Animais e filhos são iguais?

Em Espanha, o bem-estar dos animais passou recentemente a ser tido em conta na hora do divórcio. Por cá, há também uma discussão sobre os direitos dos animais de companhia, e alguns casos já pintaram o panorama português. Afinal, que lugar ocupam estes animais na Justiça e no Direito da Família?

Marisa Dias é brasileira, vive em Portugal há cerca de um ano e há quatro que se separou do ex-marido. Desde a separação que partilha a custódia dos animais de companhia – atualmente dois cães e um gato – que tinha com o então companheiro. 

À LUZ, Marisa revelou ter sido uma escolha do casal, que, decidindo não ter filhos, optou por ter estes animais de companhia, e, depois do divórcio, mantendo-se as boas relações, ambos encontraram um meio-termo para continuar a partilhar a guarda das ‘crianças’, como faz questão de lhes chamar: «Uma semana na minha casa, e uma semana na casa dele» foi o acordo inicial e, mesmo depois de Marisa ter mudado de estado – ainda no Brasil –, o casal acordou uma série de videochamadas. A guarda partilhada foi, aliás, como faz questão de contar, homologada pelo juiz responsável pelo seu divórcio: «O processo tem toda a documentação onde consta o que ficou combinado sobre esta guarda partilhada».

O caso de Marisa é apenas um de vários que se multiplicaram ao longo dos anos, e que levou recentemente os espanhóis a aprovarem uma lei que prevê a ponderação do bem-estar dos animais nos divórcios dos donos. Assim, e num momento em que este tema ganha cada vez mais relevo, está na hora de perceber, afinal, que lugar ocupam estes ‘bichinhos’ tão queridos por milhões no panorama judicial, no Direito da Família, e nos processos de divórcio. A lei aprovada em Espanha prevê que os animais passem a ser considerados ‘seres conscientes’, mudando o panorama legal em torno de situações como o abandono, os maus tratos, e até os processos de divórcio, praticamente equiparando-se a ‘guarda’ dos animais à dos filhos de um casal. E não é brincadeira. Citada pelo jornal espanhol El País, a legislação em causa prevê que os animais de estimação da família poderão ter custódia partilhada, e terão de ficar, após o divórcio, junto de, pelo menos, um dos ex-membros do domicílio. Mais: os animais em causa nunca poderão ser separados dos donos e o juiz responsável poderá até definir períodos de visita, nos casos em que a custódia do animal fique integralmente junto de um dos ex-parceiros. Entre os critérios que poderão decidir quem fica com a custódia do animal está, por exemplo, a existência de eventuais maus tratos ou ameaça de tal. E, ainda mais interessante: caso se comprovem estes casos de maus tratos aos animais, esse facto poderá também influenciar a custódia partilhada dos ‘filhos’ ao ex-casal. Mudanças radicais no papel dos animais de companhia na área do direito familiar e das ‘lutas’ nos processos de divórcios. Significa isto que, a partir de agora, pelo menos em Espanha, os duelos pelas custódias ganham novos protagonistas, para além dos filhos humanos dos casais.

Novidade? Nem por isso

Por cá, apesar de não existir uma lei oficial que garanta esses termos, a realidade é que desde 2017 que os animais deixaram de ser ‘coisas’ perante a lei, passando a ser vistos como seres que têm sentimentos e deixam de ser objetos pertencentes a um dos parceiros.

Em outubro de 2019, por exemplo, o caso da cadela pitbull Kiara ficou famoso. Um casal levou até ao Juízo de Família e Menores de Mafra a disputa sobre a ‘custódia’ da cadela de sete anos de idade, aquando da sua separação. Acontece que, na altura, depois do fim do relacionamento deste casal, não foi possível chegar a entendimento sobre quem ficaria com a ‘guarda’ de Kiara, alegando a mulher que a cadela foi um presente dado, na altura, pelo então namorado. O boletim de vacinas, a licença e o chip estavam em seu nome também, e a mesma garantiu que foi ela quem sempre cuidou do animal. Por sua vez, o homem, que começou por pedir apenas a guarda partilhada, usou o facto de o casal ter vivido em união de facto, na mesma casa, na Amadora, durante pelo menos dois anos, para reclamar o direito a não ser separado da cadela. O caso ganhou popularidade, e até levou a ‘perícias’ que procuravam entender como se comportava a cadela com cada um dos membros do antigo casal. De pouco serviu, no entanto, já que Kiara parecia dar-se igualmente bem com ambos. Mas, na altura, valeu o testemunho de uma veterinária, que explicou: «Um cão é um animal de rotinas e estar a ser submetido a mudanças de 15 em 15 dias não faz bem».

E este caso não foi único. Apesar de não ter chegado aos tribunais, um dos mais mediáticos exemplos é o ‘confronto’ entre Vanessa Martins e Marco Costa pelo cão do casal, Sadik. As duas figuras conhecidas da televisão portuguesa puseram um fim à sua relação, mas não entraram em acordo sobre quem ficaria com o cão e o debate espoletou uma troca intensa de acusações nas redes sociais. «Porque sempre que as saudades apertarem, eu irei colocar uma foto tua! Sadik, o Tortas [o cão que Marco Costa adotou já depois da separação com a atriz e empresária] está à tua espera para te conhecer», escreveu, por exemplo, o pasteleiro, nas suas redes, e ele próprio tem partilhado notícias de situações semelhantes em Espanha, à luz da legislação mencionada anteriormente.

Em conversa com a LUZ esteve Patrícia Azevedo, médica veterinária do Centro Veterinário de Adaúfe, em Braga, que falou sobre os efeitos que a separação dos donos pode ter num animal de companhia. «Os animais são seres sencientes e, como tal, as suas emoções e sentimentos devem ser tidos em conta durante a sua vida», começa por explicar a profissional, que alerta para a alteração na rotina dos animais como consequência do divórcio dos seus donos. «Claro que existem vários fatores que irão contribuir para a maneira como esse divórcio e alteração irá afetar a vida do animal, como a ligação do animal com essa pessoa, a interação a que estava habituado a ter, entre outros», diz Patrícia Azevedo, esclarecendo que «se aquela pessoa pouca interação tinha com o animal, não era quem dava de comer, passeava, participava nos cuidados de higiene, claro que, apesar de a ausência ser sempre notada pelo animal, o impacto na vida deste cão ou gato será baixo». No entanto, continua a veterinária, «se a pessoa for bastante presente na vida do animal, este vai sentir muito a sua falta».

Se em Espanha o bem-estar animal já é, por lei, tido em conta nos processos de divórcio, por cá, esse elemento não é inédito nos mesmos, obrigando a novos exercícios jurídicos para garantir que os processos decorrem da melhor forma. Madalena Pinto de Abreu, jurista e docente de Direito da Família, esteve em conversa com a LUZ, começando por esclarecer que «a ponderação do destino dos animais de companhia no âmbito do divórcio não é uma novidade em Portugal». «Efetivamente, através da Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, o legislador veio regular de novo as matérias respeitantes aos animais de companhia, distinguindo-os de outras realidades jurídicas e afastando-os da figura das coisas», esclarece, passando, assim, a prever-se «a incomunicabilidade dos animais de companhia que cada um dos cônjuges tem à data da celebração do casamento, esclarecendo que os mesmos estão assim excluídos da comunhão se forem de cada um dos cônjuges à data da celebração do casamento».

Segundo a jurista, «cabe às partes acordar quanto ao destino dos animais de companhia, sendo certo que, na falta de acordo, caberá ao tribunal apreciar quem deverá ficar com os mesmos e se aqueles passarão a estar em exclusivo com um dos membros do casal ou se passarão a estar com os membros do casal em períodos alternados e quais».

Mas Madalena Pinto de Abreu deixa uma ressalva: «Pese embora esta alteração legislativa seja muitas vezes comparada com uma equivalência da situação dos animais de companhia à situação dos filhos do casal, e do exercício das responsabilidades parentais, não nos parece que se possa afirmar que estamos perante uma equiparação de regime total ou sequer realidades substantivas iguais».

Apesar de «conferir uma maior proteção aos animais de companhia», procurando «tê-los em consideração no momento do término da relação conjugal», esta alteração «apenas se procura adequar à realidade dos tempos e refletir aquela que é a perspetiva de muitos casais relativamente aos seus animais de companhia». Por isso, é «errado» afirmar que se trata de uma equiparação, sobretudo tendo em consideração o facto de o exercício das responsabilidade parentais se encontrar extremamente regulado e em matérias diversas e visar acima de tudo o superior interesse da criança.

Em sintonia está Rute Marina Marques, que utiliza também a legislação de 2017 para explicar que «quando um casal decida avançar com o processo de divórcio, deverá decidir, também, sobre qual o destino dos seus animais de companhia».

A Advogada Associada na CEG – Costa Estácio, Galvão & Associados explica também que a legislação não equipara o estatuto dos animais ao das crianças, mas exige que «haja o acordo quanto ao destino do animal, ainda que na prática possa esse acordo versar sobre questões complementares, como o regime de visitas, a prestação de alimentos, divisão dos encargos com as consultas veterinárias, entre outras, com as respetivas adaptações».

Já Frederico Assunção, Advogado Sénior da Dantas Rodrigues & Associados, avança à LUZ que, com a lei de 2017, os animais de companhia «passaram a ser vistos como família», o que obriga a que «sempre que um casal se queira divorciar, deve acordar, obrigatoriamente, o destino» destes animais.

O advogado refere que, em casos em que o casal tenha acordado em todos os elementos, exceto no destino dos animais de companhia, «o caminho a seguir para o casal deverá ser o divórcio sem consentimento do outro cônjuge», não podendo haver acordo sem esclarecer este assunto.

Curiosamente, Frederico Assunção difere em relação às duas especialistas do âmbito do direito familiar ouvidos pela LUZ, garantindo que a equiparação entre crianças e animais nestes casos é válida. «Um acordo sobre tal matéria deverá observar os mesmos aspetos que os tidos em conta para o exercício das responsabilidades parentais das crianças e jovens, sem prejuízo de termos noção que tal solução não é consensual nem pacifica, embora nos pareça, na sorte de melhor, a mais acertada», defende.

Papa na retranca

O anúncio da entrada em vigor da lei espanhola sobre o peso dos animais de companhia nos processos de divórcio chegou, praticamente, ao mesmo tempo que a igreja Católica se insurgia contra a ‘substituição’ dos filhos  por animais. Durante a primeira audiência geral do Ano Novo no Vaticano, o Sumo Pontífice mostrou-se preocupado com as taxas de natalidade globais e acusou os casais que escolhem ter animais de estimação em vez de crianças de estar a agir de forma egoísta, e que renunciar à maternidade e à paternidade está a a diminuir a nossa humanidade. «Os cães e os gatos ocupam o lugar dos filhos. Esta negação da paternidade tira a humanidade, a civilização envelhece […] Vemos que algumas pessoas não querem ter filhos. Às vezes, têm um e chega, mas têm cães e gatos que tomam o lugar das crianças», criticou o Papa Francisco.