Por José Sócrates
Diz o senhor juiz que lhe entrou «em casa, pela televisão, o arguido Sócrates». A linguagem vulgar não surpreende, confirmando uma certa cultura judiciária que só conhece o mando de um lado e a obediência do outro. Nesse mundo fechado e autoritário, o cidadão visado numa ação penal já não é um igual, mas um «arguido» cujos argumentos não podem ser considerados ao mesmo nível da opinião dos outros, os que operam o sistema. Toda uma cultura judicial.
Toda uma cultura judicial que encontra, aliás, um interessante paralelo na inacreditável expressão da senhora ministra da justiça quando fala em «direitos dos justiçáveis» – já não falamos de direitos constitucionais de todos os cidadãos, mas de direitos daqueles que têm problemas com a justiça, que, como é sabido, não conhece a inocência, nunca se engana e raramente tem dúvidas. Vem de longe, esta cultura.
A linguagem revela também um certo ativismo político. Basta a leitura do primeiro parágrafo para se notar imediatamente espuma nos lábios e ódio político. O mesmo ódio que levou o antigo secretário-geral da associação de juízes a apresentar uma queixa-crime contra o governo socialista por gastos excessivos em gabinetes. A queixa nunca teve qualquer fundamento. No final, quase dez anos depois, dois secretários de estado foram acusados e absolvidos. Do processo nada resta, mas a manobra resultou – anos e anos de notícias de jornais, insinuando desperdícios e gastos sumptuários que nunca existiram. As «sérias reservas quanto à utilização de dinheiros públicos» nunca passou de uma impostura para esconder um lamentável exercício de politiquice e de apoio à direita.
Esta queixa só tem interesse histórico por marcar a primeira ofensiva na tentativa de criminalizar as políticas do Governo socialista. Depois vieram as PPP’s (processo iniciado pelo procurador Ventinhas), depois o caso EDP, depois o processo Marquês. Bem vistas as coisas, este artigo inscreve-se nessa já longa linhagem de intervenção política disfarçada de atividade judicial.
No resto, o artigo recorre à entediante técnica de afirmar que não está em condições de dar opinião sobre processos judicias, fazendo-o logo a seguir. Como se a inteligência de quem lê fosse demasiado limitada para perceber que nega o que está, de facto, a fazer. Na verdade, o senhor juiz expressa publicamente posição sobre um assunto que está em debate num tribunal e que vai ser decidido por um outro juiz, que gostaríamos que estivesse livre de todas as pressões, em particular as da classe. Digamo-lo sem rodeios – o artigo constitui uma inadmissível pressão corporativa sobre o tribunal que vai decidir sobre a abertura de instrução.
Mas deixemos de lado o tom malcriado do artigo e argumentemos quanto ao essencial. Segundo o Tribunal Constitucional «o princípio do juiz natural não é uma regra organizativa: é uma das garantias constitucionalmente consagradas do arguido». Garantia constitucional que, de acordo com a lei portuguesa, se cumpre com um sorteio que dura uns quantos segundos. Assim sendo, a ausência de sorteio não é facilitismo, nem erro, nem irregularidade – é uma violação de uma garantia constitucional. Na prática, o sorteio representa a distinção entre escolha arbitrária e juiz natural; entre Constituição e abuso; entre poder judicial democrático e poder judiciário autoritário que escolhe os juízes em função dos visados nos processos. Este é o primeiro e mais importante ponto em discussão.
O segundo ponto tem a ver com a necessidade de reafirmar o escândalo que está diante de nós – naquele tribunal o sorteio e a presença do juiz nos atos de distribuição não ocorreram durante um ano e meio, segundo confessa um dos juízes. Um ano e meio fora da lei. Um ano e meio fazendo a sua própria lei. Para o senhor presidente da associação de juízes só pode tratar-se de negligência ou de facilitismo. O único problema desta explicação é que nenhum erro, nenhuma negligência, nenhuma facilidade se prolonga por ano e meio se não for propositada. Não, não foi erro nenhum. Foi, isso sim, um comportamento reiterado e sistemático.
No final, anotemos os factos provados para que as pessoas possam julgar por si próprias. Primeiro, a distribuição foi falsificada; segundo, a distribuição foi falseada por uma funcionária próxima do juiz Carlos Alexandre e que foi sugerida por ele para aquele lugar; terceiro, uma outra funcionária foi afastada para que a funcionaria próxima do juiz fosse nomeada; quarto, naquele tribunal, os processos mediáticos eram maioritariamente entregues de forma manual ao juiz Carlos Alexandre; quinto este método durou mais de um ano e meio. Em conclusão, o único critério de distribuição naquele tribunal consistia no mediatismo do processo. Não, nada disto é negligência ou descuido. É um método de manipulação da escolha de juízes.
Os que estudam o fenómeno de ‘lawfare’ há muito identificaram como primeira operação a escolha do campo de batalha. A primeira tarefa, neste tipo de processos, é a escolha da jurisdição, ou seja, a escolha viciada do juiz. Uma escolha que visa transformar o processo num jogo de cartas marcadas. Foi assim no Brasil, assim é em Portugal.
Não, isto não tem defesa possível, agora que se descobriu como fizeram. Não foi nenhuma «irregularidade» nem nenhuma falta de cuidado com o «formalismo». Foi uma manipulação organizada. A agressividade do artigo do presidente da associação de juízes revela apenas o alarme e a inquietação perante aquilo que é agora um facto indiscutível no processo marquês – a maquinação para viciar a escolha do juiz.
Ericeira, 3 de fevereiro de 2022