Era um princípio de tarde molenga nos Olivais Sul da minha adolescência. Nada havia verdadeiramente melhor para fazer do que ir acumulando garrafas de cerveja em cima das mesas do Café do Tó. Por isso fui a Alvalade. E nunca mais esqueci.
Dia 30 de janeiro de 1983. Rui Manuel Trindade Jordão entrou para a eternidade, de calcanhar, pela porta dos príncipes. Ele que era um príncipe. Já descrevi o lance para mim mesmo milhares de vezes. Já o escrevi em páginas de jornais por mais uma centena.
O homem assumiu a alma de um deus dos estádios e subiu ao lugar mais alto da montanha dos eleitos quando, ao minuto 36, pelo meio de toda a defesa do FC Porto, foi ao encontro de uma bola que vinha a meia altura, para dentro da área de Amaral, esperou que ela se cruzasse com o seu calcanhar e fez a magia de, com um toque precioso, a fazer subir e descer por sobre a cabeça do guarda-redes do FC Porto.
Eurico era o defesa portista encarregado de o marcar, como se fosse possível marcar um fantasma negro e vaporoso. Certo dia contou numa entrevista ao Rui Miguel Tovar: «Às vezes, ainda discuto com ele sobre se ele fez de propósito ou não. É uma bola cruzada, tipo centro-remate e ele antecipa-se ao defesa, que sou eu. Na antecipação, eu espero que ele controle a bola. Em vez disso, ele mete a parte lateral da bota, calcanhar, e atira à baliza do Amaral, que não tinha a mínima hipótese. Foi no topo sul do antigo Alvalade. Um golo de antologia. De museu. Esse jogo acabou 3-3 e ele marcou os três golos». Discutirão talvez ainda o lance lá na planície da infinita saudade onde devem morar na Porta 10A.
O futebol de Jordão não se reduzia à estatística, a maldita da estatística que decide, por vontade de um jornalismo sem coração, a verdade dos melhores. Era etéreo. Imagem mil vezes repetida.
30 de janeiro de 1983: apanhei o 50, que tinha Algés como destino, autocarro apinhado de adeptos do Sporting, chocalhámos até perto de estádio. Fiquei no topo sul. Testemunha privilegiada daquele que talvez seja o momento mais belo de toda a história de jogos entre Sporting e FC Porto. Esfreguei os olhos com força: tudo em Jordão foi inacessível para os que se limitaram a observar a elipse encantada do golo. Foi realidade ou fantasia? O próprio Jordão foi realidade ou fantasia? Rui Manuel Trindade Jordão. Se quiser recordar a última vez que estive com ele, não consigo. Acho que ninguém consegue. Parecia fictício. Como retirá-lo daquela redoma onde se fechou?
O príncipe!
Nessa tarde de janeiro, Rui Manuel Trindade Jordão, caiu do céu aos trambolhões para desfazer a defesa do FC Porto com três golos – dois deles de grande penalidade, aos 12 e 66 minutos – mas isso não foi o suficiente para garantir a vitória dos leões. Do outro lado do campo havia uma dupla que também era uma raridade.
Muito provavelmente a dupla de pontas-de-lança mais elegante a jogar a bola com a cabeça que alguma vez existiu no futebol português: um deles era Fernando Gomes, meu querido amigo Fernando, que se misturava com o golo da mesma forma que a mão esquerda se mistura com a direita, e um irlandês que viera do Queen’s Park Rangers e se chamava Mike Walsh, Mickey para os íntimos. O primeiro marcou aos 25 minutos, de penálti; o segundo aos 17 e 39.
Jordão desvaneceu-se no Sporting e desvaneceu-se dos relvados em 1989. Eurico outra vez: «Cinco ou seis anos antes de acabar a carreira, já estava saturado do futebol. E era um predestinado. E um predestinado nunca se chateia do que gosta, mas o problema é este mundo do futebol. As pessoas e tudo aquilo que anda à volta dele». Não ia aos estádios.
Tinha uma vida para além da vida-vidinha. Tinha uma arte a precisar de espaço, de tintas e de telas, teve sempre uma arte, as formas inventadas pela musa dos sentidos, qualquer coisa o perseguia e o desinquietava, Jordão o plácido, Rui Manuel Trindade Jordão encantado no dia 18 de outubro de 2019 no Hospital de Cascais, traído pelo coração, e sabia tão bem como não se pode confiar no coração.