tipo de literatura. Bizarro, esquizofrénico e desconcertante para muitos, genial e singular para outros tantos.
Ler estes textos não será muito diferente da sensação de navegar numa baía pejada de grutas sombrias e apavorantes. Mas o leitor destes diários à partida não entra às escuras nesta baía. Ele sabe ao que vai. Sabe que essas grutas são arrebatadoramente irresistíveis.