Enfermeiros e médicos pedem que violência contra profissionais de saúde seja considerada crime público

“Extremamente chocante”, descreve ao i Pedro Costa, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, que ontem defendeu que a violência contra profissionais seja considerada crime público, um apelo ao Governo já feito no passado. As agressões no Hospital de Famalicão deixaram um enfermeiro com a cara rebentada, a cabeça partida e um rasto de sangue.

“Durante 45 minutos, o serviço de urgência do Hospital de Famalicao foi tomado por 15 pessoas que fizeram o que entenderam. Isto põe em causa a liberdade de todas as pessoas”. O resumo é de Pedro Costa, presidente do Sindicato dos Enfermeiros, que ontem apelou a que a violência contra profissionais de saúde seja considerada crime público, um repto repetido ao Governo nos últimos anos, a cada caso violento de agressão que vem a público, por médicos e enfermeiros e que em 2020 já tinha sido objeto de uma petição lançada na altura por um grupo de médicos para que fosse tipificado este crime específico.

Uma pressão que aumenta depois da brutal agressão no Hospital de Famalicão na madrugada de terça-feira, a mais violenta de que há registo no Serviço Nacional de Saúde. Pedro Costa descreve como “extremamente chocantes” as imagens que mostram o estado em que ficou o colega espancando por uma família de etnia cigana, por ter sido recusado atendimento imediato na urgência sem ser preenchida a ficha de inscrição, relata. Agrediram o segurança no local, a PSP demorou 45 minutos a chegar, atacaram os enfermeiros no local e fugiram. Um dos enfermeiros, atacado com uma barra ferro usada para suporte de soro, ficou com a cara ensanguentada, a cabeça partida e um rasto de sangue, pontapeado repetidamente no corpo e na cabeça. “Podia ter morrido”, relatou na terça-feira a bastonária dos Enfermeiros Ana Rita Cavaco, considerando “urgente que isto seja crime público como a violência doméstica e a alteração das penas.”

Pedro Costa, do Sindicato dos Enfermeiros, que ontem se juntou neste apelo e cujo um dos membros da direção lançou uma petição para que seja reconhecido o estatuto de profissão de risco aos enfermeiros – que em menos de 24 horas reunia ontem mais de 15 mil assinaturas – lamenta que a polícia tenha demorado quase uma hora a chegar ao local e defende que este caso mostra o “desinvestimento nos serviços de saúde pública também em matéria de segurança”. Admitindo que “quem trabalha nos hospitais” conhece o sentimento de “impunidade” mostrado por “algumas “minorias, que leva os profissionais a terem “mais cuidado”, defende que um caso de violência gratuita tem de ter uma resposta célere, independentemente de quem o pratica. “Independentemente de serem ciganos, serem estrangeiros, portugueses ou outra coisa qualquer, é um cidadão que está ali. E um cidadão que responde com violência gratuita tem de ser sancionado”, vinca, salientando que exista ou não um sentimento de maior impunidade, o problema reside no facto de as instituições não terem medidas que permitem que alguém ache que entrar num serviço a bater e gritar pode ser “normal”. “Não é e é uma bola de neve. Se as pessoas não forem sancionadas, e passado um dia não há notícia de os autores terem sido identificados, qualquer dia alguém chega a outro hospital e pensa que se em Famalicão fizeram e nada aconteceu podem fazer o mesmo.”

Até à hora de fecho desta edição, a PSP não esclareceu se já tinham sido identificado os autores das agressões e a PGR não indicou também se foi já aberto um inquérito, que num caso de ofensa à integridade tornado público, como foi este, pode não depender de queixa, o que acontece na maioria das agressões, ofensas e ameaças no contexto da violência em saúde. No código penal, a ofensa à integridade quando cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas.

A ministra da Saúde repudiou as agressões, um “ato inqualificável”, disse Marta Temido, assegurando que as vítimas estão a receber apoio por parte do hospital e que a situação está a ser acompanhada pelo Ministério. “Há uma dimensão evidentemente de prevenção que é essencial e há uma dimensão de apoio às vítimas destas situações e de melhoria das condições infraestruturais e de policiamento quando são identificadas falhas”, salientou Marta Temido.

Depois dos primeiros trabalhos em 2019 (quando surgiram ideias como botões de pânico, por implementar na maioria dos serviços) e já em 2020, quando foi nomeado um coordenador de segurança para o Ministério da Saúde, o novo Plano de Ação para a Prevenção da Violência no Setor da Saúde entrou em vigor dia 6 de janeiro. Mas o Governo não esclareceu se pretende avançar com alguma proposta legislativa para tipificar este tipo de violência como crime público.

Em 2020, a criminalidade em “ambiente de saúde”, a par da criminalidade em ambiente escolar, foi incluída na lista de crimes de investigação prioritária para o biénio 2020-2022, mas não existe também um balanço do impacto desta mudança. O que sabe é que os casos reportados à Direção Geral de Saúde, que tem um programa de notificação de casos violência contra profissionais de saúde desde 2007, diminuíram em 2020 depois de um recorde em 2019, mas voltaram a subir em 2021, com 752 casos reportados até outubro, o último ponto de situação feito pela DGS, a maioria situações de violência contra enfermeiros, com maior peso de ameaças e injúrias.

“É preciso ir à origem” E os sindicatos receiam que a conflitualidade continue a aumentar, à medida que os serviços de saúde retomam a afluência normal, dizendo não ver mudanças estruturais, a análise que tem sido feita também pelas ordens dos médicos e dos enfermeiros. “Quando surgem casos extremos, fala-se durante algum tempo e fizeram-se algumas coisas há dois anos, mas os resultados práticos ficam por apurar. Não notamos no terreno que tenha havido uma mudança de fundo. Os profissionais não se sentem mais seguros”, diz ao i Noel Carrilho, presidente da Federação Nacional dos Médicos (FNAM), que concordando que a violência fosse tipificada como crime público e defendendo o estatuto de risco também para médicos, parte do caderno reivindicativo do sindicato junto da tutela, defende que é preciso ir à origem do problema e que a punição, sendo importante, não chega. “Aí o mal já está feito”.

“Precisamos de formação dos profissionais, segurança nas instituições, acompanhamento das vítimas e de perceber que a falta de capacidade no SNS para dar resposta atempada às pessoas, não desculpabilizando a violência, cria condições que facilitam estas situações”, diz, apontando a falta de recursos humanos e a falta de explicações aos utentes como motivos que podem propiciar a conflitualidade, um “fenómeno diário” no SNS na forma diária de injúrias e ameaças, quando não acontecem casos mais violentos.

“Temos visto isso com o volume excessivo de trabalho dos médicos de família, sem que tenha sido devidamente explicado aos utentes que não puderam vê-los nestes dois anos porque lhes foram dadas outra tarefas. Há uma perceção injusta do trabalho dos médicos. Ser crime público seria importante mas é só uma faceta, é preciso ir à origem”.

Do lado dos enfermeiros, Pedro Costa fala de um sentimento de impotência, a que acresce a sensação de que a justiça num caso como o de Famalicão pode levar anos. “Não queremos ser justiceiros, mas é preciso procedimentos mais céleres”, diz, relatando que ontem, ao falar com o colega agredido e com os autores da agressão a monte, também este enfermeiro não se sentia “vingado”.