“Tirem-mos da Frente, Já”

O povo está há muito descrente e saturado ‘desta democracia’ e dos seus arautos

Recordo o período de quatro anos em que fui secretário de Estado. Num Conselho que reunia às segundas feiras, presidido por Fernando Nogueira, eram meus parceiros de estatuto, Manuela Ferreira Leite, Pedro Santana Lopes, Carlos Encarnação, Paulo Teixeira Pinto, Joaquim Azevedo, Joaquim Poças Martins. Meses antes tinham também tido igual estatuto, Luís Marques Mendes, Durão Barroso, Falcão e Cunha!

Lembro-me da primeira direção do Grupo Parlamentar do PSD em que pertenci, em maioria absoluta, ou seja com os ‘soit disant’ melhores quadros impedidos de serem deputados por estarem no Governo!

Essa equipa era liderada pelo Patriarca Mário Júlio Montalvão Machado e, para além de mim próprio, tinha como vices, entre outros, Silva Marques, Carlos Encarnação, Pacheco Pereira, Miguel Macedo. 

Do outro lado da barricada, a direção socialista era ‘só’ liderada por Jorge Sampaio, acompanhado, por António Guterres, Vera Jardim e Jaime Gama.

Também não olvido que enfrentei nessa legislatura um pequeno grupo parlamentar do CDS, pequeno na dimensão mas gigante na qualidade. Eram quatro senadores de fina água, Adriano Moreira, Basílio Horta, Narana Coissoró e Nogueira de Brito.

Também recordo que debati com uma bancada comunista onde coexistiam João Amaral, Luís Sá, Octávio Teixeira, Carlos Brito, José Magalhães. Jerónimo de Souza, Carlos Carvalhas, Odete Santos.

Rememoro, igualmente, os meus primeiros passos no Conselho Metropolitano do Porto, quando fui eleito Presidente da Câmara de Gaia. Fernando Gomes, Narciso Miranda, Vieira de Carvalho, Fernando Melo, Mário de Almeida, José Macedo Vieira, Valentim Loureiro, José Mota eram os meus pares. 

Recordo o primeiro governo de Cavaco Silva, com Álvaro Barreto, Ferreira do Amaral, João de Deus Pinheiro, Leonor Beleza, ou o primeiro de Guterres, com Jaime Gama, João Cravinho, Marçal Grilo, Sousa Franco.

Por ter memória e porque estes dados são, não só relevantes, como mesmo essenciais para compreender a derrocada do país, aqui os elenco como fator essencial a ponderar por quem queira refletir com seriedade sobre o futuro do nosso projeto de comunidade.

Haverá hoje quem, a sul de Espinho, saiba enumerar o nome ou a obra dos líderes do Grande Porto? Talvez o dos lutadores da Feira e Póvoa, da Senhora de Matosinhos, e pouco mais!

Existirá quem aponte com espontaneidade dois membros com merecida notoriedade das bancadas parlamentares maioritárias?

E quem são os cidadãos comuns que enumeram, sem pensar muito, com reconhecimento e respeito, cinco apelidos do gigante lote de ministros(as) secretários(as) de Estado deste Governo?

Mas afinal o que se passou em três décadas? O que fez baixar a pique a qualidade dos quadros políticos a todos os níveis? O que aponta para a perpetuação e até continuada deterioração desta tão decisiva realidade?

Seria interessante que os putativos, candidatos a líderes de executivo, também muitos deles a tocar a mediania, visitassem este quadro de perspetiva e propusessem soluções para a sua superação. Mas eu sei que isso é exigir-lhes o impossível. Aquelas cabecinhas têm outras preocupações galácticas: o lítio, a venda de porcos para a China, o perigo dos casamentos ciganos e outras importantes preocupações de Estado! Propostas para a reforma do sistema político, pois é disso que se trata, zero!

Em paralelo com esta evolução instalou-se também um síndrome estranho na sociedade portuguesa.

Ataca de um momento para o outro e tem um efeito devastador na estabilidade do sistema político: é o ‘Síndrome do Tirem-mos da Frente Já’. 

Bem mais difícil de percecionar que a própria pandemia que vivemos. É antes uma epidemia periódica de ataque agreste e repentino, com espasmos periódicos, que só deixa escombros à sua passagem.

Um qualquer Governo até pode parecer estar sólido, vivíssimo, omnipoderoso. O seu chefe pode aparentar estar intocável, a pairar sobre um deserto de alternativas incredíveis, mas tudo isso é virtual, aparente.

Tudo isso é construído em belas montanhas de areias movediças. De um momento para o outro, sem detonador à vista, tudo colapsa como um castelo de cartas.

O povo está há muito descrente e saturado ‘desta democracia’ e dos seus arautos. Sendo genuinamente democrata vai-lhes dando sempre o benefício da dúvida, mas depois surpreende-os com um súbito e inesperado acesso de fúria, mau humor radical, com que os atira pela borda fora. 

Começou assim no final do cavaquismo e não mais parou.

A gravidade dessa doença coletiva é implacável. A partir de um certo momento, inexplicavelmente, não perdoa um pequeno erro, uma inocente inverdade, um insignificante falta de rigor. Esquece tudo o que de bom apreciou e só valoriza o negativo, o errado, tudo aquilo de que discorda. Injusto? Algumas vezes sim, mas é o que acontece.

Podem-lhe pedir que tenha um pouco de comiseração paciente, de gratidão, de reconhecimento. Podem demonstrar-lhe a incapacidade notória das alternativas e a sua fragilidade. Tudo será inútil quando no sangue do ‘povão’ eleitor já circula o ‘veneno’ do ‘Tirem-mos da Frente, Já’. Nada de racional supera esta fatalidade biológica. 

O que fez então esta maleita tornar-se de forma tão súbita potencialmente mortal para o Governo Costa, quando ainda há um trimestre atrás o mesmo parecia estar para durar uma eternidade?

Terá sido o resultado sofrível nas eleições autárquicas, a derrota em Lisboa? Essa circunstância ajudou, mas a doença já lavrava há muito nas entranhas da maioria.

O fator desencadeante já é longínquo e começou com o modo insensato e sôfrego com que Costa fez ruir uma fórmula de exercício de poder em que assentou uma norma comportamental democrática de 40 anos: o de não desrespeitar o princípio de que um vencedor de eleições, mesmo que minoritário, deve ter a oportunidade de governar.

A essa leveza de decisão somou-se o facto de ter jurado, com absoluta convicção, que tinha criado uma nova unidade perene, um novo e exótico bloco político recém-formado e nunca experimentado, aquele que, finalmente, iria propiciar a chegada de ‘todos os amanhãs que cantam’.

Apesar desta perigosa base de partida, parecia todavia ainda faltar o caldo de cultura para o estranho vírus germinar. Mas ele estava lá camuflado, há longos cinco anos. 

Era constituído pela sobranceria com que se eternizou una governação tipo ‘one man show’, em que um maestro inequivocamente competente do ponto de vista político, estava rodeado de um grupo muito sofrível de colaboradores (em abono da verdade Costa herdou no auge as presentes dificuldades extremas de recrutamento de quadros políticos).

Com exceções assentes na sobriedade de Siza Vieira, Santos Silva, João Cravinho, João Leão, Manuel Heitor ou Francisca Van Dunem, o naipe de figurinhas com que Costa teimou perseverar um alargado período de governação ficarão para a história de democracia portuguesa. 

Pela pobreza técnica, pela mediocridade intelectual e, desculpem-me a sobranceria elitista de quem nunca o foi. Pela ‘parolice provinciana’, muitas vezes a a fazer fronteira com uns toques de boçalidade político social que nunca havia atingido tal densidade. Pelo menos a este nível da representação nacional.

De Alexandra Leitão a Tiago Brandão Rodrigues, de Ana Mendes Godinho a Nelson de Sousa, de Maria do Céu Antunes a Duarte Cordeiro, passando por Mariana Vieira da Silva ou Marta Temido, e continuando com facilidade por mais uma dúzia de idênticos protagonistas, nunca os dourados dos palácios governamentais haviam sido tão poluídos por tal brejeirice pacóvia, 

Será que nunca ninguém disse aquele grupo alargado de atores políticos que o poder de Estado tem sempre que gerir um importante vetor ‘estético’. 

Que não tem a ver com beleza física, com a riqueza do vestuário ou adereços utilizados e ainda menos com a postura altiva em cima de um carro de luxo ou à entrada para uma cerimónia banal. 

No entanto, essa dita realidade estética, exige muito cuidado no porte, no vestir, na sobriedade na conduta quotidiana.
Exige ‘categoria’, ‘coisa’ que nada tem a ver com riqueza, status económico e social, ou genética aristocrática. Infelizmente é algo que não se compra, não se vende no Martim Moniz, nem se importa de Xangai!

Resumidamente, é uma multidão de gente sem postura de Estado e com demasiada postura de feira.

Sou médico, sei por experiência própria que nunca há doentes irremediavelmente perdidos, sei o que é falhar diagnósticos e até não aprecio com entusiasmo a maioria das alternativas de poder ao atual executivo (francamente tenho pena que o líder do Livre não seja de direita!), até posso errar, mas existe uma forte probabilidade do atual poder ser derrotado ou de, pelo menos, sair muito debilitado da noite de 30 de janeiro.

Um último estertor de pasmo. Como é que o elitista mais poderoso e inteligentemente popular do regime conseguiu conviver cinco anos, em alegre confraternização, com tanta falta de ‘pedigree de Estado’, com tanta brejeirice da parte menos boa da suburbanidade?

Como conseguiu Senhor Presidente?