A lista de mártires ucranianos cresce de dia para dia, enquanto aumentam as filas nos centros de recrutamento, cheios de gente disposta a substituir os caídos na linha da frente.
Numa altura em que analistas avisam que os problemas logísticos afligem as colunas blindadas russas estão a ser ultrapassados, podendo avançar sobre Kiev nos próximos dias, são esperadas mais baixas, com militares e civis a prometerem resistir até ao último momento.
“Estamos a sorrir porque vamos aguentar”, garantiu Pasha Lee, de 33 anos, na descrição de uma foto sua no Instagram, vestindo um uniforme militar, com o popular slogan “keep calm and carry on” – “mantém a calma e segue em frente”, em português – cosido na manga e sentado ao lado de uma camarada. Lá fora caíam bombas, descreveu Lee, nascido na Crimeia, que participou nas dobragens das versões ucranianas do Rei Leão e da trilogia O Hobbit, entrou em alguns dos mais conhecidos filmes feitos na Ucrânia e era apresentador de televisão.
Lee fora saudado como herói por abandonar o mundo do espetáculo, juntando-se às forças ucranianas após a invasão, dando por si estacionado em Irpin, nos arredores de Kiev, uma cidade apanhada no meio das manobras russas para cercar a capital. Tem sido palco de alguns dos mais brutais combates, massacres – ainda há uns dias civis que procuravam fugir da cidade, cruzando o rio Irpin através de uma ponte derrubada para travar os invasores, acabaram abatidos por fogo de morteiro russo – e bombardeamentos. Entre os mortos estava Lee, o que causou comoção nas redes sociais à escala global.
Têm-se ouvido muitas outras histórias nos últimos dias, como a de Oleksandr Oksanchenko, um coronel a quem o Presidente Volodymyr Zelensky atribuiu o título póstumo de Herói da Ucrânia. Oksanchenko, um piloto de 53 anos, tinha-se retirado do serviço ativo há quatro anos, recebendo a alcunha de “Lobo Cinzento” pelas proezas em espetáculos de acrobacias aéreas, ganhando prémios por toda Europa. O coronel reformado voluntariou-se para combater num caça, tentando desviar a atenção dos aviões russos, anunciaram os militares ucranianos no Twitter. Mas acabou abatido nos primeiros dias da guerra, à semelhança de boa parte da força aérea ucraniana, atingido nos céus sobre Kiev por um sistema de mísseis russo S-400.
Agora, a capital que Oksanchenko morreu a defender está em risco como nunca, dado que as forças russas que se estão a concentrar no leste, oeste e noroeste de Kiev preparando-se para lançar um assalto antes do final desta semana, alertou o Institute for the Study of War.
Até agora, a ofensiva russa tem sido marcada por problemas logísticos – sobretudo no noroeste, onde está o tão famoso engarrafamento de blindados russos, ao longo de uns 65km – como a má manutenção dos pneus de camiões, dificultando o avanço durante rasputitsa, a época da lama, uma demora que não se tem visto tanto no sul da Ucrânia, onde o clima é mais seco.
Ao contrário do que vimos no início da invasão, quando o Kremlin ordenou que forças ligeiras avançassem sobre Kiev e Kharkiv, como quem esperava enfrentar pouca resistência, acabando repelidos, desde então têm tido o cuidado de manter as suas tropas sob proteção dos seus sistemas antiaéreos – como o que vitimou Oksanchenko – à espera de avançar.
“A questão é se vão estar em boa forma suficiente para completar o cerco de Kiev”, frisou Nick Reynolds, investigador do Royal United Services Institute, ao Guardian, “dado as marteladas físicas e psicológicas que as suas forças sofreram quando estavam num estado de desorganização e confusão”.
Lendas e mitos Numa guerra cheia de contrainformação de todos os lados, ansiosos de motivar as suas forças, nem todos os relatos inspiradores com que nos deparamos na imprensa ou nas redes sociais batem certo – quem se esquece da história dos guardas ucranianos da ilha das cobras, abatidos após mandar “fod*r” um navio de guerra russos, que afinal estavam vivos? E até o Kremlin e os seus aliados tentam fabricar heróis.
Entre eles está Vladimir Zhoga, mais conhecido por Vokha, o comandante do batalhão Esparta, uma das mais temidas e veteranas milícias dos separatistas de Donetsk. Zhoga, a quem Putin ofereceu postumamente o título de Herói da Federação Russa, acabou abatido na pequena cidade de Volnovakha, perto de Mariupol, sábado passado.
“Homens do Esparta estavam a providenciar cobertura para a evacuação de civis, sobretudo mulheres e crianças”, contou Denis Pushilin, líder da autoproclamada República Popular de Donetsk, quando “nacionalistas abriram fogo sobre eles”, explicou à agência russa TASS.
Ou então Zhoga – um “senhor da guerra russo que liderava um grupo de neonazis”, descreveu o tabloide Mirror – estava a participar na destruição de Volnovakha, cujos mais de 21 mil habitantes o Kremlin prometeu deixar fugir no sábado. Em vez disso, acabaram alvo de pesados bombardeamentos, danificando ou deixando em escombros mais de 90% dos edifícios da cidade, contaram alguns civis que escaparam ao Guardian.
Dias depois as atrocidades do Kremlin nesta região, que tem sofrido o pior da invasão, escalaram. Um ataque da artilharia russa a um hospital pediátrico em Mairupol, esta quarta-feira, causou danos “colossais”, denunciaram as autoridades ucranianas, escandalizando o mundo.
Gatos e Fantasmas Os ucranianos também produziram heróis bastante dúbios. Como os mitos sobre a “Pantera de Kharkiv” – os posts sobre um gato chamado Mikael, que teria detetado quatro snipers russos, tornaram-se virais mesmo após serem desmentidos – ou sobre o “fantasma de Kiev”, que se dizia ter abatido seis caças russos, até que se provou que os vídeos eram de um jogo de computador.
“Para incontáveis pessoas, partilhar noticias dos sucessos ucranianos – sejam reais ou não – é a maneira mais imediata de mostrar solidariedade”, escreveu Elisabeth Braw, investigadora American Enterprise Institut, na Foreign Policy. Contudo, “o caminho da Ucrânia rumo à vitória será sangrento e doloroso”, alertou, notando que o entusiasmo com mitos “menospreza os incríveis esforços dos soldados e civis ucranianos, distrai do seu empenho e atos heroicos”.
Falamos de atos como os de Valentyna Pushych, uma paramédica ucraniana, baleada quando tentava retirar civis da capital. Era conhecida como Romashka, ou “margarida”, uma jovem que não hesitava “pôr-se debaixo das balas” para resgatar gente em perigo, contaram os seus amigos à Associated Press, enquanto enterravam Romashka sob uma bandeira ucraniana.