É oficial: garrafas de álcool não vão ter rótulos alarmistas

Está resolvido o assunto: afinal, não é desta que os rótulos das bebidas alcoólicas vão passar a incluir um aviso sobre eventuais riscos de cancro. Os produtores estão satisfeitos, mas na dúvida ficam os patrocínios de eventos desportivos, que poderão ser restritos. 

Por Daniela Soares Ferreira e José Miguel Pires

Propôs-se, discutiu-se, alterou-se e votou-se. O Parlamento Europeu aprovou – com 652 votos a favor, 15 contra e 27 abstenções – o pacote de propostas desenhado pela Comissão Especial para a Luta contra o Cancro, depois de um ‘ajuste’ das miras, que deixou para trás a medida mais polémica: a inclusão nos rótulos das garrafas de bebidas alcoólicas de avisos – ao estilo dos maços de tabaco – sobre a possibilidade de o consumo de álcool causar cancro.

Uma proposta inicial que pouco agradou aos produtores de bebidas alcoólicas, mas que, ao i, a eurodeputada socialista Sara Cerdas defendeu, até porque “não há uma dose segura de ingestão de álcool e este consumo, independentemente da dose, é prejudicial para a saúde”. Argumentos fortes de Sara Cerdas que, após ver aprovado o relatório, defendeu que se tratou de uma expressão da “necessidade de envidar mais esforços para prevenir e tratar” o cancro.

Cerdas deixou a polémica em torno dos rótulos das garrafas fora das suas reações, preferindo argumentar que “o relatório aprovado é ambicioso e progressista, em especial ao nível da prevenção, e espelha a necessidade de reformular a abordagem em cada uma das principais fases da doença”.

“Com um foco essencial na literacia em saúde da população, pretende-se capacitar os cidadãos a tomarem decisões mais saudáveis relativamente aos seus estilos de vida”, conclui ainda, em declarações ao i.

A proposta foi debatida e ‘ajustada’ no plenário europeu, passando a focar-se especificamente sobre os perigos do consumo nocivo e excessivo de bebidas alcoólicas, e menos sobre o consumo em si, independentemente da dose. Na vez dos avisos ‘alarmistas’, os rótulos das garrafas de bebidas alcoólicas poderão passar, ainda assim, a incluir um apelo à moderação no consumo.

Uma mudança que muito agradou a Frederico Falcão, presidente da ViniPortugal, que não poupou nas críticas ao grupo parlamentar que desenhou a proposta: “Estranho é que houvesse alguns eurodeputados portugueses, até uma eurodeputada, que estivesse a favor daquele relatório. Não faz muito sentido, não percebo como é que aquela eurodeputada tem aquela posição que nem sequer – tanto quanto sei – é a posição do grupo parlamentar da senhora eurodeputada nem há evidências nenhumas científicas que justificassem a posição dela”, diz ao i.

“O texto foi contextualizado e foi positivo para nós na medida em que fez jus àquilo que é o conhecimento científico atual, ou seja, o relatório ataca – e bem – o consumo nocivo do álcool e não o consumo em si, que é, aliás, a posição que o setor dos vinhos sempre vem defendendo há muito tempo”, começa por explicar, realçando que “o relatório substituiu os temas de consumo de álcool para consumo nocivo de álcool”. 

“O consumo moderado, aliado a um estilo de vida saudável, com dieta mediterrânica, até combate muitos outros problemas. Portanto, no relatório – e bem – foram aprovadas algumas emendas e isso correu bem”, continua, considerando que a queda da proposta sobre os rótulos ‘tipo os do tabaco’ foi uma decisão “feliz”. “Aquilo que está em termos de texto – e bem – e que nós já vimos a defender há muito tempo é que na rotulagem deve apelar-se a um consumo moderado e responsável das bebidas alcoólicas”, conclui.

Em causa chegaram a estar os apoios da União Europeia aos produtores de vinho, e essa tema não sai ainda da mente de Frederico Falcão, que diz esperar que “isso agora não se coloque em causa”. “O que acontece agora? Nós temos para promoção em mercados de países terceiros, para alguma campanha de informação dentro da Europa, temos apoios comunitários que não são muito grandes mas ajudam muito naquilo que é a nossa promoção dos vinhos fora da Europa e informação dentro da Europa. O relatório, se fosse aprovado como estava, obviamente que iria pôr em causa qualquer tipo de apoio à promoção de bebidas alcoólicas. Se se considerasse que um copo de vinho era veneno, não faria sentido andar a publicitá-lo. O risco seria esse. Creio que o risco que estava associado a perda de todos os apoios a este setor ficou posto de lado com estas emendas”, defende.

Quem também se mostrou satisfeita com as alterações feitas ao texto foi a diretora executiva da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal (ACIBEV). Em comunicado, Ana Isabel Alves começa por argumentar que “o conceito de que não há nível seguro de bebidas alcoólicas é enganador e simplista”, até porque não tem em conta “os padrões de consumo, o estilo de vida das pessoas e até os seus antecedentes familiares”.

Como tal, e tomando em conta que o cancro é uma doença “multifatorial”, “não se pode dizer que há uma relação direta entre o consumo de vinho, de forma moderada, e o aparecimento de vários tipos de cancro”, defende a mesma, argumentando até que “a evidência científica indica que beber vinho com moderação, à refeição, no âmbito da dieta mediterrânea associado com exercício físico e um estilo de vida saudável, contribui para o aumento da expectativa de vida e bem estar geral, com a diminuição de uma série de doenças como por exemplo diabetes ou doenças coronárias”.

Ana Isabel Alves aplaude o trabalho dos eurodeputados, apelando à Comissão Europeia para que trabalhe “em medidas legislativas focadas no consumo abusivo do álcool, que não ponham em causa a nossa cultura, as nossas comunidades, os nossos territórios e que respeitem a nossa tradição gastronómica de que o vinho faz parte”.

Mas não só Alves e Falcão ficaram satisfeitos com a decisão do Parlamento Europeu. A Fenadegas – Adegas Cooperativas de Portugal – tal como o restante setor também defende um consumo moderado de vinho. Isto porque, diz, a versão inicial “de indiscutível ambição e valor, continha propostas muito penalizadoras para o setor do vinho, especialmente por serem generalistas e não enquadrarem devidamente o consumo de vinho na perspetiva de um bem, parte integrante de uma correta dieta alimentar”. E lembra que, a partir de agora, no que diz respeito à rotulagem, “existirão informações sobre consumo moderado e responsável de álcool, sendo que toda a informação relativa a ingredientes e valor nutricional estará disponível off label”.

Defendendo o reforço de iniciativas como o Wine in Moderation, a Fenadegas diz que “o caminho é o combate ao consumo excessivo/nocivo, a ser conseguido através da educação e conscientização”, congratulando-se com a decisão do Parlamento Europeu. 

Patrocínios em risco Uma das medidas propostas neste relatório prende-se com a proibição de patrocínios por parte de marcas de bebidas alcoólicas a eventos desportivos onde possam estar presentes, maioritariamente, menores. Se é certo que o texto foi alterado para incluir só este tipo de eventos (maioritariamente com audiência de menores), esta é ainda assim uma proposta causadora de dores de cabeça. 

Para Daniel Sá, diretor executivo do IPAM e especialista em marketing desportivo, as restrições nos patrocínios de competições desportivas poderão ter “um efeito muito negativo. já que esta indústria é um dos maiores patrocinadores do desporto”, podendo significar “perda de visibilidade para as marcas e perda de receitas para os clubes e seleções”. Sobre eventuais ‘contornos’ que os clubes e as seleções nacionais teriam de encontrar para manter estes patrocínios, Sá augura que os mesmos encontrariam “formas criativas de parcerias que não o patrocínio convencional”, tentando “encontrar novas indústrias que queiram apostar no desporto, como apostas, bitcoins e todos os novos negócios que estão a surgir”.