Por Fernando Matos Rodrigues e António Cerejeira Fontes – Antropólogo e Arquiteto, CICS.Nova_UM/Lahb
E agora, José!
Você marcha, José!
José, para onde?»
(Carlos Drumond de Andrade, Poesias, 1942)
1. Cidade habitação, continuamos sem uma política nacional de habitação básica que promova o acesso a uma moradia digna para estudantes, para jovens, para casais, para quem trabalha na cidade. Os preços pelo metro quadrado continuam a rondar a loucura económica, com as duas principais cidades do país (Porto e Lisboa), sem capacidade para apresentar uma estratégia municipal capaz de reverter a situação atual. A Estratégia Local de Habitação (ELH) não está a alavancar propostas e políticas que garantam o direito à cidade e à habitação. Os cidadãos continuam sobre o efeito da liberalização da habitação, promovida pelas sucessivas reformas constitucionais que permitiram a desregulação da Lei do Arrendamento Urbano em Portugal, com a flexibilização e a liberalização das políticas de arrendamento inscritas no RAU e no NRAU, em sintonia com as políticas neoliberais da União Europeia (Rodrigues & Tarsi, 2020). A Lei de Bases da Habitação (Lei n.º 83 de 13 de setembro 2019) continua por regulamentar na sua totalidade, e, o pouco que se regulamentou não é suficiente para garantir uma nova política de habitação nacional (Silva, 2020; Rodrigues et al., 2020). Continua urgente a implementação de uma política nacional de habitação básica participativa (ver Projeto Habitação Básica Participativa/Ilha da Bela Vista, 2013-2017, Porto), amiga da sustentabilidade ambiental das cidades e da renda familiar, garante de uma habitação digna e a preços justos. Um programa de habitação básica (Raposo, 1996; Gesto & Perea, 2012; Rodrigues, Silva, Fontes, 2017) que possa contrariar os velhos e inadequados programas de habitação em blocos e os modelos de realojamento das últimas décadas (o caso do PER/1993) que apostaram na deslocação e segregação espacial das famílias que se encontravam em situação de habitação insalubre. Estes programas e modelos de habitação encontram-se esgotados e são causa de injustiça social e de construção de identidades negativas, classificando famílias, jovens e idosos a partir de estigma social e espacial. No entanto, o Estado Central e o Poder Local teimam em lhes dar continuidade, resistindo a uma necessária e urgente mudança de paradigma nas políticas de habitação.
2. Cidade negócio, Lisboa e Porto têm sido o palco privilegiado deste fenómeno de assédio por um capitalismo financeiro global que descobriu no território uma fonte de enriquecimento rápido. O problema é que este tipo de capitalismo financeiro globalizado, deseja converter as nossas cidades numa espécie de artigo de luxo para deleite de um capitalismo global que circula sem fronteiras e sem controle por parte dos Estados. Este capitalismo circula sem qualquer regulação por parte do Estado, em ‘absoluta’ promiscuidade com os governantes que privatizam o estado em nome de grandes negócios, e, com frontal desinteresse pela causa pública e Bem-Estar Coletivo. Todos, nós, assistimos, há crise do subprime em 2008/2009 e suas consequências nos mercados financeiros globais. Com Portugal a entrar em resgate por divida excessiva, e ao desmoronar da banca portuguesa e das famílias que entraram em incumprimento nos créditos à habitação. A ideologia da cidade negócio veio para substituir o discurso da decadência da cidade vazia, da cidade criminalizada e insalubre. Toda esta ganga neoliberal se articulou com as políticas de requalificação e de reabilitação promovidas a partir dos diretórios internacionais como a UNESCO, o Banco Mundial, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional. Perante a desindustrialização das cidades, implementam-se várias e diversificadas estratégias e programas de reabilitação (REHABITA, POLIS, PER, SRU, SERPOBRA, ARU, ORU, IFFRU, etc.) que levam à higienização das cidades, limpando os cascos de tudo aquilo que era indesejável e classificado como insalubre, promovendo a deportação de pessoas e a deslocação de economias e serviços públicos. Estas políticas de renovação urbana convertem os bairros populares em zonas chiques para turista e capitalista endinheirado, afastando os pobres e a classe média em beneficio de uma classe de novos ricos ao abrigo dos Vistos Gold (cf. Portaria n.º 208/2017, de 13 de julho; com alterações com o Decreto-Lei n.º 14/2021, de 12 de fevereiro). Estamos perante a gentrificação dos cascos históricos e dos seus bairros ‘típicos’, com a entrada de outros atores, com outro poder económico e social (Scott, 1990; Smith, 1996; Delgado, 2007; Wacquant, 2009; Rodrigues e Silva, 2015 e 2020; Garcia Canclini, 2019; Rodrigues & Tarsi, 2021). Sobre os efeitos da gentrificação nas cidades, alguns geógrafos e sociólogos, comprometidos com a cidade liberal, fazem uma leitura ‘abusiva’ deste conceito, com a apologia de que também existe um lado positivo na gentrificação das nossas cidades (Antunes, 2020; Queirós, 2015; Seixas, 2013) ignorando as consequências da deportação de uns e a integração agressiva de outros, com discursos apologéticos da cidade-periferia e da cidade-extensiva, numa clara negação do direito à cidade pelas classes e grupos sociais que vivem do rendimento do seu trabalho.