Carta aberta a um país que não lê

Ao típico jeito português, rapidamente se apontam os dedos ao ensino, à desadequada bibliografia ou às famílias que não incentivam a leitura em casa. Nem mesmo confinados durante a pandemia, os portugueses recorreram a leituras inspiradoras ou a poemas que podiam ser lidos como referências de esperança.

Por Alexandre Faria, Escritor, advogado e presidente do Estoril Praia

O recente estudo sobre as práticas culturais dos portugueses, realizado pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, revela dados muito preocupantes. Em linhas gerais, mais de metade da população portuguesa não lê livros e uma maioria preocupante dos inquiridos afirma não ter memória se os seus pais alguma vez os levaram a uma livraria ou lhes ofereceram um livro.

Ao típico jeito português, rapidamente se apontam os dedos ao ensino, à desadequada bibliografia ou às famílias que não incentivam a leitura em casa. Nem mesmo confinados durante a pandemia, os portugueses recorreram a leituras inspiradoras ou a poemas que podiam ser lidos como referências de esperança.

A crua realidade dos factos é profunda. Os portugueses até podem ter ficado orgulhosos pela atribuição do prémio Nobel a José Saramago, mas, provavelmente, não leram ou tencionam ler qualquer obra deste autor. E quando um povo abdica da sua cultura, está a repudiar os traços identitários que o distingue, definhando, paulatinamente e em silêncio, para um grave declínio pessoal e intelectual.

Não é apenas uma questão de programas escolares, da seleção obrigatória de obras que ninguém gosta, do Plano Nacional de Leitura ou dos pais que não leram livros de histórias à cabeceira dos filhos. As razões são intensas e estamos a pagar o preço de dezenas de anos de desincentivo à leitura, com consequências geracionais.

Um país necessita de autores como marcos históricos. Se qualquer um de nós fizer esse breve exercício, facilmente associamos diversos autores, pintores, escultores ou obras à coluna vertebral de um Estado, responsáveis por definirem a arte nacional, um período temporal ou uma identidade diferenciadora. Tal como cada nação emergente necessita de heróis e de personalidades marcantes, não prescindindo dos seus escritores, dos seus poetas e dos seus ensaístas, por serem os únicos responsáveis que definem a sua cultura e a sua história através da prosa e do verso.

Dos romances aos ensaios, passando pela poesia, continuo a acreditar que cada pessoa tem o seu livro. Aquele que pode mudar a sua vida, as suas decisões e os seus pensamentos. Pode não o ter encontrado ainda, contudo, nunca deve desistir, porque esse livro existe ou estará na iminência de ser publicado.

Quando um romance não é lido, não se superam estados de alma. Quando um poema não ecoa na nossa mente, não ultrapassamos os nossos limites. E quando não refletimos sobre um ensaio, não questionamos o que nos rodeia. 

 

Se um país não quer ler, não se questiona sobre a atualidade. Resume-se à escassa informação transmitida pelos canais televisivos, não distingue uma crónica de uma reportagem, confunde um jornalista com um comentador e não aprofunda a realidade escondida, por exemplo, em Donetsk e Lugansk. Não encontra um sentido nas conferências de imprensa de Vladimir Putin porque não leu os clássicos russos. Não compreende a Crimeia e a Ucrânia, as posições geoestratégicas europeia e chinesa nesta ordem mundial à qual não podemos ser alheios. Se não leu os ensaístas norte-americanos, não apreende a crescente apetência norte-americana para conflitos armados fora do seu território.

Quando um país não quer ler, está sujeito às maiores perversidades dos extremismos, fica vulnerável às mensagens falsas, perde o seu direito ao voto esclarecido e permanece refém da ignorância e de oportunistas circunstanciais. Mais do que nunca, precisamos de uma séria e eficaz implementação de políticas culturais que revertam esta tendência galopante.

Se leram este artigo, já valeu a pena. Pouco importa se concordam com estas palavras. Importa o facto de estarem a ler a página de um jornal, ou seja, a ler algo num dos mais relevantes meios de comunicação. Só fica a faltar o livro, o tal livro. Se ainda não o tiverem.