Um bom resumo das coisas no que toca às posições dos partidos e aos seus programas a respeito da Cultura pode ser enquadrado segundo a parábola que David Foster Wallace serviu ao corpo docente da Universidade de Kenyon que o ouvia, quando, em 2005, lhe coube fazer o discurso da cerimónia de graduação.
Este viria a ser amplamente difundido mais tarde, e sobretudo depois da sua morte por suicídio, três anos depois: “dois jovens peixes nadam juntos e, um dia, por acaso, encontram um peixe mais velho a nadar em sentido contrário, que lhes acena e diz: ‘Bom dia, rapazes, como está a água?’. Os dois jovens peixes continuam a nadar, até que um deles olha para o outro e pergunta: ‘Mas que raio é a água?’”. Wallace prossegue e explica o que está em causa: “o ponto imediato da história dos peixes é que as realidades mais óbvias, omnipresentes e importantes são frequentemente aquelas que são mais difíceis de ver e de falar”.
Essa é a condição da Cultura no nosso país. Quanto mais relevante se torna, mais se apaga, mesmo que a ela conduzam a maioria dos nossos problemas. Não deixa, no entanto, de ser confrangedor notar a forma como se eclipsou nos debates televisivos, raramente sendo mencionada nas ações de campanha e discursos, e, mesmo nos programas dos partidos não é senão como a folha de alface que se estende ao grilo quando se captura e se pretende ouvi-lo cantar na casa de banho por uns dias.
Ainda assim, pelo menos metade dos partidos que concorrem às eleições legislativas que irão realizar-se no próximo dia 30 incluem a Cultura no programa eleitoral. Entre intenções genéricas e propostas concretas, boa parte deles converge na defesa do património e, em alguns casos, na meta de 1% do orçamento para o setor. O BE, o PCP, o CDS-PP, o Livre, o RIR e o Nós, Cidadãos fazem referência a 1% de verbas do Orçamento do Estado para a Cultura. Já o PS escreve que quer “aumentar a ambição orçamental de investimento da Cultura para 2,5% da despesa discricionária” do Orçamento do Estado.
Uma espécie de música que se ouve do arrasto das areias no leito do mar vem da revisão do Estatuto dos Profissionais da Cultura, o qual entrou em vigor no primeiro dia do ano, e que une três partidos na sua filarmónica – Bloco de Esquerda, PAN e Livre –, ao passo que o PS assume o compromisso de “proceder à sua implementação”.
Embora defina o enquadramento legal dos trabalhadores independentes deste setor, o estatuto há muito reclamado por estes profissionais só entrará em vigor mais tarde, como a parte que diz respeito à proteção social, que só entra em vigor em 1 de Julho, e os trabalhadores podem que se tenham inscrito no Registo dos Profissionais da Área da Cultura (RPAC), através da Inspeção-Geral das Atividades Culturais, só a partir de 1 de Outubro poderão ter acesso ao subsídio de suspensão de atividade. Portanto, ainda está para se saber que impacto este terá na vida do setor.
Agora antes de irmos mais longe, e às orientações gerais de cada um dos partidos, vale a pena limpar já do horizonte essas formações que se servem do peixe que fica preso nas redes, e que não desenvolvendo um modo característico de pesca, entendem que a Cultura simplesmente engole o que for preciso. Como seria de esperar, a direita não entende que esta seja uma prioridade, mas o Chega vai ao ponto de não apresentar uma só medida específica e detalhada para o setor cultural.
Apesar de não ir muito além da tradicional reafirmação do Estado na defesa do Património, o CDS-PP ainda consegue deixar uma nota soar firmemente debaixo de água, e assume que pretende a revogação do Acordo Ortográfico de 1990, essa espécie de veneno discretíssimo que tem ajudado a tornar as águas ainda mais turvas, gerando uma língua espartilhada entre diferentes categorias de peixes, dos mais miúdos àqueles que vivem mais anos e têm uma boa compreensão da propagação do som nestas circunstâncias.
A este respeito, e apesar de toda a confusão gerada, e dos fracos resultados conseguidos a nível de uma verdadeira regra comum no uso da língua, o PSD quer saber o “real impacto” do novo Acordo Ortográfico. Voltando ao CDS, este avança também com a proposta de criar um “Dicionário Universal da Língua Portuguesa e da Biblioteca Universal da Língua Portuguesa, contendo entradas respeitantes às palavras usadas em todos os países de língua portuguesa”. Por sua vez, o PS, nesta área, pretende dar continuidade à última legislatura, comprometendo-se a “efetuar as intervenções em património cultural classificado”, previstas no Plano de Recuperação e Resiliência. Já o PSD defende “um plano detalhado de inventariação e reabilitação dos edifícios com maior valor cultural”.
De um partido liderado por Rui Rio ninguém esperaria um visão para o reflorescimento deste setor, e a maioria das propostas dos sociais-democratas servem mais para não dizerem que o tema não entrou no programa. Assim, o PSD defende uma Lei de Bases da Cultura, sugere a criação de um “Museu de Portugal no Mundo, que, sem preconceitos nem tabus, narre a longa história do país”, e uma reflexão sobre uma “grande Escola Portuguesa de Design”.
Por seu lado, a Iniciativa Liberal segue a toque de caixa, e basicamente estende a lógica de entregar aos privados todos os instrumentos a ver que concerto nos dão. Assim, esta formação entende que o que falta é uma “maior participação do setor privado na gestão do património português, das instituições culturais e na execução da política cultural”.
Outra das propostas dos liberais passa por “fundir a Direção-Geral do Património Cultural e as quatro Direções Regionais de Cultura num Instituto Nacional do Património Cultural dotado de autonomia administrativa e financeira”. Este partido considera ainda que a atividade dos agentes culturais deve ser “descomplicada de burocracias ou cargas fiscais”, e com total irresponsabilidade, pede a revogação da lei do preço fixo do livro e brande uma alteração da lei da cópia privada.
Pela amostra, já se vê que a Cultura não é objeto de grande discussão, e o que vai surgindo nos programas de Governo são algo como anotações marginais, um tanto esquemáticas, e, assim, o PS ergue a batuta e desenha no ar propostas bastante genéricas, assumindo que irá “repensar os incentivos ao mecenato cultural” e “promover a igualdade de género”. Fala ainda na criação do Museu Nacional de Arte Contemporânea, algo que já existe em Lisboa, ou na criação do Museu Nacional da Fotografia, “a partir dos equipamentos já existentes”.
Embora assuma uma postura mais empenhada, infelizmente o Bloco de Esquerda continua a desperdiçar todas as oportunidades de nos dar uma outra dimensão do problema, repensando de raiz aquilo que tem sido uma espécie de atraso mental no que toca a entender a inércia de fundo no setor. Assim, pede uma Lei de Bases da Cultura e, em matéria laboral, um “programa de combate ao trabalho informal” e a vinculação dos “precários dos organismos públicos”.
Para o PCP a cultura ainda é em grande medida uma coisa que se põe ao serviço das orientações gerais, limitando-se a realçar medidas para a área como “criar um Serviço Público de Cultura, erradicar a precariedade e estabelecer mecanismos eficazes de acesso às prestações sociais e a uma carreira contributiva estável para os trabalhadores da Cultura”.
Os comunistas reciclam o programa eleitoral de 2019, considerando que este se mantém “atual e válido”, citando dele o fim do programa Revive, de concessão de património imóvel do Estado a privados, a salvaguarda do “caráter integralmente público da Cinemateca” e a implementação de um “verdadeiro Estatuto do Bailarino”.
Quanto ao PAN, este pretende “consagrar a Cultura como bem de consumo essencial” e ter “uma rede nacional de museus na defesa da memória das migrações, da interculturalidade e dos direitos humanos”.
Já o Livre, quer ser ousado no que toca a “descolonizar a Cultura”, assumindo a necessidade de se fazer “uma listagem nacional de todas as obras, objetos e património trazidos das ex-colónias e que estão na posse de museus e arquivos portugueses, de forma a que possam ser restituídos ou reclamados pelos Estados e comunidades de origem”. Mas não assume também nenhuma visão forte para o setor, e entrega-se a intervenções pontuais, como o fim dos subsídios para as touradas e de “todo o tipo de receitas provenientes de jogos de azar”, e a reestruturação da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas. Ou seja, os peixes continuam a nadar sem nenhuma ideia clara sobre como raio se afeta a temperatura ou a qualidade da água.