E se, de repente, recebesse uma mensagem de uma conta numa rede social com a sua própria imagem? E se, de repente, sentisse a sua intimidade nas mãos de uma outra pessoa? E se, efetivamente, o seu corpo, sem o seu consentimento, fosse exposto ao mundo inteiro?
Talvez não seja possível imaginá-lo sem que se tenha passado por isso. Contudo, os casos multiplicam-se e são cada vez mais. O cibercrime não escolhe vítimas – tanto podem ser pessoas singulares muito ou pouco informadas, como empresas ou até Estados. Mas o que levaria alguém a expor as fotografias íntimas de outra pessoa? Estaremos perante situações de “pornografia de vingança”? Quais os “padrões” neste tipo de crime? Como é que Portugal lida com este tipo de situações? Crimes “sem rosto” e vítimas “sem voz”. Há aqueles que sofrem no silêncio, vivem no medo e até quem acabe mesmo por pôr fim à vida, achando que só assim se liberta do peso e da culpa. Contudo, outros contam a sua história. Mesmo de forma anónima, fica registada, “para que se mude alguma coisa”.
Marta e Isabel (nomes fictícios) ainda hoje têm “pesadelos” com o momento em que perceberam que fotografias, que deveriam ser exclusivamente para os seus namorados da altura, foram expostas pelos próprios a alguns dos seus parentes, amigos e conhecidos.
A história de Marta “Comecei a namorar com ele em 2020. Nessa altura, as coisas eram mais ou menos normais, mas desde o princípio percebi que eu gostava mais dele do que ele de mim”, começa por contar ao i, Marta, de 19 anos. A determinada altura a relação começou a ficar instável e por mais de uma vez o seu companheiro pôs fim ao relacionamento. Contudo, o casal acabava sempre por reatar. “Nesse momento ainda não havia muitos controlos”, continua. Mas em outubro, quando Marta ingressou na faculdade, o cenário começou a ficar “negro”: “Ele não gostou da ideia. Passava o tempo a incentivar-me a abandonar os estudos e a entrada na faculdade trouxe consigo uma data de desconfianças e inseguranças que eu nunca percebi”, explica a jovem. O namorado começou a vigiar-lhe telemóvel, a controlar as conversas que tinha com amigos e amigas, a bloquear pessoas, a partir coisas e a querer as passwords das suas redes sociais. “Depois de ler uma conversa que tive com um amigo de infância, que nada tinha de mal, proibiu-me de falar com os meus amigos, insultava-me regularmente e as pessoas acabaram por se afastar de mim”, lembra. “Dizia que a culpa era minha por ser mentirosa e que todas as minhas amigas eram má influência. Conseguiu que eu ficasse sem nenhum apoio por perto. Na minha cabeça eu percebia que as coisas estavam erradas, mas não sabia como sair dali. Havia sempre aquelas típicas promessas de: ‘Desta vez as coisas vão mudar’, ou ‘Juro que mudei’”.
Em julho os pais de Marta decidiram ir morar para o estrangeiro e, em consequência, a jovem foi com eles. Estava agora mais longe do seu companheiro e tinha plena consciência de que a relação tinha tudo para “dar errado”. À distância, o telemóvel começou a ser o principal meio de comunicação que utilizavam. O principal problema agora era que, se Marta não respondesse em cinco minutos, começavam os insultos e as acusações de traição. “Apenas por não estar perto do telemóvel! Também me obrigava a fazer videochamadas desde que acordava até que adormecesse para estar sempre ‘por perto’”, recorda.
“Ameaçava-me com o meu vídeo íntimo” Na noite em que tudo aconteceu, o companheiro pediu-lhe que fizessem uma videochamada mais “íntima”, como se estivessem efetivamente juntos. “Estava a simular que me estava a tocar. Ele mandava-me fazer coisas como se ele efetivamente ali estivesse”, revela Marta.
O que não esperava é que, no final da chamada, fosse surpreendida com uma gravação daquilo que havia feito. “Filmou a nossa conversa, cortando a parte onde aparecia, dizendo que seria para ele, já que estávamos longe um do outro. Eu disse-lhe logo que ele não podia fazer isso sem a minha autorização, mas ele não ligou”. Admite que só o fez por “medo de que se não atendesse ao pedido, fosse traída, já que estávamos tão longe um do outro”. Como a relação já não estava estável e o companheiro já sabia que ela pretendia pôr fim ao relacionamento, começou a “jogar” com isso. “Em todos os momentos que eu tentava uma saída, ameaçava-me com o meu vídeo íntimo. Dizia-me que ia enviar aos meus pais, que todos os meus amigos iam ter acesso a ele”, revela.
A determinada altura, achou contudo, que não podia viver condicionada por ameaças. “Acabei com ele e de seguida, chegaram as consequências disso. Ele realmente fez o que tanto prometia. Criou uma página em meu nome, como se fosse efetivamente eu a enviar as coisas e começou a mandar o vídeo para os meus pais, parentes que nem são assim tão próximos, para amigos, para rapazes com quem achava que eu o traía… O vídeo é capaz de ter ido parar às mãos de 40 pessoas ao todo”, lembra, sublinhando ser muito tímida e, por isso, não ter mostrado a cara. “Mas quem me conhece, era perfeitamente capaz de me reconhecer”.
E o que pensaram os pais de tudo isso? Marta admite que ficaram naturalmente chateados e incomodados, mas que a apoiaram e apoiam, “dentro do possível”: “É difícil resgatar a confiança e também é difícil não julgar. Eles apoiam-me, mas desconfiam e claro que têm receio”. Decidiram então ligar aos pais do jovem. Segundo Marta, “não deram muita importância”, dizendo que isso era um assunto entre os dois e que não podiam fazer nada. “Começou a dizer às pessoas que não tinha nada a ver com o vídeo, que não tinha sido ele a mandar. Meteu a responsabilidade toda em cima de mim”, lamenta.
Desesperada, acabou por pedir ajuda à Associação Não Partilhes, que a encaminhou até um advogado. “Explicou-me a estrutura da queixa e que esta deveria estar toda ao pormenor. Decidi fazê-la em setembro na GNR e vim com o meu pai até Portugal”, explica. Entregou tudo por escrito no tribunal. No entanto, naquela altura, “as pessoas estavam de férias”. “Ele continuava a partilhar as fotografias, mas eles não podiam fazer nada. Só se fosse alguma coisa considerada mais urgente, se a pessoa corresse risco de vida, ou estivesse a ser ameaçada. Acho que existem muitas lacunas no nosso sistema e fico muito triste por isso”. Na última semana de dezembro a família foi contactada pelo tribunal, para a jovem assinar um inquérito. “Até agora não me disseram mais nada e acho que o caso acabará por ser arquivado e pronto. Tenho poucas esperanças”, admite.
Desde novembro do ano passado que Marta não vê o antigo namorado nem fala com ele, mas essa experiência deixou inúmeras sequelas: “Tenho muito medo de me relacionar, de confiar, de me entregar. Nessa altura estava fora do país, não tinha ninguém, fiquei completamente isolada. Pensava que mais valia acabar com tudo, pôr fim à minha vida para me livrar desse peso. Achava que a culpa era minha, que toda a gente me iria julgar (porque as coisas também circulam) e, só agora, percebo que não. Eu confiei na pessoa que tinha ao meu lado, ele é que foi o culpado por ter traído essa confiança”, defende.
Agora os seus pais são “ainda mais protetores”, não a deixam sair cada vez que vão até à terra onde moravam, nem a deixam relacionar-se com alguns dos antigos amigos: “Acham sempre que se eu sair vou vê-lo ou vou ter com ele… Isso magoa. Cortei contacto com toda a gente”, explica. E já não envia fotografias íntimas. “Se é para estar com uma pessoa, que seja pessoalmente, com responsabilidade. O que entra na internet fica na internet para sempre e eu sofri muito com isso”. Graças ao ex-companheiro, Marta acabou efetivamente por sair da Universidade e, só agora, quando voltou para Portugal, é que ingressou numa outra.
Um caso de “vingança” Tal como Marta, Isabel, de 23 anos, viu a sua intimidade devassada e exposta pelo seu ex-companheiro: “Numa noite, comecei a receber mensagens de um desconhecido que falava inglês e, da forma como falava, até diria que tinha algo pessoal contra mim. Queria diminuir-me, atacando-me com as minhas publicações”, começa por explicar. Caso pusesse uma fotografia onde se sentisse empoderada, ou publicasse algo com que se identificasse, essa pessoa, através de várias mensagens, tentava incutir-lhe uma opinião de si menos positiva. “Fartei-me de ignorar e perguntei-lhe o que queria de mim. Mal sabia que a resposta seriam duas fotografias minhas, nua. Uma onde só se via o meu corpo sem cara, e na outra era eu a posar para o espelho, completamente nua. Eram fotografias de 2018. Estávamos já em 2021. Quando pensei nisso, caiu-me a ficha”, revela.
Isabel diz que só haveria uma pessoa capaz de fazê-lo, o seu ex-namorado e pai do seu filho. “A maneira de falar, a língua inglesa, de tantos anos que passou no estrangeiro. Aquelas eram fotografias que eu lhe tinha enviado quando estava fora. Eram fotografias tiradas só e exclusivamente para ele”, frisa.
Confrontando o “criminoso sem rosto”, este explicou-lhe que as fotos haviam sido retiradas da Craiglist, que, segundo a mesma, é “um dos buracos negros da internet onde se encontra de tudo um pouco, utilizando códigos atrás de código para se chegar ao que se quer”. “Mas quem, no mundo, haveria de encontrar logo duas fotografias minhas no meio de biliões de ficheiros perdidos, e usar contra mim, logo diretamente pelas minhas redes sociais?”, interroga.
Depois de perceber que Isabel “não tinha medo”, o assediador criou mais dois perfis em que a foto de capa era precisamente a que a mostrava completamente nua em frente ao espelho. “O que mais me custou foi saber que alguém em quem confiei, que eu amei, a quem dei tanto de mim, fosse capaz de tamanha maldade. O meu corpo partilhado foi o menos. Na verdade, nem dei muita importância. Na minha cabeça era ridículo achar que a minha vida seria destruída porque umas quantas pessoas viram o meu corpo nu. Logo eu que vou à praia de nudistas”, admite. O que mais a preocupa são todas as outras raparigas que, como ela, viram os seus corpos expostos “e não conseguem geri-lo”. “Preocupa-me sim que o país não faça nada para ajudar neste tipo de casos. Preocupam-me sim os casos de suicídio po causa disto. É crime, mas eu fiz queixa, e até agora, nada”, lamenta.
O cibercrime em Portugal Segundo a advogada Sofia de Matos, estamos perante uma criminalidade “imaterial, transfronteiriça e complexa”. “O cibercrime, também conhecido como crime ciberdependente, representa qualquer tipo de crime que só pode ser cometido por meio de computadores, redes de computadores ou outras formas de tecnologia de comunicação da informação (TIC), com acesso à internet e incluem atividades como a criação e disseminação de malware e hacking para roubar dados pessoais ou industriais confidenciais e/ou ataques de negação de serviço para causar danos financeiros e/ou reputacionais aos visados”, explica ao i.
De acordo com a especialista, a União Europeia, Portugal incluído, centra a lógica de regulação do ciberespaço e a cibersegurança “na proteção dos dados individuais e nas quebras de segurança”. Contudo, à semelhança de alguns especialistas na matéria, Sofia de Matos considera “mais importante fomentar lógicas de autorregulação com a adoção de quadros de boas práticas e/ou de acreditação”. “No fundo acredito que um maior investimento por parte dos privados e das empresas em redes de segurança e uma política interna de compliance nestas matérias dificultam e, por vezes, até evitam a prática deste tipo de crimes”, elucida, revelando que está atualmente em preparação uma nova diretiva – a Diretiva SRI 2 – para “responder à evolução do cenário de ciberameaças”. “Os crimes cometidos no ciberespaço são altamente variados, sofisticados e de resolução complexa, não só porque estão em permanente evolução, mas também porque os autores destes crimes se escondem atrás de vários IP’s (Endereços de Protocolo de Internet), de impossível identificação e a maior parte das vezes cometidos através de acessos efetuados fora de Portugal, que implicam múltiplas jurisdições”.
Na estrutura institucional nacional de combate ao cibercrime, destacam-se o Gabinete Cibercrime do Ministério Público e a Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica da Polícia Judiciária, que mantêm “uma articulação e cooperação estreita no âmbito do combate à criminalidade informática e no ciberespaço com o Centro Nacional de Cibersegurança”.
O problema com o termo “pornografia de vingança” No caso de Marta e Isabel, ao contrário daquilo que se poderia pensar, não estamos perante um caso de “pornografia de vingança” – termo comummente usado para descrever a divulgação não consentida de imagens ou vídeos íntimos – tal como elucida Maria João Faustino investigadora e coordenadora do estudo do projeto Faz Delete, da Rede de jovens para a igualdade. “É um conceito ainda dominante nos media, o que induz uma certa ligeireza no tratamento mediático destes crimes. É um termo usado nessas situações, porém, é um termo impreciso, que não faz justiça às vítimas deste crime: não apenas porque a vingança não é a única motivação para este tipo de crime, mas também porque remete para ‘pornografia’ e não abuso e violência. O reconhecimento desta forma de violência tem de começar pelo rigor da linguagem”, defende a especialista. Prefere, por isso, adotar o conceito de “violência sexual tecnologicamente facilitada”, que abarca “um conjunto amplo de formas de violência sexual exercidas através de, ou com recurso a, dispositivos tecnológicos”. A violência sexual baseada em imagens (VSBI), explica, “não se reduz à divulgação não consentida de imagens íntimas (fotos ou vídeos de cariz sexual), mas engloba também outras formas de violência como a ameaça de divulgação, a manipulação de imagens, e o envio de imagens de genitais, normalmente pénis (o chamado cyberflashing)”.
Tal como Maria João Faustino, Inês Marinho, criadora da Associação Não Partilhes – que nasceu em 2020, com um grupo de mulheres que viu as suas fotografias íntimas partilhadas na internet e decidiu criar uma hashtag para “alcançar uma compreensão merecida” – não usa o termo “pornografia de vingança” pois considera que “para além de nunca ser uma vingança equiparada, muitas vezes não se trata de um ‘ajuste de contas’”. “Pornografia não consentida ou abuso sexual com base em imagens, é quando através de meios digitais de dissemina, manipula ou capta conteúdo íntimo ou com cariz íntimo sem o consentimento da pessoa/pessoas representadas”, sublinha a responsável.
#NãoPartilhes Inês Marinho também passou pelo mesmo que Marta e Isabel, mais do que uma vez. Contudo, não sabe quem esteve por trás do crime. “Para mim, como as coisas aconteceram nem sempre é o mais importante, o importante é que aconteceram e não tive retaguarda das entidades nem compreensão por parte da sociedade, num todo, como todo o resto das mulheres que passam por isto”, afirma, acrescentando que, na verdade, a situação já lhe aconteceu várias vezes na vida desde os 15 anos. “Desta última vez simplesmente teve mais alcance”, elucidou. Foi avisada, enquanto trabalhava, por um amigo seu. Contudo, na altura, nunca pensou que fosse mesmo ela no vídeo partilhado. “Até porque já andaram vários vídeos e fotografias a circular com o meu nome, onde não era eu a pessoa na foto”, explica. Como a situação não era novidade para si, considera que possa ter sido “mais resiliente”. “Não vou pedir desculpa por ser livre, muito menos por ter sido sobrevivente de um crime de género”, frisa. Depois de perceber de que vídeo se tratava, respirou fundo e denunciou-o nas plataformas onde o conteúdo tinha sido publicado e ainda junto das entidades competentes. “Estou à espera do seguimento do processo e já fui chamada para inquérito. As plataformas online, além de demorarem dias a retirar o meu conteúdo também disseram que ‘não se responsabilizavam pelo que era partilhado em grupos privados’”, lamenta.
Os conteúdos, continua, têm sido partilhados em diversos grupos, como o Whatsapp, Telegram, OnlyFans ou mesmo o Instagram. “Há uma panóplia de grupos. Alguns são só menores de idade, outros são só de voyeurismo. Por norma são grupos massivos com milhares ou até dezenas de milhares de membros, com entrada por convite ou link e de mensagens rastreadas. Nestes grupos, partilha-se, repartilha-se e os seus membros até se organizam em grupo para tirar fotos a mulheres na rua sem o seu conhecimento”, conta, acrescentando que há também grupos de DeepFakes “onde são só fotos manipuladas online”. Os grupos mais usados, frisa, são o Telegram ou Reddit.
Um crime “cada vez mais comum” Segundo o Ministério Público, em 2021 registou-se em Portugal um aumento de 23% dos cibercrimes em relação a 2020 e de 124% em relação a 2019. No primeiro semestre de 2021, o aumento foi ainda mais expressivo do que tinha sido em 2020: até 30 de junho de 2021 foram recebidas 594 denúncias – durante todo o ano de 2020 tinham sido recebidas 544. Portanto, a manter-se esta tendência, espera-se que no final do ano as denúncias de cibercrime em 2021 mais que dupliquem o número das denúncias de 2020.
“Este é um comportamento em crescendo, que aumentou na pandemia e que se tornou mais fácil pelas múltiplas plataformas de chat que têm surgindo”, afirma Maria João Faustino. De acordo com a investigadora, em muitos casos isto tem apenas uma “função lúdica” na sexualidade de alguns casais, servindo para introduzir alguma “novidade” à relação. Contudo, acrescenta, também assistimos muito a estes comportamentos “de forma desajustada”, ocorrendo mais indiscriminadamente ou em fases muito precoces das relações, “onde a segurança no comportamento do outro ainda não é assim tão elevada, aumentando assim o risco”. “Em alguns casos surge por cedência a pressão, chantagem emocional e até necessidade de aprovação através do envio das imagens. Todavia, é importante entendermos que muitas vezes estamos a ser alvo de manipulação, sendo isto uma forma de agressão”. Interrogada sobre a atenção dada a este tipo de crimes, a especialista afirma que realmente tem havido “uma atenção crescente”, mas muito recente. “De uma forma geral, falta um olhar mais sistémico e crítico sobre a violência sexual online, que contextualize as novas formas de violência num sistema mais lato de violência contra as mulheres. E que aborde as muitas formas de violência sexual online”. No seu entender, há normalmente um foco na divulgação de imagens íntimas, secundarizando as outras formas de violência sexual baseada em imagens, como a ameaça de divulgação de conteúdos íntimos, o cyberflashing e a manipulação de imagens.
Quando criou o grupo, agora Associação, Inês Marinho teve uma grande afluência de pedidos de ajuda. “Julgo que foi por sermos pioneiros neste crime em específico”, reflete. “As situações de chantagem e ameaça de partilha que muitas vezes terminam mesmo na partilha de conteúdo são cada vez mais e nelas estão incluídas também menores de idade”.
As vítimas “A partilha de fotografias íntimas, embora seja transversal a todas as idades, é mais comum nas faixas etárias mais jovens, seja pela descoberta do corpo e da sexualidade, seja pela necessidade de validação ou até pela maior familiaridade com as novas ferramentas de conversação online, onde maioritariamente ocorre esta partilha, não só de imagens mas também de vídeos e textos, o denominado sexting”, explica ao i a psicóloga Catarina Lucas, que acredita que a idade “traz experiência, perspicácia e maturidade”. Logo, “é normal que com a idade o ser humano vá ganhando mais estratégias de defesa e maior capacidade para identificar comportamentos desajustados ou estranhos”.
De acordo com a especialista, neste tipo de casos, a vítima tende a culpabilizar-se, “não só pelo envio das imagens como pela própria relação que estabeleceu com aquela pessoa”, surgindo ainda sentimentos de desvalorização e alguma necessidade de isolamento como mecanismo de proteção. “Porque a sociedade trata este crime como se fosse ao contrário. A culpa é das vítimas e os criminosos não têm culpa. Pensemos assim: se eu te contar um segredo e tu fores contar a toda a gente, quem tem culpa? Eu que confiei em ti ou tu que quebraste a minha confiança?”, interroga Inês Marinho. A psicóloga, que também foi alvo de exposição não consentida, pensava que a situação não a tinha “afetado assim tanto”, pois teve o apoio de toda a família, amigos e namorado. “Estava enganada! Perdi a libido, o sentimento de perseguição aumentou, fiquei muito mais conservadora e inibida sexualmente e com mais ansiedade. Estou a ter acompanhamento psicoterapêutico”, admite.
De acordo com Catarina Lucas, nestas situações é importante que familiares/amigos se unam e forneçam o suporte necessário à pessoa. Todavia, por vezes, ocorre o contrário – “a culpabilização da vítima pelo envio”. “Muitas vezes isto está associado a ideias pré-concebidas de que esta exposição não é ‘digna de uma pessoa de respeito’, que são comportamentos promíscuos e dizem algo negativo sobre nós. Logo, a pessoa é rotulada em função disso”, elucida. O pensamento que surge nos outros, acrescenta, é muitas vezes de “recriminação pelo envio das fotografias íntimas (já que é visto como um comportamento promíscuo) e não de condenação do agressor pela exposição de algo que lhe foi enviado no âmbito de uma relação íntima”. “A sexualidade sempre esteve rodeada de preconceitos e a sua exposição suscita nos outros reações de desconforto”, frisa.
As consequências nas vítimas podem ser várias e graves, originando quadros depressivos e de ansiedade: “Em algumas situações pode desenvolver-se um quadro de stresse pós-traumático e até ideação suicida. Paralelamente a autoestima, a autoimagem e a capacidade de nos relacionarmos com os outros fica severamente afetada. A capacidade de estabelecer relações afetivas ou amorosas também fica afetada e, em alguns casos, a vivência da sexualidade também sofre danos”, explicou a psicóloga.
Os “criminosos sem rosto” No que toca às motivações por trás deste tipo de crime, de acordo com as investigações de Maria João Faustino, estas são diversas: afirmação de masculinidade entre pares; exercício de poder e humilhação da outra pessoa. Por vezes, existem também “motivações financeiras”, como a venda de fotografias ou vídeos íntimos. “Estruturalmente, é impossível compreender a violência sexual através de imagens sem compreender também as relações de género, as relações e hierarquias de poder entre homens e mulheres. A violência sexual baseada em imagens tem uma génese profundamente sexista”, defende.
Já Catarina Lucas explica que normalmente “existe sempre algum nível de disfuncionalidade ou problema psicológico”, nas pessoas que cometem o crime. “Na maioria dos casos acontece devido a um elevado sentimento de raiva, o qual não consegue ser controlado ou gerido de outra forma. Noutros casos, o objetivo é causar no outro um sofrimento similar àquele que o agressor estará a sentir, por exemplo após um término de relação não desejado”.
Relativamente à maneira como a lei portuguesa protege as vítimas, Maria João Faustino acredita que esta “ainda não está ajustada ao desenvolvimento tecnológico e aos perigos e desafios que o digital apresenta no contexto dos crimes sexuais”. “Não existe um crime autónomo, tipificado, em torno da violência sexual baseada em imagens. A discussão em torno deste problema é ainda incipiente: houve um importante contributo da Cristina Rodrigues, deputada não-inscrita na AR na última legislatura, que apresentou um projeto de lei sobre a divulgação não consentida de fotografias ou vídeos que contenham nudez ou ato sexual, mas ainda há todo um caminho por cumprir face ao reconhecimento e enquadramento legal da VSBI [violência sexual baseada em imagens] e dos seus impactos”, elucida a investigadora.
Inês Marinho, por sua vez, alerta que todas as pessoas deviam saber que “consentimento é uma decisão tomada em conjunto”: “Por isso quando alguém decide sozinho que deve publicar conteúdo íntimo de alguém, está a ir contra o consentimento da pessoa. Ninguém é menos por se exprimir sexualmente e livremente”, remata.