Passavam dois anos desde os primeiros diagnósticos de sida no mundo, entre os muitos receios e estigma em torno da comunidade homossexual, havia suspeitas de que por detrás haveria um agente infeccioso, que podia bater à porta de qualquer um, e a confirmação chegou às páginas da revista Science a 20 de maio de 1983: Luc Montagnier e a sua equipa no Instituto Pasteur, em Paris, tinham isolado o retrovírus responsável pelo que seria a epidemia mais marcante na segunda metade do século XX através da biopsia de um doente francês de 33 anos, o VIH tipo 1. O cientista francês, laureado com o prémio Nobel, que disputou a descoberta com o norte-americano Robert Gallo, morreu esta terça-feira, aos 89 anos de idade, num hospital de Neuilly-sur-Seine, foi ontem confirmado.
Nos últimos meses, o virologista francês mostrou-se crítico em relação à vacinação em massa contra a covid-19, que considerou um erro, admitindo que poderia levar ao aparecimento de novas variantes, uma posição contrária a algumas vacinas que já tinha expressado antes da atual pandemia. Acreditava também que o vírus que nos últimos anos dominou as atenções resultou de uma manipulação artificial contendo partes do vírus da sida, o que não está demonstrado e motivou fortes críticas da comunidade científica – e ao mesmo tempo a admiração de movimentos anti-vacinas. Chegou a sugerir que quem fez a vacina fizesse um teste de VIH. Polémico até ao fim, desaparece numa altura em que a pandemia de covid-19 mostra maior controlo e a epidemia de sida, pesem as desigualdades numa e noutra, tem hoje tratamentos antirretrovirais que permitem que uma pessoa infetada viva uma esperança de vida longa, oportunidade que não tiveram os primeiros doentes na década de 80.
Fernando Maltez, presidente da Sociedade Portuguesa de Doenças Infecciosas e Microbiologia Clínica, que já como médico acompanhou há 40 anos os primeiros casos de VIH em Portugal, lembra como a sobrevida era de 18 meses. A descoberta do vírus, inicialmente disputada entre Gallo e Montagnier, e posteriormente atribuída ao virologista francês, foi “decisiva”, sublinha, considerando que as suas intervenções nos últimos anos não ofuscam um "contributo fundamental". Ao i, Fernando Maltez sublinha que foi a partir da descoberta do vírus que foi possível desenvolver testes de diagnóstico e antirretrovirais específicos para o VIH, que mudariam o curso da doença. O primeiro, a azidotimidina, conhecida como AZT, seria aprovada em 1987. “Luc Montagnier ficará sempre ligado à descoberta do vírus. Foi com ele também que trabalhou a professora Odette Ferreira, descobrindo o VIH-2”, evoca o médico, lembrando a investigadora portuguesa, desaparecida em 2018, que deixa também o seu nome na história da Medicina. O diretor do serviço de infecciologia do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, lembra como inicialmente se pensava que a doença que mereceu todos os epítetos, incluindo cancro gay, só afetava a comunidade homossexual, e como se percebeu que acometia utilizadores de drogas injetáveis e qualquer um com comportamentos sexuais desprotegidos, e como a explicação natural seria um agente infeccioso.
Embora não se tenha chegado ainda a uma vacina eficaz contra o VIH, Maltez destaca o “sucesso extraordinário” no desenvolvimento de medicação antirretroviral que permite controlar a doença. “Conseguimos transformar uma doença mortal numa doença crónica”, sublinha. Em Portugal, desde os primeiros casos em 1983, foram diagnosticados mais de 61 mil infeções por VIH e, até ao final de 2020, a sida tinha feito 15 213 vítimas mortais.