Por Fátima Bonefácio, historiadora
Depois da segunda guerra mundial, a Europa reconstruiu-se com relativa rapidez graças, decisivamente, ao Plano Marshall. Ninguém conseguiria então imaginar que depois daquela hecatombe e carnificina pudessem emergir, gradualmente, países prósperos e pacíficos. Não fôra a II Guerra a última das guerras para acabar com todas as guerras? Fôra.
Em finais dos anos quarenta, dois líderes democratas-cristãos, o italiano Alcide de Gasperi e o alemão Konrad Adenauer, juntaram-se para traçar as linhas mestras de um Estado novo, o Estado Social. (Mais tarde, por meandros político-ideológicos complexos, estes créditos humanistas vieram a ser usurpados pela esquerda, até aos dias de hoje.) Com o tempo, entrámos na era dos direitos – direitos de tudo e mais alguma coisa, com muito poucos deveres em contrapartida.
Nasceu a geração dos babyboomers, tal era o optimismo reinante. A guerra acabara e o seu fim encerrara o mais longo e deplorável capítulo da história da Europa e do Mundo. Daí em diante, viver-se-ia em paz e concórdia universais. Os filhos mimados da geração de babyboomers, em finais dos anos sessenta, proclamaram em toda a Europa, e sobretudo em Paris, que sob os pavimentos agrestes dos boulevards ficavam praias maravilhosas. (’Sous le pavé, la plage.’) O mundo só não era um paraíso por causa da opressão obstinada e perversa dos governantes. Não fôra isso, tudo seria possível!
No meio deste optimismo geral e irresponsável, a esquerda europeia lançou um anátema sobre todos os que mencionavam e se preocupavam com a Defesa da Europa. No final do segundo governo de António Guterres, em 1999, foi tomada a decisão de abolir o serviço militar obrigatório, efectivada em 2004.
Todos os que eram contra, como eu, por exemplo, foram apodados de belicistas ao serviço das ambições imperialistas dos Estados Unidos da América. Mas o facto é que o mundo continuava a ser um lugar perigoso, que aconselhava não descuidar do armamento e das Forças Armadas, que além do mais são um símbolo insubstituível da soberania nacional.
Mas já em 1949, gente mais responsável e mais atenta à geopolítica fundou a NATO, sempre olhada pela esquerda como uma desnecessidade que apenas comprovava a vergonhosa vassalagem europeia em relação à grande superpotência capitalista.
Os Estados europeus, a União Europeia desde Maastricht em 1992 (tratado entrado em vigor em 1993), agarrou a NATO com as duas mãos: o principal financiador da Defesa europeia eram os Estados Unidos, o que permitia aos Estados europeus o luxo de dedicarem apenas 1% do PIB (ou menos) à sua Defesa e expandir à larga o Estado Social, uma generosidade muito dispendiosa.
Tão ou mais importante do que o Estado Social propriamente dito foi, na mentalidade europeia, a gestação da ideia de que tudo nos estava garantido e que todos os nossos direitos eram sacrossantos, intocáveis. Até a paz era um direito! A Europa era a Vénus do mundo, e os Estados Unidos eram Marte, guerreiros sempre prontos a atear discórdias armadas para justificar uma inconfessável ganância do lucro proporcionada pelo comércio das armas. Ora a Europa não descia a estas baixezas.
E, assim, foi vivendo amolecida, acariciada pela sua consciência tranquila de que a paz era um valor superior e se impunha, não com armas, mas com retórica pacifista. Até Angela Merkel acreditou que o gigante russo poderia ser desarmado pelos interesses económicos de uma cada vez mais aprofundada colaboração comercial. Os russos forneciam gás natural, e a Alemanha pagava em dólares. Não parece bonito? Merkel, como hoje se vê, enganou-se redondamente.
E a Europa acordou no dia 24 de Fevereiro com o zunido das sirenes de Kiev e outras cidades. A Rússia fizera o que era impensável, mas afinal previsível: invadiu a Ucrânia, na sequência da anexação da Crimeia em 2014 e da captura, agora sem disfarces, de Donetsk. Não estávamos preparados para isto. Foi preciso ‘isto’ para a Europa despertar do seu letargo dourado. Tarde demais. Tantos direitos de que gozávamos! Mas a paz mantém-se pelo diálogo respaldado pela força. Estamos apenas a pagar o preço do nosso comodismo e da nossa irresponsabilidade.