Publicado na quarta-feira, um editorial do British Medical Journal (BMJ) desenterra um tema sensível na relação da indústria farmacêutica com reguladores e publicações científicas. Assume uma posição de força sem panos quentes: exige que os dados em bruto dos ensaios clínicos das vacinas e tratamentos da covid-19, nas mãos das farmacêuticas e sujeitos a contratos de confidencialidade, sejam divulgados «de imediato» a investigadores e comunidade médica para escrutínio.
Recordando o que descrevem como a ‘saga do Tamiflu’ na pandemia de 2009, e a dificuldade que foi obter dados sobre os ensaios que mostravam vantagens modestas – com a vacinação, a pandemia acabaria por ter um impacto menos desfavorável do que inicialmente se previa e muitos lotes não foram usados – consideram que houve progressos, mas «claramente não foram os suficientes» e que se estão a repetir com a covid-19 erros da última pandemia.
«Hoje, apesar da utilização global de vacinas e tratamentos da covid-19, os dados anonimizados de participantes subjacentes aos ensaios para estes novos produtos permanecem inacessíveis a médicos, investigadores e a público – e provavelmente permanecerão assim nos próximos anos. Isso é moralmente indefensável para todos os ensaios, mas especialmente para aqueles que envolvem grandes intervenções de saúde pública», escrevem Peter Doshi, editor senior do BMJ, Fiona Godlee, antiga editora executiva e Kamran Abbasi, o atual editor executivo da revista, todos médicos.
Como exemplo paradigmático, o facto de a Pfizer ter indicado que só prevê começar a responder a pedidos de acesso a dados em bruto a partir de maio de 2025, 24 meses depois do final do ensaio primário da vacina em maio de 2023. E de outras farmacêuticas como a Moderna e AstraZeneca não apresentarem janelas temporais muito mais curtas ou processos mais facilitados.
«Ficamos com publicações, mas sem acesso aos dados subjacentes mediante pedidos razoáveis. Isto é preocupante para os participantes dos estudos, investigadores, médicos, editores de jornais, decisores de políticos e o público», reclamam, citando declarações de um antigo responsável da Agência Europeia do Medicamento a afirmar que isso «não é boa ideia», reconhecendo o esforço de organismos como a Health Canada e a EMA (reguladores canadiano e europeu) em conseguir algum grau de transparência divulgando a informação adicional que recebem das farmacêuticas e também a decisão na justiça norte-americana que obrigou a FDA, segundo os autores menos proativa, a divulgar 55 mil págnas de dados recebidos da Pfizer sobre a vacina mensalmente, em vez das 500 páginas que o regulador norte-americano se ofereceu para fazer.
Um dos pontos sensíveis que trazem à liça e que até hoje não teve resposta é por que motivo os ensaios das vacinas da covid-19 não testaram eficácia na prevenção de transmissão/infeção. «Se os reguladores tivessem insistido nesse resultado, os países teriam aprendido mais cedo sobre o efeito das vacinas na transmissão e poderiam planear adequadamente», escrevem os três médicos, tecendo duras críticas à indústria farmacêutica e lembrando que as empresas envolvidas na produção de vacinas já tiveram processos criminais e civis no passado, com sanções de milhões.
«O BMJ apoia políticas de vacinação baseadas em evidência sólida», escrevem, considerando que à medida que prossegue a vacinação não pode ser pedido aos investigadores e público que confie no sistema sem transparência. E que há muito dinheiro em jogo: «As empresas farmacêuticas estão a colher grandes lucros sem o escrutínio independente adequado das suas alegações científicos. O objetivo dos reguladores não é dançar ao som das grandes corporações globais e enriquecê-las ainda mais: é proteger a saúde das suas populações».
Um tema complexo, uma posição importante, um mau exemplo
Pelo tom, o texto dificilmente passaria despercebido a quem trabalha na área, embora o momento e o foco nas vacinas da covid-19, cujos resultados em termos de diminuição de mortalidade e internamento estão à vista numa vaga de covid-19 sem precedentes em termos de números de infetados, não esteja a gerar reações unânimes.
Mas todos os especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL admitem que o editorial aponta para um problema importante e complexo, que vai além dos medicamentos da pandemia mas acaba por ter especificidades na covid-19: porque o desenvolvimento dos produtos teve as suas etapas aceleradas pela necessidade de respostas rápidas para a crise que se vive desde março de 2020, porque nunca os Estados investiram tanto em medicamentos para uma única doença nem as farmacêuticas envolvidas terão faturado tanto num espaço tão concentrado de tempo. E porque os Estados tiveram pressão para tomar decisões rapidamente, entre as alternativas disponíveis.
José Aranda da Silva, o primeiro presidente do Infarmed, farmacêutico com longa experiência na Agência Europeia do Medicamento e no Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças, considera que este é um alerta importante na medida em que a falta de transparência põe em causa a credibilidade de um sistema que tem de ser marcado pela confiança.
«A experiência que tenho na área reguladora de medicamentos a nível nacional e internacional levam-me a pensar que no passado houve situações pouco transparentes nesta relação, algumas que foram públicas e passíveis de ação criminal», reconhece, sublinhando que no caso das vacinas da covid-19, a partir do momento em que se reconhece que «houve um processo de desenvolvimento e aprovação mais expedito do que o habitual, com os aspetos positivos que isso trouxe no combate à pandemia, isso ao mesmo suscita a necessidade de maior transparência».
Para José Aranda da Silva, devem ser os reguladores a tomar a iniciativa de exigir mais transparência, contribuindo para uma relação de maior confiança entre todos os agentes.
Um especialista também com vasta experiência nesta área, que prefere não ser identificado, explica que este é um tema complexo e que está longe de se cingir à covid-19. E tem um ponto prévio: é a indústria farmacêutica que faz o desenvolvimento de praticamente todos os medicamentos a partir das fases clínicas, mesmo quando a investigação inicial começa em universidades públicas.
Por outro lado, os reguladores dependem do financiamento das taxas pagas pela indústria seja farmacêutica ou de dispositivos médicos, e o português não é exceção, retirando assim esse ónus financeiro do Estado, que não investe no desenvolvimento de medicamentos: «Assim, existe um evidente conflito de interesses».
Salientando que os ensaios são observados por comités externos de pessoas independentes e que são à partida rigorosos, até por um racional financeiro das empresas envolvidas, admite que o controlo da informação por parte da indústria é algo que precisa de ser regulado.
Por outro lado, vestindo os sapatos da indústria, setor que «viveu uma oportunidade única de financiamento na pandemia» – as estimativas são de receitas no valor de 80 mil milhões de euros – mas que é também dos que investe mais dos seus lucros em investigação e desenvolvimento (alguns estudos apontam para 18%), há que entender como o escrutínio é encarado como problemático. «Uma empresa destas investe 1500 milhões de euros para desenvolver um medicamento e as conclusões começam a ser postas em causa por pessoas que podem não ter habilitações ou credibilidade. Percebe-se que não queiram arriscar tudo».
Aqui chegados, há um ponto: «o impacto das vacinas foi de tal maneira espetacular que estamos a discutir um assunto que é importante mas com um mau exemplo», afirma este responsável. Por outro lado, no caso da eficácia contra doença grave e hospitalização, há medicamentos com menores taxas de eficácia em que o escrutínio se torna ainda mais vital quer para os reguladores que dão pareceres, os decisores que financiam e o próprio público.
Um exemplo, refere, é a área de oncologia, em que há dados que indicam que apenas em uma em cada quatro pessoas tratadas com um novo medicamento se obtêm os resultados dos ensaios e se torna necessário perceber porquê. No caso da eficácia das vacinas da covid-19, aos números anunciados pelas farmacêuticas quando pediram aprovações aos reguladores seguiram-se ao longo dos últimos meses estudos nos diferentes países e universidades a medir eficácia, com resultados sobreponíveis às taxas de eficácia iniciais, notam-nos ainda.
Menos claros ao longo do tempo em termos de vantagens são por exemplo os benefícios de medicamentos como o remdesivir, aprovado em julho de 2020 na UE para o tratamento da covid-19 e que os países, incluindo Portugal, adquiriram.
Lancet apoia, Pfizer não responde, EMA atenta
O Nascer do SOL procurou perceber junto das principais revistas médicas se se reveem na posição do BMJ. Apenas o grupo Lancet respondeu, dizendo «concordar que a transparência constrói a confiança do público na ciência e em políticas baseadas em ciência» e que «partilhar dados sem identificação imediatamente após a publicação dos resultados da pesquisa aumentará a transparência e confiança».
A Lancet salienta que o Comité de Editores de Jornais Médicos tem estado a lutar por isso e que desde 2018 todos os manuscritos submetidos à Lancet devem conter uma declaração de partilha de dados, algo estendido em 2020 a todos os trabalhos de investigação, independentemente do método.
Já a Agência Europeia do Medicamento salienta ao SOL, como é referido no editorial, que tem das políticas mais progressivas na publicação de dados de ensaios clínicos e tomou medidas extraordinárias para maximizar a transparência durante a pandemia.
A Pfizer internacional, também contactada, não respondeu porque é que só vai começar a disponibilizar dados a partir de 2025 e quantos pedidos já recebeu.