As escutas telefónicas efetuadas durante a investigação da Operação Cartão Vermelho demonstram que os gestores do Fundo de Resolução (FdR), o mecanismo constituído pelos bancos para acorrer a situações de crise de um deles, perceberam que havia um conluio entre a administração do Novo Banco (NB) e Luís Filipe Vieira para burlar o Estado. Esses gestores não fizeram, porém, qualquer denúncia ao Ministério Público (MP), como era seu dever.
Segundo o relatório da Inspeção Tributária (IT), terá sido através de informação privilegiada veiculada por Vítor Fernandes, então administrador do NB, que Luís Filipe Vieira, um dos maiores devedores do banco, conseguiu recuperar para a sua esfera pessoal, por apenas 11 por cento do valor da dívida que tinha à instituição, um valioso património imobiliário penhorado à mesma casa bancária por conta desse crédito – o que configurará uma ilegalidade.
Vítor Fernandes terá sido até, segundo o mesmo relatório, o cérebro dos esquemas montados para que o ex-presidente do Benfica – suspeito de crimes de burla, abuso de confiança e branqueamento de capitais – recuperasse a preço de saldo as garantias dadas como contrapartida do crédito.
‘O FdR está renitente’
O primeiro plano, que acabou por fracassar, necessitava da concordância do FdR, que em 2019 colocou em leilão a dívida de Vieira, entre vários outros empréstimos dados como irrecuperáveis.
Para essa engenharia, o então presidente do clube encarnado não podia dar a cara. Foi o empresário José António dos Santos (o ‘Rei dos Frangos’), seu amigo e considerado pelo MP seu testa-de-ferro, quem entrou no jogo através de um fundo que se candidatou à compra da dívida. Mas os gestores do FdR (que é gerido e fiscalizado pelo Banco de Portugal) rapidamente terão detetado a manobra. Tal fica claro numa das escutas da Operação Cartão Vermelho, na qual um funcionário do NB diz ao filho de Vieira (também arguido neste processo): «O Fundo de Resolução está renitente em retirar a dívida do pacote, por se tratar de um grande devedor».
O funcionário apenas podia estar a referir-se ao presidente do Benfica, dado que José António dos Santos estava fora dessa carteira. Assim, o banco e, por conseguinte, o FdR, sabiam que Vieira estava a eliminar a sua dívida, adquirindo-a através de um intermediário por um valor muito inferior. No entanto, os gestores do FdR não denunciaram ao MP esta aparente tentativa de burla, como era seu dever.
O especialista em direito administrativo e constitucional Paulo Otero, embora ressalvando que não conhece o processo, adianta que a lei estipula que, «sempre que alguém que exerce funções públicas toma conhecimento, no exercício dessas funções, de um indício criminal, deve comunicar à autoridade pública competente».
Fundo de Resolução paga 40 milhões
Se o Fundo de Resolução tivesse cumprido o seu dever, poderia ter-se evitado uma operação que representou uma perda para o NB superior a 80 milhões de euros, que a instituição imputou em mais de 50% ao FdR.
De facto, nos termos do contrato de venda do NB ao fundo norte-americano Lone Star, em 2017, o FdR (que tem funcionado na base de suprimentos do Orçamento do Estado) obriga-se a compensar a instituição pelas perdas em crédito malparado, como foi o caso das dívidas do presidente do Benfica, o seu segundo maior devedor, que tinham sido consideradas incobráveis.
A dívida de Vieira ao NB teve origem em empréstimos contraídos entre 2012 e 2014 junto do BES, destinados a investir em dois promissores negócios da sua empresa Promovalor no Brasil (para os quais ele criara, além-Atlântico, a sociedade Imosteps): a concessão e exploração privada de um cemitério (atividade que pode render fortunas naquele país) e a aquisição de um terreno de 112 mil metros quadrados para construção no Parque Nacional da Tijuca, um dos bairros mais caros do Rio de Janeiro. Só os terrenos da Tijuca estarão avaliados em 90 milhões de euros.
Com a resolução do BES, em 2014, e a criação do seu sucessor Novo Banco, esses imóveis dados por Vieira como garantia dos empréstimos, no valor de 54,5 milhões de euros, foram incluídos nos ativos da nova instituição bancária. Mas em 2019, após um plano de reestruturação do NB (que passou a ser controlado pelo FdR, na sequência da venda de 75% do seu capital à Lone Star), os imóveis surgiram integrados no maior portefólio de ativos posto à venda pela instituição, designado por Nata II, correspondentes a empréstimos dados como irrecuperáveis, com um preço muito abaixo do seu real valor de mercado.
‘Ou negoceias isto ou metem-te insolvente’
Segundo o relatório da Autoridade Tributária (AT), a 25 de abril desse ano de 2019 – dia em que se tornou público que o NB punha à venda os créditos do projeto Nata II –, Vieira terá sido informado pelo próprio Vítor Fernandes que a Imosteps estava incluída no pacote, tendo sido até este administrador a arranjar uma solução airosa para ‘aliviar’ o grande devedor do banco, antes que a sua dívida fosse a leilão e ficasse nas mãos de um fundo internacional ‘abutre’ – que, através dos seus advogados, iria fazer de tudo para executar essa dívida. Afinal, uma execução que aquele gestor, que entrara para o banco em 2014, não fizera durante os cinco anos anteriores.
Vítor Fernandes aconselhou o líder benfiquista a arranjar alguém de confiança que fizesse uma proposta para a aquisição da dívida da Imosteps sem que o seu nome aparecesse na transação. Numa das várias escutas da Operação Cartão Vermelho, fica plasmado o alerta do gestor do NB: «Luís, esta brincadeira é assim: ou negoceias isto ou então isto vai para os advogados e vão andar-te a perseguir a vida toda…, e metem-te insolvente».
Foi nesse momento que o empresário José António dos Santos interveio no negócio, usando o fundo Iberis Capital que o tinha como investidor formal. No mês seguinte, em maio, a Iberis Capital enviou uma proposta para a compra da dívida de 54,3 milhões de euros pela irrisória quantia de 9,7 milhões de euros, a qual, apesar de representar um enorme prejuízo para o banco, foi imediatamente aprovada pelo conselho de administração – tendo sido enviada para o FdR poucos dias depois.
Mas este ‘braço armado’ do Banco de Portugal – destinado a gerir a recuperação de entidades financeiras em situação periclitante – não tardou a dar pelo logro, solicitando ao NB informação de quem estava por detrás do fundo.
Foi através de João Castro Simões (do Departamento de Seguimento e Acompanhamento de Empresas, que faz a ponte com os gestores do FdR e é apontado no processo como um dos ‘peões’ de Vieira no NB) que o presidente do Benfica teve a primeira indicação de que o negócio não ia ser fácil. Numa interceção telefónica entre o seu filho, Tiago Vieira, e Diogo Chalbert Santos, ligado ao Fundo Iberis, este contou-lhe que João Castro Simões tinha «tido ‘bocas’ do FdR a duvidar da independência da Iberis, por o investidor se tratar de José António dos Santos e ser um investidor de referência do Benfica, e que o Fundo estava a pedir para provar que eram independentes».
O homem da instituição bancária terá dito ao interlocutor: «Vou ver se uma declaração de independência da Iberis ajuda». A conversa levou os dois interlocutores à gargalhada. Chalbert Santos disse que ia passar a declaração a dizer que a Iberis nada tinha que ver com José António dos Santos, questionando, contudo, entre risos: «Mas como é que se prova o negativo? Até o João Castro Simões me disse que provar negativos é impossível».
Apesar disto, as negociações com o FdR mantiveram-se durante três meses, perante a cumplicidade passiva dos seus gestores, que nunca chegaram a chumbar a proposta. Com o Fundo a arrastar uma tomada de decisão, foi Vieira quem acabou por se fartar. A 4 de julho, depois de Castro Simões ter feito o referido aviso acerca da renitência do FdR em retirar a dívida do pacote, o presidente benfiquista optou por uma segunda solução que, segundo o relatório da AT, terá sido também sugerida por Vítor Fernandes.
Mais uma vez, através de informação privilegiada, Vieira reuniu-se, secretamente, no estádio do Benfica com representantes dos três fundos candidatos à compra dos ativos do Nata 2, com vista à posterior alienação da parte que correspondia à sua dívida, com um lucro de 50%, a um fundo português, o Portugal Restructuring Fund, criado para o efeito através da Iberis Capital e tendo como investidor formal o ‘Rei dos Frangos’.
‘Os gajos estão-se a cagar, o dinheiro não é deles’
A venda do Nata II a Davidson Kemper pelo NB deu-se em setembro de 2019, com a devida autorização do FdR, tendo os ativos da Imosteps (com um valor superior, recorde-se, a 100 milhões de euros) sido avaliados em cerca de… 6,5 milhões. E em agosto do ano seguinte, José António dos Santos, através do Portugal Restructuring Fund, adquiriu esses mesmos ativos ao fundo norte-americano por 9 milhões de euros.
Do ponto de vista dos aliados, o negócio proposto por Vieira ao FdR tinha sido muito mais lucrativo – o que levou João Castro Simões, do NB, a comentar: «Isto é um lesar do erário público. Até apetece ir vender isto ao Correio da Manhã». Conversa que despertou este comentário: «Os gajos estão-se a cagar, o dinheiro não é deles».
É neste ponto que os investigadores consideram consumar-se um crime de burla ao FdR. O MP suspeita, com efeito, que Luís Filipe Vieira se manteve na sombra, mas foi o autêntico beneficiário da operação pela qual José António dos Santos deu a cara, permitindo-lhe recuperar imóveis por menos de um décimo do seu valor. É caso para dizer que, desta vez, a vítima pôs-se mesmo a jeito.
Contactado pelo Nascer do Sol, o MP afirmou que "o Fundo de Resolução não denunciou a situação, porque a desconhecia, uma vez que essa situação foi eventualmente detectada pelo Ministério Público com recurso a instrumentos de investigação que obviamente o Fundo de Resolução não dispõe por força da lei".