Após um fim de semana com a NATO em alerta, entre sucessivos avisos de uma iminente invasão russa da Ucrânia, o Kremlin anunciou a retirada de parte das suas mais de 130 mil tropas na fronteira, esta terça-feira, naquilo que, à primeira vista, parece ser a abertura de uma via diplomática para evitar um conflito. Para muitos dos que temem uma guerra na Europa com uma escala sem comparação desde a II Guerra Mundial, foi um momento para respirar de alívio. Outros estão menos otimistas.
“Não acreditamos quando o ouvimos, vamos acreditar quando o virmos”, resumiu o ministro dos Negócios Estrangeiros ucranianos, Dmytro Kuleba, cujo ceticismo é partilhado pela NATO. O Kremlin, de resto, fez questão de frisar que os seus grandes exercícios militares – cercando a Ucrânia a partir da Crimeia, do leste e da Bielorrússia, muito próximo de Kiev – continuarão a decorrer.
Aliás, Boris Johnson – que se tem afirmado como representante da linha dura quanto à Rússia dentro da NATO, numa altura em que enfrenta uma acentuada quebra de popularidade – fez questão de declarar ter grandes dúvidas face ao anúncio de uma retirada parcial russa.
A informação recolhida pelos serviços de informações britânicos mostra que estão a ser construídos hospitais de campanha na Bielorrússia, perto da fronteira, o que só pode ser “interpretado com a preparação para uma invasão”, disse o primeiro-ministro britânico. Ainda assim, admitiu que “há claramente sinais de uma abertura diplomática”.
“Anúncio pode ser tático” O certo é que, “caso se venha a confirmar que há uma retirada visível das tropas russas – porque hoje em dia, com os meios de vigilância que existem, como satélites, é fácil acompanhar esse género de coisas – seria significativo”, considera Bruno Cardoso Reis, subdiretor do Centro de Estudos Internacionais do Instituto Universitário de Lisboa (CEI-IUL), à conversa com o i. “Ou pode ser mais uma manobra de diversão”, ressalva.
A verdade é que “Vladimir Putin não disse quantas unidades estavam a ser retiradas, nem até onde seria feito o recuo”, acrescentou ao i Patrícia Daehnhardt, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA). “Daí que este anúncio pode ser tático e sugerir que aconteceu na sequência da visita do chanceler Olaf Scholz a Moscovo”, salientou.
De facto, durante a visita de Scholz – cujo Executivo há uns levantou a hipótese de bloquear o Nord Stream 2, um gasoduto entre a Rússia e a Alemanha, através do Báltico – a Moscovo, esta terça-feira, Putin mostrou-se particularmente ansioso por evitar um conflito.
“Nós não queremos guerra na Europa”, reforçou o Presidente russo, numa conferência de imprensa conjunta. E recordou que a Alemanha “é um dos mais importantes parceiros da Rússia”, o segundo maior parceiro comercial, ultrapassada apenas pela China.
Putin até respondeu às acusações lançadas pelos críticos do Nord Stream 2, visto como uma forma de cortar à Ucrânia uma das suas grandes fontes de rendimento, o gás natural russo que passa pelo seu território. “Quero deixar bem claro que estamos dispostos a continuar a enviar gás através da Ucrânia para lá de 2024”, prometeu.
“Pode ser que o Presidente Putin tenha percebido que há aqui um custo suficientemente elevado, em termos económicos, e até de algum risco militar, com o novo armamento na Ucrânia, para declarar vitória e iniciar um processo de diminuição da escalada de tensões”, considera Cardoso Reis. Parte desse cantar vitória, salvando a face de Putin, pode passar pela recente proposta no Parlamento russo, ou Duma, para que o Kremlin reconheça a independência das repúblicas de
Donetsk e Luhansk, proclamada pelos separatistas russos do leste da Ucrânia, uma região conhecida por Donbass. O que não deixaria de criar tensões, dado que “invalidaria em grande medida o processo de Minsk, que estipulou que as regiões continuariam a fazer parte da Ucrânia, embora com estatuto especial”, diz Daehnhardt.
Putin pode não ter ainda tomado decisão Contudo, importa lembrar que, durante a visita de Scholz a Kiev, no dia antes deste seguir para Moscovo, o Presidente Volodymyr Zelensky prometeu recuperar parte do acordo de Minsk – assinado em 2014, pouco após as forças ucranianas serem desbaratadas pelos “pequenos homens verdes”, tropas russas infiltradas junto dos separatistas, considerado muito desfavorável à Ucrânia – no que toca a eleições locais e à autonomia de Donbass. “Isto pode ser visto como um passo em direção a Moscovo”, nota a investigadora do IPRI.
“Há aqui de facto alguns sinais. E acho que isso está ligado aos sinais ocidentais, e sobretudo da Ucrânia, que é o ator principal, no sentido de dizer que pode ter alguma flexibilidade na questão da adesão à NATO”, aponta o investigador do CEI. “E para dizer pública e repetidamente aquilo que já se sabe. Que não está para breve uma adesão da Ucrânia à NATO, não será possível a curto prazo”, avalia.
O certo é que provavelmente tão cedo não haverá uma solução para a crise na Ucrânia. “Claro que é frustrante. Eu percebo que as pessoas querem despachar isto, querem respostas claras”, lamenta Cardoso Reis.
“Ninguém pode dizer, com rigor e honestidade, é que vai acontecer, pelo menos do lado russo. Porque isso, em última análise, depende do Presidente Putin”, explica o investigador. “Nem me sinto seguro que o próprio Putin tenha tomado já uma decisão. No fundo, acho que isto foi um pouco testar as águas”.