Como conheceu a Maria e o João, e como surgiu a oportunidade de eles exporem obras da sua coleção no museu?
Fomos apresentados pela Josefa d’Óbidos. [risos]. Em 2015 fizemos uma exposição da Josefa d’Óbidos e fomos a casa do João e da Maria, que nos emprestaram duas peças, das três Josefas que tinham na altura. E depois há o contacto de virem ao museu e de nos encontrarmos regularmente. Foi um bom princípio.
Luigi Miradori era conhecido por ‘Il Genovesino’. Significa ‘o pequeno genovês’?
Sim, tem esse caráter um bocadinho de o ‘miúdo de Génova’.
Qual é o percurso dele?
Ele nasce em Génova no início do século XVII, em 1605, e quando começa a desenvolver a sua carreira artística, presume-se que no fins dos anos 20 do século XVII, Génova é muitíssimo importante do ponto de vista artístico, tanto pela quantidade de pintores como pela quantidade de empreitadas de vulto. É uma terra de comerciantes e de banqueiros. Sobretudo banqueiros do governo de Espanha, que tem guerras e necessidade de financiamento para essas guerras em praticamente em toda a Europa. Os historiadores calculam que um terço da prata que saía da América do Sul ia parar aos banqueiros de Génova. Além desta importância económica e artística, tem também uma importância grande que lhe é dada pela sua posição geográfica à saída de Itália, ou entrada, para quem vem em sentido contrário. Tudo isso fazia com que Génova fosse também um lugar de cruzamento e confluência de linguagens artísticas. Esta concorrência faz com que Miradori não tenha tido grande fortuna em Génova e, depois de uma passagem por Piacenza, pede autorização à Margarida de Médicis – a duquesa de Parma, de quem temos cá um belo retrato – para sair do ducado. E é então que ele vai para Cremona, onde tem a sorte de se cruzar com o governador espanhol da cidade, o D. Álvaro de Quiñones, um militar experimentadíssimo, culto, amigo do Calderón de la Barca. O D. Álvaro de Quinones é um apaixonado por pintura, tem uma enorme coleção sobretudo de artistas espanhóis, e vai patrocinar o Genovesino, o que depois leva os hospitais e as igrejas a emularem um pouco o gosto do governador e a darem-lhe cada vez mais empreitadas. E assim Genovesino torna-se o grande pintor de Cremona desta altura. É interessante que a primeira grande exposição monográfica sobre ele só acontece em 2017. Essa exposição vai permitir reatribuir-lhe uma série de obras que estavam atribuídas a pintores espanhóis, ao Sebastiano Ricci, ao Valdez Leal, ao Zurbarán. E esta ao Velázquez. Até tinha até uma assinatura falsa.
Muitas pinturas eram erradamente atribuídas aos grandes mestres. Diz-se que para pintar todas as pinturas que antigamente se lhe atribuíam o Rembrandt teria precisado de duas ou três vidas.
Havia uma brincadeira que dizia que dos dois mil quadros que o Manet pintou, três mil não são dele e quatro mil estão na América. [risos] Esta confusão entre pintores é muito comum e é muito alimentada no século XVII. Este é não só um período dos grandes pintores mas é também dos grandes marchands, que trabalham numa escala europeia, e dos grandes colecionadores também. Os marchands e os grandes colecionadores acabam por ser os museus da altura. E este caso é muito interessante: um grande colecionador de fora, que é espanhol e tem a sua coleção espanhola, o que vai influenciar o artista italiano que está a trabalhar com ele numa cidade italiana.
Nota-se um antes e um depois na obra do Genovesino? Nota-se ele ter absorvido essa influência?
É isso que estou a dizer. Não me custaria nada, nada, nada a crer se me dissessem que isto era um Zurbarán [aponta para uma pintura num catálogo]. Podia ser perfeitamente. Só que esta mesma personagem vai aparecer noutro quadro do Genovesino. É um caso extremamente interessante de uma biografia de um pintor a tentar encontrar o seu lugar, e que se vai cruzar com um colecionador, um nobre e militar que é governador mas ao mesmo tempo é um grande amante de pintura – e as duas coisas juntas fazem este mestre. Dão possibilidades ao pintor de trabalhar com liberdade, com audácia, e dão-lhe ao mesmo tempo fontes de informação que de outro modo não teria e que permitem distingui-lo de outros pintores. É um bocado estar no sítio certo no momento certo. E que nos ensina também que a vida é feita de encontros, não é só seguindo um caminho pré-definido a régua e esquadro.
Este Martírio de S. João Damasceno foi feito para uma igreja, ou para a coleção desse nobre?
Não se sabe. Eu já tenho teorias sobre o Genovesino, embora fosse um pintor que eu desconhecia completamente há seis meses. Há outra pintura do Genovesino que tem exatamente a mesma medida que esta, e que está ainda na igreja de Santa Maria Madalena de Cremona, e representa o tema sequente.
Pertenciam ao mesmo ciclo?
Este quadro mostra o corte da mão, por isso o martírio, o outro mostra o milagre em que a Virgem repõe a mão de S. João Damasceno. E há um texto do século XVIII que gaba imenso uma pintura do martírio de S. João Damasceno do Genovesino que está nesta igreja.
O autorretrato que aparece na pintura é uma espécie de cameo, como as aparições que Hitchocock fazia nos seus filmes?
Isso vem da primeira teoria da pintura. Naquela primeira geração do Renascimento, o Leon Battista Alberti escreve um tratado chamado De Pittura, que traduz para italiano para que o Masaccio, que não sabia latim, pudesse ler. E é nesse tratado que ele faz o célebre definição da pintura como janela. Além dessa definição, fala sobre uma figura a que chama, salvo erro, o admonitore. Ele diz que é conveniente que no quadro haja alguém que nos faça entrar. Pode ser através de um gesto ou desse olhar. E muitas vezes os próprios pintores entenderam, dado que eram eles a fazer a pintura, pintar-se nessa figura de convite, que é o que acontece aqui. Há várias figuras que olham para nós, mas esta é claramente destacada, e leva-nos logo o olhar para dentro da pintura.