André Venda. “Em vez de reclamar, sigo em frente”

Aos 20 anos, teve um acidente de viação e ficou paraplégico, mas não se resignou: criou a Associação Portuguesa de Ciclismo Adaptado e, até 2016, foi atleta de alta competição na modalidade de handcycling. Hoje, quer continuar a ajudar quem vive na mesma realidade que ele. 

Como é que foram as suas infância e adolescência?

Nasci e cresci num meio muito humilde, numa aldeia perto de Porto de Mós que se chama Bezerra. Foi lá que passei a minha infância sempre com muita brincadeira. Tirei o 10.º ano e não mais porque a forma de pensar destas pessoas que vivem no campo é muito vincada no dinheiro, ou seja, queremos ser independentes e ter as nossas coisas. Acabei por crescer com essa linha de pensamento e saí da escola por isso mesmo. Comecei logo a trabalhar no ramo da pedra rústica como empregado e as coisas foram-se desenvolvendo. Entrei no mundo do downhill porque a maioria dos meus colegas já praticava BTT, CrossCountry e tudo o mais. Como gostava de estar com eles, juntei-me. O tempo foi passando, comecei a levar tudo mais a sério, participando em provas nacionais e percebendo que tinha algum potencial. Integrei-me numa equipa e a minha rotina era trabalhar o dia inteiro e fazer os meus treinos à noite. 

Não deve ter sido fácil conciliar tudo.

Na verdade, era muito novo e era uma novidade para mim: portanto, adaptava-me facilmente. Aos 20 anos, tive um acidente de viação: ia de carro, a caminho do trabalho, e um dos pneus rebentou. Fiquei literalmente esmagado e tive um traumatismo cranioencefálico, lesão medular, costelas e maxilares partidos… Fui para o Hospital de Coimbra, onde fui operado de urgência. Fiquei lá em recuperação e posteriormente fui para um centro de reabilitação durante oito meses. Fazia umas horas de fisioterapia e, no resto das horas, praticava desporto adaptado: basquetebol, ténis, voleibol, remo, canoagem, ténis de mesa, handbike… Só que a minha lesão é muito alta e um dos segredos, na maioria das modalidades, é ter agilidade. E eu como não tinha equilíbrio nem nada que se pareça, era difícil ser ágil. Por exemplo, no basquetebol, uma pessoa que tenha uma lesão mais baixa que eu, ou que seja amputada, consegue girar a cadeira de rodas sem tocar nela porque basta impulsionar o corpo. No meu caso, tenho de pôr a bola no colo e fazer força para virar a cadeira. Não me sentia nada confortável e enquadrava-me bem no handbike: por si, a bicicleta tem três rodas, vou quase deitado, tenho faixas que me seguram… E também já conhecia aquele mundo e deixei-me levar. Uma vez, estava a fazer um passeio na handbike e um senhor foi ter comigo e convidou-me para participar numa Taça do Mundo de handbike. Muito sinceramente, nem sequer sabia que existiam provas a este nível. Disse logo que sim, sem sequer saber como tudo acontecia. Estávamos no final de 2008, portanto, nem sequer tinha grande hipótese de fazer pesquisas aprofundadas ou encontrar informação nas redes sociais. O convite foi entregue a mim e a mais quatro colegas com outras patologias: amputados dos membros inferiores ou superiores, uma pessoa com um traumatismo cranioencefálico, um paraplégico como eu… E, pronto, lá fomos nós na aventura! Escusado será dizer que ficámos todos em último lugar. Fazia uma hora de treino e tentei fazer sempre uma hora e meia, duas antes da competição, mas aquilo funcionava por quilometragem. A treinar à minha maneira, fazia 25 quilómetros nesse tempo e faz-se muito mais em alta competição. Fiquei embasbacado com as coisas que vi: pessoas cortadas a meio sem um braço e uma perna do mesmo lado a andarem tanto ou mais quanto um ciclista ‘normal’, pessoas sem braços a trocarem pneus das bicicletas… Foi surreal! Até tenho uma história muito engraçada: quando recebemos o convite, lemos a carta toda de uma ponta à outra e éramos patrocinados pela TAP. E pensei ‘Vamos de avião para uma Taça do Mundo, isto é mesmo a sério!’. Tinha o propósito de representar Portugal. Tínhamos o equipamento todo e havia a informação de que tínhamos de nos encontrar todos em Coimbra para arrancarmos para a prova. Assim foi: chegámos lá, ninguém se conhecia e estávamos todos parados num parque de estacionamento a conversar e nisto chegou um autocarro. E reparámos que era para nós, só que o condutor estava dentro do autocarro e não se mexia. Olhámos bem e vimo-lo a suar e a discutir com alguém ao telefone. De repente, aproximámo-nos e ouvimos: ‘Isto é sempre a mesma coisa, tenho de vir fazer estes serviços! Agora está para aqui uma carrada de entrevados, o autocarro não está adaptado, não tem elevador… Como é que os vou meter cá dentro!?’.

Como é que tudo se processou?

Esta pessoa fumava, suava e gritava. O homem estava um bocado revoltado porque não tinha condições para nos ter lá. É uma logística enorme porque temos de levar as cadeiras de rodas, a bicicleta, material suplente, equipamento… Isto vezes cinco! 

E o senhor que lhes fez o convite não foi à Taça?

Era presidente de uma associação que já não existe. Mas contornámos os obstáculos e dissemos ao senhor: ‘Tenha lá calma, não esteja nervoso!’. O homem saiu do autocarro, gritou: ‘Como é que vão lá para dentro? Tu que estás em cadeira de rodas… Como é que te meto lá dentro? E tu que não tens uma perna… E tu que não tens um braço?’. Tivemos paciência e dissemos que resolvíamos tudo. Havia dois rapazes, cada um com uma perna, os dois faziam um, que me seguraram ao colo e arrumaram tudo da melhor forma! Ele acalmou-se, apesar de ver o aparato todo, e lá fomos nós. Não ia para nenhum aeroporto, mas sim em direção a Viseu e estranhámos. E ele respondeu: ‘Não me digam isso! Está aqui escrito que temos de ir até Segóvia, não estou para andar aqui com erros!’ e nós insistimos que não era normal a nossa patrocinadora ser a TAP e irmos de autocarro. Ele ficou calado o caminho todo: chegámos lá e olhávamos para um lado e víamos pessoas super musculadas, para outro e víamos bicicletas de 15-20 mil euros e as nossas tinham custado 1500!

Como é que foram esses dias?

As coisas aconteceram. Foram muitas emoções porque entrámos naquele mundo completamente diferente. Víamos uma pessoa sem braços a trocar um pneu, outra a pedalar só com uma perna e um braço, outro sem braços… É surreal! Levámos tudo de forma intensa: íamos em último, mas vivíamos cada momento como se estivéssemos em primeiro. Lembro-me de que estava a chover torrencialmente e pensei: ‘Vou acompanhar o rapaz musculado que está aqui porque, se conseguir, devo chegar ao fim’. Eram provas de 80 quilómetros e eu só fazia 25! Deram o disparo de partida, arrancámos, posicionei-me bem e estive com o grupo da frente, mas quando dei por mim eles estavam à frente e eu atrás sozinho! Ia tombando, tive algumas peripécias durante o trajeto… É que aquilo que eu fazia como treino era o aquecimento deles! Corremos todos, cada um na sua categoria, os dias foram passando e, no último, arrumámos tudo e entrámos no autocarro. No decorrer da semana inteira, o motorista almoçava e jantava connosco, estava ao nosso lado, mas nunca dizia nada. À vinda para Portugal, estávamos a falar das aventuras que tínhamos vivido e, quando chegámos à fronteira, um dos meus colegas estava a recordar uma queda em pelotão: próteses e braços pelo ar, um stress total! E o senhor gritou: ‘Calem-se! Tenho de parar, tenho de parar, não aguento mais!’. Parou, virou-se na nossa direção na cadeira giratória e repetiu: ‘Tenho de falar!’ várias vezes. ‘Para já, quero dizer-vos uma merda: nunca gostei tanto de negros como gosto deste gajo’.

Ele era racista?

‘Eu, que andei na Guerra do Ultramar, e que não podia ver negros, nunca gostei de um como gosto deste gajo. E esta semana mexeu comigo! Nunca vi tantos entrevados a correr e a andar tanto de bicicleta. Vocês são uns lutadores do caraças’. A partir dali, nunca mais se calou até chegarmos a Coimbra. Virei-me para um colega meu e disse: ‘Faz todo o sentido implementarmos este tipo de desporto em Portugal porque não existe nada. Devíamos fazer qualquer coisa que promova o ciclismo adaptado’. Cada um tinha a sua vida, trabalhavam e tinham receio de os perder durante a crise de 2009\2014. Mas um deles juntou-se a mim e combinámos que faria uma carta de apresentação assim que chegasse a casa. E traçámos que o primeiro grande objetivo seria participarmos nos Jogos Olímpicos. 

Depois de ter escrito essa carta, que passos deram?

Começámos a bombardear todas as empresas portuguesas: só que, lá está, não recebíamos respostas ou recebíamos e eram negativas. Chegámos ao ponto em que percebemos que não conseguiríamos fazer nada. Liguei ao meu colega e expliquei-lhe que esgotava o limite de e-mails enviados por dia: eram milhares! Decidimos que íamos percorrer Portugal, de Norte a Sul, de bicicleta. Primeiro, contactámos os órgãos de informação e demos a conhecer aquilo que estava a acontecer e que também estávamos cá e queríamos vencer! Partiríamos de Montemor-o-Velho e pararíamos em Faro. Começámos a ver quantos quilómetros conseguiríamos fazer e víamos em que cidade estaríamos em cada dia: ligávamos para os hotéis e pensões e apontávamos logo aqueles que estavam dispostos a ajudar-nos. Em dois ou três dias, criámos o projeto, ficou todo validado, conseguimos um carro de apoio por parte da Renault, uma pessoa para nos acompanhar… E assim foi: tirámos um dia só para entrevistas e, no seguinte, iniciámos a viagem. 

Sentiu-se sempre motivado ou teve momentos de desalento?

Na altura, nem sequer sabia se seria capaz de fazer 150 quilómetros por dia… Em último caso, entraria no carro e continuaria! Aquilo que realmente importava era transmitir a mensagem. Os primeiros dias foram incríveis porque correu tudo muito bem, não atrapalhámos o trânsito e, no terceiro, as notícias começaram a sair. E foi aí que sentimos que toda a gente sabia aquilo que estávamos a fazer: na rua, as pessoas gritavam ou apitavam, recebíamos contactos, tudo começou a acontecer. Chegámos ao Algarve e falámos com a Vodafone, a Federação Portuguesa de Ciclismo, algumas equipas de ciclismo profissional, etc. Nessa altura, recebi uma proposta de trabalho para ir para a Decathlon e o meu colega para se juntar a uma das equipas que tinha ganho a Volta a Portugal naquele ano. Tudo se desenrolou e realmente tínhamos empresas a quererem patrocinar-nos. A questão é que eram valores altos e tínhamos de passar faturas.

Foi aí que criaram a APCA – Associação Portuguesa de Ciclismo Adaptado?

Sim, percebemos que tínhamos de fundar uma associação porque estávamos a pedir valores elevados. No primeiro ano, queríamos angariar o montante necessário para abranger toda a nossa época desportiva, depois, nos anos seguintes, tentaríamos desmistificar esta prática desportiva ao máximo e criar um departamento destinado ao apoio a atletas de alta competição. Éramos só nós os dois, não existia nada, e queríamos que a Federação Portuguesa de Ciclismo olhasse para nós com outros olhos: não só dos ‘coitadinhos’ ou ‘olha os dois entrevados que querem andar de bicicleta’. Começámos a fazer pressão e chegámos ao ponto de inventar histórias para que prestassem atenção.

Como assim?

Recebemos um convite, por parte de uma associação da Lousã, para participarmos numa feira e divulgarmos o nosso desporto. Nesse evento, estava o presidente da Federação e lembro-me de que estava a conversar com outro senhor e, atrás de mim estava o presidente e o meu colega. E ele disse-lhe assim: ‘Está a ver este rapaz aqui? Já se tentou suicidar duas vezes! Parte de vocês, Federação, tirá-los de casa para que comecem a fazer alguma coisa senão matam-se todos!’. Até hoje, o homem deve achar que me salvou. A partir daí, começámos a receber chamadas dele e dizia que estava a pensar abrir um departamento, divulgar tudo e ver se mais pessoas praticavam ciclismo adaptado. E, assim que conseguíssemos mais atletas, faria sentido criar provas. Nós estávamos abertos a qualquer coisa e começámos a ser vistos de outro modo. Abriram o departamento, mas éramos muito poucos e não havia a possibilidade de assumir uma prova só para nós. Fomos sempre fazendo o nosso trabalho e com e, com o passar do tempo, recebemos mais e mais pedidos de pessoas que queriam juntar-se a nós. Agora, somos mais de 100. Nos moldes de alta competição, são muito poucos porque temos de nos dedicar a isto a cem por cento para ver resultados. Em cada categoria, devem ser, no máximo, dez atletas. Mas, tendo em conta que Portugal é um ‘quintalzinho’, penso que não estamos mal. E este número tem tendência a aumentar: não pelas patologias que vêm aí, mas sim pelas pessoas que já têm patologias e, com a Internet, têm acesso à informação. Percebem que podem fazer qualquer coisa que queiram! Hoje em dia, já temos um grande calendário nacional com mais de dez provas nacionais.

No seu site oficial, explica que ‘como resultado do enorme esforço e dedicação ao desporto profissional no decorrer destes anos’, sofreu ‘um considerável desgaste físico e como tal’ foi ‘aconselhado em 2016, por uma equipa médica, a dar por terminada a prática desportiva nos moldes definidos pela Alta Competição’.

Exatamente. Já estava num nível muito elevado e, para mantê-lo, tinha de treinar, no mínimo, oito horas por dia. Portanto, eram quatro de ciclismo, duas, três ou quatro de ginásio. Isto dependia muito dos dias. De tanto treinar, cheguei ao ponto de criar uma ferida no cóccix por estar sempre na mesma posição. Como não sinto o corpo, não me apercebi desse desgaste. Assim que soube, falei com um médico da Federação e ele disse que, apesar de cicatrizar rápido, eu iria querer voltar ao nível em que estava e andaríamos sempre nisto. Ou seja, era melhor parar. Como só tinha o 10.º ano e alguns cursos em atraso, pensei que se deixava a alta competição teria de me dedicar a outras coisas. Tirei uma data de cursos de design gráfico, criatividade, empreendedorismo, marketing digital… Tenho vários certificados. Passava muito tempo em Espanha, Itália, França, Alemanha, etc. a treinar com os grandes e, por isso, acabei por criar pequenas famílias, digamos assim. E falávamos dos projetos que tínhamos. 

E houve algum que o fascinasse particularmente?

Havia um rapaz da Polónia que me disse que ia deixar a alta competição e ia abrir uma empresa de bicicletas todo o terreno adaptadas a todo o tipo de patologias. E eu disse-lhe para me avisar assim que começasse a produzi-las porque era como voltar às origens: eu, que já praticava downhill e BTT, tinha esta possibilidade! Num dia, recebi uma mensagem dele a informar-me de que já estava a vender bicicletas e que podia encomendar a minha quando quisesse. Fiz uma carta de apresentação e enviei-a a algumas empresas. Como tinha de fazer o caderno de encargos todos os anos, acabei por criar uma grande rede de contactos e quando quis adquirir este projeto, a maioria das empresas já me conhecia. Em dois meses, consegui 10 mil euros e comprei a handbike. Tive de fazer, novamente, o trabalho de divulgação – de forma mais assertiva e rápida – e criei uma tour. Sabia quais eram os trilhos que se podiam adaptar à bicicleta e, para além de os tornar mais acessíveis, queria criar um pack completo para que as pessoas conhecessem a parte mais cultural dos municípios, mas também a restauração e a hotelaria, perceber os seus pontos fortes e, basicamente, fiz uma espécie de pacote da ‘Odisseias’ [risos].

Efetivamente, parece um pacote que oferece experiências do mesmo estilo mas adaptadas.

Por exemplo, alguém quer ir a Viana do Castelo: vai ao meu site, acede ao mapa de Portugal, seleciona o local onde quer ir e percebe que x hotel foi selecionado por mim e tem todos os requisitos necessários. ‘Ok, já sei onde vou dormir, onde posso ir?’ e entendem que podem ir aqui e acolá, que ao nível de autocarros há um que passa de x em x horas e é adaptado, um táxi, o que for, a nível desportivo pode praticar, imaginemos, downhill adaptado e vê qual é o melhor restaurante que a pode receber. Já fiz algumas coisas e, ainda no início deste ano, quero tentar finalizar este projeto. A primeira parte já foi aprovada e há outros passos: estou a tentar criar ativos que me deem alguma receita mensalmente. Tenho uma handbike e estou a adaptá-la para depois incluí-la. Por exemplo, alguém quer passar um fim de semana num hotel e este tem a bicicleta que pode ser alugada. Como sou muito criativo, tento fazer com que as minhas capacidades me tragam alguma receita. Vejo quais são as maiores falhas do mercado naquilo que diz respeito a estas patologias, crio projetos e vendo-os às empresas que me parecem fazer sentido. Em vez de andar a reclamar – sou muito assim, de fazer e não de falar -, sigo em frente. Isto foi graças a uma história que aconteceu comigo.

O que aconteceu?

Durante os primeiros anos em que estive de cadeira de rodas, comecei a reclamar por escrito. De tanto alimentar aquelas reclamações, dava a entender que era um frustrado que não tinha aceitado aquilo que me tinha acontecido. Houve uma vez em que tinha ido a tribunal, porque o acidente que tive foi de trabalho, estava com a minha namorada e fomos a um café. Fiz sinal à empregada para me ajudar a subir o degrau, mas ela não ligou. A minha namorada ajudou-me e, quando entrei, pedi o livro de reclamações. E assim que disse isto, a senhora estava quase a chorar e criou-se uma energia tão negativa e estranha… Saí de lá e pensei: ‘A partir de hoje, vou começar a dar dicas para melhorar o meio que me envolve. E só vou aos sítios que estão preparados e me querem lá’. E quis dar soluções que funcionassem a longo prazo e fossem de baixo custo ou a custo zero. 

Notou uma espécie de ‘mudança de paradigma’ quando alterou o seu comportamento?

Fiz mais de 20 reclamações e nenhuma surtiu efeito. Depois de ter adotado esta postura, acho que tudo melhora num local em cada dez, mais ou menos. Já mudei muitas coisas. As pessoas têm de perceber algo: somos mais de um milhão de pessoas com algum tipo de patologia em Portugal. Temos 308 municípios: garantidamente, há uma pessoa com algum tipo de patologia que é a ‘mascote’ desse município. Se só uma pessoa de cada município fizer alguma coisa – mas isto começa em casa, com a atualização da mentalidade daqueles que nos rodeiam – e não perder tempo a escrever papéis, o futuro será bem mais risonho. O meio que nos envolve é construído pelo Homem. Portanto, não faz sentido que ele próprio não o consiga usar! Em pouco tempo, cria-se um projeto que se apresenta a uma junta de freguesia. O problema é que nem toda a gente mantém o mesmo nível de dizer e fazer. Eu tenho vários projetos em andamento e, como já mexo com valores elevados, vou ter de abrir uma empresa para levar isto de forma mais séria e ter tudo limpo e transparente. Este ano, espero conseguir comprar uma casa e, depois, abrir uma empresa para vender ideias ou os projetos finais. Também estou a contribuir para que sejam criadas montras com história: alugo manequins em cadeira de rodas com o meu equipamento de downhill e, em Lisboa, tenho uma tela com montagens, a bicicleta em exposição também e um ecrã a passar vídeos numa loja. Este ano, vou associar uma box a estas montras: existirá um voucher e as pessoas poderão passar um fim de semana comigo, na Madeira, com tudo pago. Vai ter uma data de brindes que acho que fazem sentido e estará em leilão. No final do ano, quem tiver dado mais, receberá todas estas regalias. 

Regressando à ideia do pacote da ‘Odisseias’, será que este voucher não poderia ser transformado em algo semelhante?

Tenho de sentir que existem as condições ideais para se dar um momento único. Nesta viagem que ofereço, por exemplo, não pagarei nada e isto mexe com vários contactos: hotelaria, restauração, desporto, etc. Tudo isto vem de um projeto que fiz em 2009 para a ‘Vida é Bela’. Na altura, foi a empresa deste género que lucrou mais a nível nacional. Queria criar uma box com todos os desportos adaptados, os hotéis mais apetecidos, locais mais acessíveis, etc. Isto estava confirmado, mas houve um escândalo enorme por parte da mesma e então acabei por deixar esta hipótese para trás. Agora, faço auditorias a hotéis, municípios, etc. e, quando me sentir confortável, faço um pacote à minha escala: com o mapa, talvez uma aplicação, uma equipa por cada município que vai ajudar os clientes… A ideia é que exista uma ligação entre quem passa pelo mesmo como eu. E também quero motivar aqueles que não encararam as patologias como eu: as pessoas só conseguem sair deste tipo de pensamento se as tirarmos dos locais onde estão. Se for a casa delas falar durante uma hora, aquilo que digo pode surtir efeito naquele momento, mas saio de lá e voltam à ‘bolha’ em que estão. 

As pessoas mais velhas adaptam-se menos rápido do que as mais novas?

Sim, sem dúvida. Têm a formação que a vida lhes foi dando e os jovens têm muitas mais ferramentas: em dois minutos, sabemos aquilo que acontece no mundo. E, no meu caso em específico, esta facilidade das tecnologias permite que saiba que há pequenas coisas que mudam brutalmente a nossa qualidade de vida.

Pode dar exemplos?

Antes de ter o acidente, não imaginava as dificuldades que as pessoas como eu têm para fazer coisas aparentemente simples como abastecer um carro com combustível. Já cheguei a ser insultado por pedir ajuda em bombas de gasolina, porque as pessoas veem-me dentro do carro e acham que me estou a aproveitar da boa vontade dos empregados, e dormi em postos espanhóis porque fecham durante a noite e tinha de esperar que amanhecesse. Tive o acidente num tempo de mudança: desde 2006, é obrigatório que todos os estabelecimentos estejam preparados para receber pessoas com deficiência e tudo foi mudando um bocadinho. Uma cadeira normal custava por volta dos 5 mil euros e só foram disponibilizadas pela Segurança Social, seguradoras, etc. por volta desse mesmo ano. Antes, usávamos cadeiras baratas, com medidas estanques, de hospital. Estas são leves, não abanam, podemos atualizá-las de x em x tempo e as pessoas olham de forma diferente para nós: se nos virem numa cadeira como aquela que tenho, pensam ‘Aquele rapaz é ágil, é desportivo’, mas se me virem numa cadeira de hospital… ‘Coitado do rapaz, vejam bem aquilo’. E são estes detalhes que nos trazem conforto. E é por isto que entendo a mentalidade de quem é mais velho: quando ponderavam sair de casa, sabiam que iam passar por x degraus, não sei quantos buracos, a cadeira ia ficar presa em y sítio, ia haver stress… 

Havia demasiados obstáculos.

Mas hoje em dia não. Há uns tempos, tive uma discussão com uma empresa que me queria disponibilizar um exoesqueleto para me pôr a andar. Vendiam-me aquilo como se fosse espetacular. E eu disse: ‘Não vejo vantagem nenhuma nisso. Aquilo que vejo é a questão de estar em pé’. Pediam-me 60 ou 70 mil euros e eu conseguia fazer o mesmo com duas ortóteses de 200 euros. Que qualidade de vida é que o exoesqueleto me dava? ‘Demora quanto tempo a fazer 10 metros?’, perguntei. E a pessoa respondeu: ‘Não sei, uns 30 segundos’. E eu expliquei que os faço em três/quatro segundos de cadeira de rodas! 

Recuando até às dificuldades que viveu e à diferença entre quem fica paraplégico com uma idade superior ou igual ou inferior à sua, alguma vez teve ideação suicida?

Muito sinceramente, não. Fiquei igual. Quando tive o acidente, já era conhecido em Porto de Mós e comecei a receber visitas a toda a hora. Cheguei a ter 30 e 40 pessoas juntas. Era um corrupio enorme no hospital! Não tinha tempo para parar para pensar. Nem os braços mexia: estava deitado. A forma como soube a notícia foi engraçada: a minha higiene era feita comigo deitado. E houve uma vez que um enfermeiro me estava a dar banho e disse: ‘Isto é normal’ e eu ‘O quê?’ e ele: ‘Então, vais ter ereções sem saberes’. E eu: ‘Como assim?’. E ele respondeu: ‘Então, mas tu não sabes que estás paraplégico? Nunca mais vais andar, agora vais estar numa cadeira de rodas’, e eu tinha o corpo todo dormente. Achava que sentia isso devido ao impacto do acidente e que ia passar. Ele saiu e caiu-lhe a ficha, percebeu que não me devia ter contado nada. Foi a correr ter com a médica e disse-lhe que achava que eu já sabia aquilo que me tinha acontecido. Ela foi ter comigo, estivemos à conversa e eu, como era muito novo… Aconteciam tantas coisas que nem sequer entrei em pensamentos negativos. Entrei logo no centro de reabilitação e estava num mundo onde todos éramos iguais: cada um tinha a sua patologia e levávamos tudo de forma descontraída. Para além disso, apaixonei-me pela minha fisioterapeuta.

Alguma vez pensou que tal pudesse acontecer?

Não, até porque se criou um enorme debate à volta do tema: abordou-se a sexualidade na deficiência e a existência de relacionamentos entre utentes e profissionais de saúde. Ela era estagiária e ficou com o meu processo: acabámos por estar uns oito anos juntos!

Foram muito criticados?

É um centro muito controlado e não era suposto haver ligações especiais, digamos assim. Quebrámos isso e ouvimos bocas e coisas pouco agradáveis. A questão é que estava tão apaixonado que nem sequer prestava atenção! Tanto eu como ela sabíamos que tudo era temporário porque íamos sair dali: eu ia ter alta e ela ia terminar o estágio. Demos entrevistas na altura.

Mas não estão disponíveis online

Pois. É que esta forma de pensar, por parte das pessoas, é culpa dos órgãos de informação. Todos os dias, nos canais televisivos, há alguma pessoa com algum tipo de patologia a ser entrevistada, ouve-se uma música triste e tentam puxar a lágrima ao máximo. Isto é péssimo! Percebo que é uma questão de marketing, mas têm de entender que não faz sentido. O que é que vende mais hoje em dia? Histórias de superação ou a vitimização? É que perdem audiência todos os dias! 

O que poderia alterar este panorama?

Tenho varias ideias e algumas delas já as apresentei a vários canais televisivos e todos eles dizem que sim mas têm sempre medo em avançar. Íamos atualizar mentalidades a todos os níveis.