Corria o mês de dezembro de 2019 quando os médicos em Wuhan, na China, começaram a questionar-se acerca dos muitos casos de “pneumonia” de causa desconhecida que lhes apareciam. No dia 30, os Centers for Disease Control and Prevention, sediados na cidade, endereçaram uma comunicação a todas as instituições hospitalares para que os profissionais de saúde ficassem atentos e fosse possível iniciar uma investigação.
Exatamente nesse dia, a diretora das urgências do Hospital Central de Wuhan, Ai Fen, “depois de atender vários pacientes com sintomas semelhantes aos da gripe e resistentes aos métodos habituais de tratamento, recebeu os resultados laboratoriais de um caso que continha a palavra ‘SARS-CoV’”, como relatou o jornal britânico The Guardian a 11 de março de 2020. Quando a profissional de saúde enviou uma fotografia do documento a um colega que trabalhava noutro hospital da cidade, este fez com que a mensagem circulasse e, a certo ponto, a notícia era conhecida em vários grupos. Incluindo num a que pertencia Li Wenliang.
Por ter em sua posse informações tão importantes, pelas 17h43 escreveu num grupo privado do WeChat que integrava juntamente com os seus colegas de curso: ‘7 casos confirmados de SARS foram relatados [ao hospital] do Huanan Seafood Market’. Para além do relatório do exame e da imagem da tomografia computorizada, Wenliang, uma hora depois, às 18h42, esclareceu que “as últimas notícias são que foi confirmado que são infeções por coronavírus, mas a estirpe exata do vírus está a ser investigada”.
No entanto, sabe-se que terá ficado descontente quando entendeu que as novidades estavam a ser divulgadas com demasiada rapidez. Quando capturas de ecrã da conversa começaram a circular online, a direção do hospital convocou-o para uma reunião e culpou-o por tudo aquilo que estava a ser conhecido.
Depois desta repreensão, a 3 de janeiro de 2020, a polícia do Departamento de Segurança Pública de Wuhan interrogou Li, emitiu uma advertência formal por escrito e censurou, tal como a chefia fizera, o médico por “publicar declarações falsas sobre sete casos confirmados de SARS no mercado de Wuhan”. O especialista em Oftalmologia acabou por assinar uma declaração comprometendo-se a não tomar mais nenhum posicionamento semelhante, depois de ter sido advertido de que poderia ser envolvido num processo judicial.
De volta ao quotidiano habitual, e a exercer funções, ficou infetado pelo novo coronavírus a 8 de janeiro, quase dois meses antes de ter sido confirmado o primeiro caso de covid-19 em Portugal (2 de março). A 7 de fevereiro, depois de lutar pela vida e ter necessitado de Oxigenação por Membrana Extra-corpóreal (ECMO), perdeu a batalha contra a doença, que era então quase totalmente desconhecida a nível mundial.
Volvido menos de um mês, a 4 de março, o médico dinamarquês Eskild Petersen e alguns colegas publicavam o artigo científico “Li Wenliang, a face to the frontline healthcare worker. The first doctor to notify the emergence of the SARS-CoV-2, (COVID-19), outbreak” no International Journal of Infectious Diseases, publicação da Sociedade Internacional de Doenças Infecciosas.
Por não ter conhecido pessoalmente o primeiro médico a morrer devido ao novo coronavírus, Petersen explica, em declarações ao i, que, “infelizmente”, não tem “muito mais para acrescentar” ao que escreveu no artigo, mas o professor emérito da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Aarhus e responsável pela ESCMID Emerging Infections Task Force (EITaF) da Sociedade Europeia de Microbiologia e Doenças Infecciosas, sediada na Suíça, evidencia que, tal como frisou no artigo publicado, “este caso prova os riscos das doenças emergentes para os profissionais de saúde”. Refere que “o nome do Dr. Li Wenliang é adicionado à longa lista de profissionais de saúde que estavam na vanguarda dos surtos de SARS, Ébola, MERS e agora SARS-CoV-2 (Síndrome Respiratória do Médio Oriente”.
“É importante reconhecer que foram os médicos em Wuhan que fizeram soar o alarme sobre o surgimento do SARS-CoV-2, que foi rapidamente identificado depois de terem enviado amostras para um laboratório de referência” para a então sequenciação do genoma de covid-19. Recorde-se que, em território nacional, a 6 de maio de 2020, o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA) anunciava que havia encontrado “150 mutações do novo coronavírus desde Wuhan, na China, até Portugal”, como era possível ler no comunicado.
“Como asseverámos, a segurança global da saúde pública é de primordial importância para prevenir surtos de doenças com potencial epidémico e esforços para detectar, relatar e instituir a prevenção de infeções e medidas de controlo devem ser tomadas”, observa Petersen, afirmando que “clínicos astutos, acesso a laboratórios com ferramentas de última geração e abertura, transparência e relatórios rápidos são componentes cruciais dessa resposta”. Por isso mesmo, tanto agora como inicialmente, devia ter havido “um fluxo aberto de colaboração entre especialistas laboratoriais e clínicos”, na medida em que os últimos são habitualmente os primeiros a identificar “casos clínicos incomuns”, defende.
“Os profissionais de saúde também são um dos grupos com maior risco de surtos devido a agentes patogénicos reemergentes e novos. Isto tem sido visto no atual surto de SARS-CoV-2 na China, onde 1.716 profissionais de saúde foram infetados pelo vírus e existiram 6 mortes até 14 de fevereiro de 2020”, lê-se no texto que foi publicado por aquele que já foi consultor do Ministro da Saúde de Omã – quando 29% de todos os doentes de um hospital em Wuhan eram profissionais de saúde “presumivelmente” infetados no local de trabalho.
Os outros rostos de uma luta desigual Wenliang constituiu um símbolo da persistência pela transmissão da verdade e crença na ciência, mas não foi o único a ser descredibilizado e a sofrer nos primeiros tempos da pandemia. Ai Fen, referida acima, foi uma das primeiras pessoas na China a saber que o novo coronavírus tinha tudo para se tornar numa pandemia e foi obrigada a ficar em silêncio.
Como o i noticiou a 31 de março de 2020, quando a médica e diretora do Departamento de Emergência do Hospital Central de Wuhan, estava desaparecida, a denúncia foi feita pelo programa ’60 minutes’, da CBS. Ai Fen utilizou a rede social WeChat, depois de analisar várias radiografias, para publicar a imagem de um relatório médico de um doente infetado com o novo coronavírus, isto é, a informação que Wenliang viria a partilhar.
A publicação foi feita em dezembro e a profissional alertava para o facto de os sintomas do doente serem semelhantes à conhecida gripe SARS. A médica quis também alertar os colegas e acabou por comunicar aos seus superiores que a China podia estar prestes a enfrentar uma nova pandemia. Decidiu opor-se às ordens que lhe haviam sido dadas e criticou as autoridades chinesas por suprimir alertas precoces do surto numa entrevista à revista chinesa Renwu, que foi publicada a 10 de março.
“Se eu tivesse tido a noção do que ainda aí vinha não tinha ligado nenhuma à reprimenda e tinha falado com ainda mais gente, com qualquer pessoa, em qualquer lado”, disse, sendo que, segundo a investigação da CBS, o próprio Presidente da China, Xi Jinping, ordenou que a entrevista fosse removida da internet, mas era tarde demais.
Mais recentemente, o The Straits Times, de Singapura, avançou que a médica “ficou quase cega de um olho” e encetou “uma disputa médica de alto nível que derrubou as ações da maior cadeia de hospitais privados da China”. Após ter sido submetida a uma cirurgia de catarata de quase 30.000 yuans, aproximadamente 4 mil euros, em maio de 2020, na filial de Wuhan do Aier Eye Hospital Group Co, verificou a “deterioração da visão no seu olho direito”.
O jornal adiantou que, em outubro desse mesmo ano, a mulher de 48 anos sofreu um descolamento de retina e “as ações da Aier caíram até 9,5 por cento em Shenzhen na manhã de segunda-feira (4 de janeiro) antes de reduzir as perdas”. A rede que administra mais de 500 hospitais na China e dezenas na Europa, Estados Unidos e sudeste da Ásia esclareceu em comunicado “que não há ligação entre a cirurgia e o descolamento de retina de Ai”, na medida em que “a miopia extrema” da médica teria sido um fator de alto risco e a intervenção cirúrgica ocorrera sem dificuldades.
Todavia, Fen declarou que os médicos da Aier ignoraram os resultados dos testes que poderiam sinalizar o risco da cirurgia e que os resultados de um teste pré-operatório foram “adulterados” para que se pudesse pensar que as suas cataratas estavam mais evoluídas. À sua vez, o hospital continuou a negar que os testes tenham sido adulterados, embora reconhecesse problemas como registos incompletos de pacientes após cirurgias e falhas da equipa em relatar diversos eventos adversos atempadamente.
Por outro lado, os jornalistas foram profundamente afetados e reprimidos. A título de exemplo, a jornalista Zhang Zhan está presa desde maio de 2020. Em dezembro, foi obrigada a interromper a greve de fome que estava a levar a cabo num estabelecimento prisional perto de Xangai, depois de lhe terem inserido um tubo de alimentação à força e amarrado os braços.
A denúncia foi feita pelo advogado da ativista que a visitou na altura. “Ela estava a usar um pijama grosso com uma cinta, a mão esquerda presa à frente e a direita presa atrás. Tinha um tubo inserido no estômago, estava presa porque queria puxá-lo para fora”, contou Zhang Keke ao The Guardian.
“Além de dores de cabeça, tonturas e dores de estômago, também houve dores na boca e na garganta. Ela disse que pode ser uma inflamação por causa da inserção de um tubo gástrico”, acrescentou, revelando que a sua cliente precisava de ajuda para ir à casa de banho. A ex-advogada tinha sido aconselhada pela defesa e pela família a parar a greve de fome, mas recusou.
Aquela que viria a ser conhecida também pelo ativismo foi detida por “gerar desacatos e causar problemas” e formalmente acusada de difundir informações falsas, depois de ter revelado nas redes sociais, em fevereiro, o que viu em Wuhan durante o surto de covid-19. A 5 de novembro de 2021, a família da jornalista disse que esta se encontrava à beira da morte. No Twitter, o irmão de Zhang escreveu que esta estava muito magra e alertou: “Pode não viver durante muito mais tempo” e pode “não conseguir sobreviver ao inverno”.
“Parece que, para ela, só Deus importa e as verdades nas quais acredita”, redigiu, sendo importante lembrar que o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China não forneceu detalhes sobre o estado de saúde da jornalista. Não têm vindo a ser conhecidas novidades acerca do mesmo nestes dois meses, mas a Amnistia Internacional continua a pedir a libertação imediata de Zhan.
Naquela época, teve início a vigésima Maratona de Cartas, aquele que é definido como “o maior evento de ativismo a nível global, que decorrerá entre novembro de 2021 e janeiro de 2022”, sendo que a organização prometeu envolver “milhões de pessoas em todo o mundo, desafiando-as a assinarem petições e escreverem mensagens de solidariedade para trazer justiça a pessoas em risco, e a defensores e defensoras de direitos humanos que enfrentam tortura, perseguição ou prisão injusta”. “Cada edição deste evento tem sido marcante em impactos positivos e vitórias de direitos humanos. Na edição de 2020, foram reunidas mais de 128.000 assinaturas em Portugal e mais de 4,5 milhões em todo o mundo”, lia-se em comunicado.
Os cinco casos deste evento são, além de Zhan, Bernardo Caal Xol (defensor dos direitos ambientais na Guatemala), Mikita Zalatarou (um jovem preso, agredido e alvo de tortura na sequência de um julgamento injusto na Bielorrússia), Ciham Ali (que sofreu um desaparecimento forçado na Eritreia) e Janna Jihad (uma das mais jovens jornalistas “no mundo, alvo de assédio e ameaças de morte por documentar o tratamento opressivo, e muitas vezes letal, do exército israelita para com palestinianos, em particular, as crianças”).
Esta segunda-feira, foi revelado que Portugal é o sexto país da União Europeia com mais novos casos diários de contágio com SARS-CoV-2, tendo passado de quarto para nono no mundo, segundo a plataforma ‘Our World in Data’. Os dados estatísticos atualizados ontem dão a conhecer que o Estado-membro com maior média de novos contágios por milhão de habitantes a sete dias continua a ser a Dinamarca, com 7120, seguida da Eslovénia (6340), Estónia (5210), Países Baixos (4760) e Letónia (4680).
Considerando apenas os países e territórios com mais de um milhão de habitantes, a Dinamarca está no topo da lista e seguem-se a Eslovénia, Israel (5630) e a Geórgia (5450). A média diária de óbitos subiu esta semana em Portugal de 4 para 5,1 e o Estado-membro com maior média de mortes diárias a sete dias é a Bulgária, com 12,6, seguida da Croácia, com 12,6, da Grécia (10), Eslovénia (8,1) e Hungria (7,6). Noutros países, a situação é ainda mais grave: na sexta-feira, a Universidade Johns Hopkins, dos EUA, confirmou que o país está perto de registar 6 milhões de mortes por covid-19.