O mundo de Elena Yemelianovskaya quebrou, com as forças de Moscovo a avançar sobre a sua Kharkov. Não Kharkiv, como se diz em ucraniano, Kharkov, em russo. Na segunda cidade da Ucrânia, onde uns três quartos da população são russófonos, a sensação é de incredulidade perante os pesados bombardeamentos infligidos pela Rússia, um vizinho até então acarinhado por alguns, que fica mesmo ali ao lado, a menos de 50km.
«Dói-me porque aprecio muito o povo russo, tenho bastantes amigos russos», lamenta Yemelianovskaya, à porta do campo de refugiados instalado na GlobalEXPO, em Varsóvia. Aos 40 anos, viu-se obrigada a deixar tudo, o seu pequeno café e até o seu marido, que ficou para trás, voluntariando-se para distribuir ajuda alimentar.
Não é de estranhar que os dois filhos de Yemelianovskaya, de 13 anos e 11 anos, se mostrem tão ansiosos. Enquanto estão na Polónia à espera de um autocarro para Portugal, o seu pai está numa cidade que enfrenta barragens de artilharia, mísseis e bombardeamentos aéreos. Se Vladimir Putin esperava que este ‘povo irmão’ se rendesse sem luta, enganou-se, vendo as suas ofensivas contra Kharkov repelidas. Mas a frustração só aumentou o fogo sobre a cidade, que os russos tentam cercar.
Yemelianovskaya ainda conseguiu fugir a tempo, a semana passada, de comboio. «Caíam bombas todos os dias, havia tiroteios, as minhas janelas rebentaram», descreve. Mesmo assim, o seu bairro tem sofrido «mais ou menos» quando comparado com outros, relativiza esta mãe, que chegou a ter dificuldade em obter bens essenciais para os filhos. «Quando saíamos à rua às vezes começavam os bombardeamentos, tínhamos de fugir para dentro», explica.
«Odiámos esconder-nos na nossa cave fria e húmida. Algumas pessoas vivem escondidas no metro, no subsolo. Mas isso não é viver», recorda, quando caminhamos à procura do sítio certo para apanhar o autocarro. Tentamos furar uma multidão de gente com histórias semelhantes, sobretudo mulheres, idosos e crianças, ansiosos por deixarem para trás maridos, filhos, netos e pais. É apenas uma pequena amostra dos mais de três milhões de refugiados que já fugiram da Ucrânia, sobretudo em direção à Polónia.
Yemelianovskaya mostra-se irritada quando fala dos seus amigos na Rússia. Na imprensa russa não se fala da invasão da Ucrânia, mas sim de uma «operação especial», tendo sido proibida de expor informação não aprovada pelo Kremlin ou criticar as forças armadas russas. O que os amigos russos de Yemelianovskaya veem na televisão não bate certo com o que esta mãe de dois filhos lhes conta. Alguns não conseguem sequer acreditar quando ela lhes diz que seu bairro está a sem bombardeado.
Acham que está a exagerar. «Quando falo disso não me compreendem, porque eles acreditam em Putin, neste regime. Eles não acreditam em mim», lamenta Yemelianovskaya, enquanto lhe indicamos onde estão voluntários portugueses, prontos para a encaminhar. «Porquê?», insiste. «Conhecem-me mas não acreditam no que lhes digo que está a acontecer. É estranho».
Uma aldeia ocupada
Quatro dias antes do Nascer do SOL chegar a Varsóvia, Ruslan Osadchuk, de 46 anos, carregava caixotes de comida, roupas e medicamentos na Gare Marítima de Alcântara. Quem visse a sua passada decidida não suspeitaria que horas antes o seu cunhado morrera na Ucrânia, apanhado pelos estilhaços de um bombardeamento.
«Estamos em choque», admitiu este dirigente da Anjos de Misericórdia, uma associação fundada após o início da guerra civil no leste da Ucrânia, em 2014, para apoiar famílias das mais 14 mil vítimas desse conflito.
Agora, com a invasão russa, Osadchuk, que vive há 21 anos em Portugal e trabalha na área do audiovisual, dá pela sua própria família de luto. É forçado a assistir à distância, por videochamada, enquanto os seus entes queridos se escondem em casa, numa pequena aldeia à beira da estrada entre Kherson e Mykolaiv, uma das regiões mais férteis da Ucrânia, que se preparava para a sementeira quando a guerra rebentou.
Kherson, onde o rio Dnipro desemboca no Mar Negro, foi a primeira grande cidade tomada pelas forças russas. Estas têm-se deparado com protestos – «vão para casa», gritavam os residentes filmados a sair à rua com bandeiras ucranianas esta semana, desafiando o recolher obrigatório imposto pelo invasor – enquanto avançam rumo a Mykolaiv.
Trata-se do último reduto entre os russos e Odessa, uma cidade portuária crucial, cuja conquista daria ao invasor controlo de toda a costa sul. Mesmo após Mykolaiv ser devastada pelas baterias de mísseis instaladas em Kherson, sendo alvo até de bombas de fragmentação, avançou o Washington Post, as forças ucranianas repeliram um assalto contra a cidade, esta semana, pondo os russos em debandada. Mas a família de Osadchuk foi apanhada pelo meio.
«As tropas russas estão escondidas dentro da aldeia, para que as nossas tropas não possam disparar para os expulsar de lá. Se bombardearem, as nossas próprias tropas vão matar os nossos civis», explica o técnico de audiovisual. «Toda a gente na aldeia está com medo. E as aldeias à volta estão ocupadas também».
«Consigo falar com a minha família quando o meu pai liga o gerador uma horinha ou duas, porque eles não têm nem luz nem água há dias. Todos os vizinhos vão lá para carregar os telemóveis para falar com filhos e netos. A vida está assim», suspira. «Mas uma aldeia é uma aldeia, tem sempre alguma comida. É mais difícil passar fome numa aldeia que na cidade».
Não é de estranhar o tom abatido de Osadchuk. Mas este não se mostra menos eficaz a organizar voluntários da Junta de Freguesia de Alcântara, que ajudavam a carregar um autocarro financiada pela Gasogás e por outras empresas de Leiria, prestes a arrancar para a Polónia. Vai cheio da ajuda humanitária que a Anjos de Misericórdia angariou, destinada à Ucrânia. Ainda assim a sensação de impotência, de não conseguir ajudar a própria família, mantém-se.
«Estou a enviar isto mas sei que não vai chegar lá. As estradas estão fechadas, nos últimos quatro dias não deixam passar nenhum carro para a aldeia, não dá para levar nada», continua Osadchuk. «Estou a ajudar pelo meu país, pela minha Ucrânia. Espero que quando a aldeia da minha família estiver um bocadinho livre alguém mande para lá ajuda. Como eu estou a mandar agora para pessoas que não conheço».
Viajar de coração nas mãos
Joana Moreia, de 28 anos, está mais habituada a organizar rotas de camiões da Gasogás do que transportes de refugiados. Após oferecer as suas condolências a Osadchuk e se despedir dos seus pais ansiosos, esta jovem de Leiria rapidamente se desdobra em telefonemas, tentando assegurar que os 47 lugares vagos na camioneta voltam cheios de refugiados para Portugal, passando por Varsóvia após descarregar ajuda humanitária em Lublin, mais perto da fronteira ucraniana.
«Vamos lá ver como isto corre», diz Joana, ajeitando os óculos com algum nervosismo na voz. Só soubera na sexta-feira anterior que tinha de tratar disto tudo, dado que os voluntários que contactaram a sua empresa a pedir apoio desmarcaram à última hora, após o autocarro estar pago. Ainda conseguiu recrutar para a viagem um amigo da família – já andava a pensar fazer algo do género, garante-nos Carlos Pinheiro, um recém-reformado de 56 anos, explicando que perante o horror na Ucrânia, «estar parado não dá» – e o seu irmão mais velho, Gonçalo, um informático de 40 anos.
Os dias passam lentamente na estrada, entre a primeira noite em Bordéus, a segunda em Hanover e a chegada a Varsóvia. Joana não larga o computador, oscilando entre o entusiasmo de marcar a verde mais uma linha no Excel, significando que mais alguém confirmou que consegue chegar ao autocarro, e a preocupação com os refugiados que lhe dizem ainda estar a tentar fugir da Ucrânia.
Entre tentar arranjar sítio onde ficar para os refugiados que ainda não o conseguiram – um site recomendado por voluntários portugueses em Varsóvia é o refugee.casafari.com, criado por agentes imobiliários, que une quem oferece casa a quem precisa – e ajudá-los a inscreverem-se no site do SEF, por vezes o ambiente fica pesado. Familiares de refugiados estão constantemente a ligar a partir de Portugal, implorando que o autocarro espere mais um pouco, para dar tempos aos seus entes queridos de chegar a Varsóvia.
«Eles ainda estão a passar Kiev», lamenta Joana, após falar com uma mãe que trazia consigo dois filhos. A sensação é de ter o coração nas mãos, sabendo que as tropas do Kremlin estão a tentar cercar a capital.
Até agora, foram travadas por feroz resistência em Brovary, no leste, onde uma coluna de dezenas de tanques russos foi emboscada, mostram imagens verificadas pelo Guardian, bem como em Irpin, no noroeste. Mas o que garante que os invasores não avançam subitamente, apanhando esta mãe e os seus filhos pelo no meio? E, dada a crescente frustração das forças russas, a sua segurança não está garantida. Ainda esta semana civis foram massacrados por fogo de morteiro em Irpin, quando tentavam cruzar uma ponte derrubada pelas forças ucranianas para travar os russos.
Na camioneta, faz-se o que se consegue. «Será que os bebés de colo contam como passageiro?», questionam-se todos ao saber que vão receber um miúdo de seis meses, querendo levar o máximo de gente para a segurança de Portugal.
«Não se hão de importar de se importar que lhe dêmos roupa?», pergunta Pinheiro, já a remexer nos sacos de roupa angariada pela Anjo de Misericórdia, à procura de um casaco para uma menina de 16 anos, que ligou a dizer que estava a caminho de Varsóvia com a mãe. Fugiram só com a roupa que tinham no corpo.
Cruzar a fronteira
Pasha e Taras, dois ucranianos que vieram transportar a ajuda humanitária para lá da fronteira, já estão à espera num parque industrial nos arredores de Ludlin, às 4h da manhã de quinta-feira.
Entre as suas saudações de Slava Ukraini, ou «Glória à Ucrânia», nota-se uma certa tensão. Talvez fosse pelo ar sombrio do local. Ou porque três dias antes umas vinte pessoas sido mortas em Rivne, a cidade de Pasha e Taras, até então poupada do pior da guerra. A torre de televisão desta cidade, entre Kiev e Lviv, foi atingida por dois mísseis russos, num dos mais mortíferos ataques no oeste da Ucrânia. Desde então, as sirenes de aviso de bombardeamento tocam recorrentemente, obrigando a população a esconder-se em abrigos.
«É impossível sentarmo-nos impávidos quando a Rússia trava uma guerra tão brutal contra o nosso país», garantiu Pasha, por mensagem, após trocarmos contactos com ajuda do Google Tradutor.
À semelhança do próprio Sasha, que costumava trabalhar como agente imobiliário, ou de Taras, que era empresário, «muitos ucranianos deixaram os seus trabalhos e foram ajudar como voluntários», assegurou.
«Ajudamos tanto como podemos, como qualquer ucraniano agora», continuou o jovem, enquanto seguia numa velha carrinha Mercedes branca rumo à próxima recolha de bens vindos do estrangeiro.
Não é um trabalho fácil. Mas seria muito mais perigoso se Pasha, em vez de seguir para Rivne, tivesse de cruzar o rio Dnipro para leste, onde decorre o grosso dos combates. Aí, «os russos tentam sempre impedir a entregas de ajuda humanitária».
«Estamos a fazer isto para voltar à nossa vida normal assim que possível, sem guerra, sem baixas», frisou Pasha. Enquanto o Nascer do SOL seguia na estrada rumo à Varsóvia, onde se viam bandeiras ucranianas em todo o lado, penduradas em viadutos, estampadas em carros ou outdoors.
Deixar tudo para trás
Para os cerca de dois mil refugiados ucranianos que têm chegado diariamente à GlobalEXPO, em Varsóvia, a madrugada começa com uma certa rotina.
Gente de roupão e chinelos vai saindo de um anfiteatro cheio de filas de camas, para ir buscar algo para comer. Alguns dão um saltinho lá fora, para o primeiro cigarro da manhã. Velhotas passeiam-se com ganchos do cabelo, outros tratam dos seus animais de estimação – veem-se imensos cães, mostrando que mesmo nas piores situações há quem não abdique das suas mascotes – e miúdos irrequietos chateiam os pais para ir para a zona dos brinquedos, onde se acumulam tapetes coloridos, materiais de desenho, bonecos e livros doados por gente preocupada, ao lado de enormes pilhas de roupa.
À porta deparam-nos com Polina e Irina, duas amigas de vinte e poucos anos, agarradas a um café quente, sorrindo enquanto punham a conversa em dia com Svetlana, que morava na mesma rua de Kiev. Encontraram-se por acaso após a fuga, conta-nos Polina, que viu a casa dos seus vizinhos ser destruída por uma bomba, estilhaçando as suas próprias janelas. Decidiu que era demais e fugiu.
«Não faço ideia quando posso voltar para casa, se arranjo maneira de ir para a Alemanha, para Itália, onde seja», lamenta Polina, num inglês quebrado, misturado com alemão. Aqui não há futuro, lamentam alguns, que querem escapar para paragens distantes. Outros recusam ir para longe da terra que os viu crescer.
«Nós não queremos ficar aqui muito tempo, só queremos que a guerra pare», explicou Anastasia, de 26 anos, que trabalhava num restaurante em Kiev, de onde fugiu com a irmã mais nova. «Estamos só à espera aqui. Entre a Polónia e Ucrânia não há uma grande distância e nós queremos voltar».
Nem que seja por causa do seu pai, de 59 anos. Como todos os homens entre os 18 e os 60 está impedido de sair da Ucrânia, tendo-se juntado às forças armadas para defender Kiev. Mas, mesmo que pudesse, o pai de Anastasia não iria fugir. «Ele não queria ir», garantiu a jovem, num tom triste mas algo orgulhoso. «Disse-me que mesmo tivesse 60 anos não saía, que ia lutar».
Já Anastasia e a irmã não tiveram grande alternativa, após o seu bairro, Brovary, ser apanhado no meio das manobras russas para cercar a capital. «Vimos pessoas morrer, soldados russos entraram em nossa casa», relatou. Não hesitou em pôr a irmã no carro e arrancar.
Esperança e tragédia
Elena Yemelianovskaya está entusiasmada mas nervosa com a sua ida para Portugal, um país onde não conhece ninguém. «Acha que consigo viver em Portugal enquanto só falo inglês?», pergunta, no meio do caos que é a GlobalEXPO, mostrando-se aliviada com a resposta positiva. E com o reparo de que provavelmente seria bem mais difícil só falar inglês em Espanha ou França.
Claro que isso não resolve o problema de Yemelianovskaya e os filhos ainda só terem sítio para ficar nos primeiros dias após a viagem. É aí que entra Rui Santos, de 53 anos, um voluntário português oriundo do Porto, com quem entrámos em contacto durante a viagem. Rui, que tem uma empresa de consultoria na área da gestão e marketing, chegou a Varsóvia há duas semanas. Tinha andado a juntar dinheiro para ir fazer voluntariado em Marrocos, quando rebentou a guerra na Ucrânia decidiu mudar de rumo, mas já parece um peixe na água. Desdobra-se em chamadas, pondo em contacto organizações humanitárias polacas com outros voluntários, para arranjar vagas em autocarros para Portugal, abrigo e até um futuro para refugiados.
Ao ouvir o Nascer do SOL conversar com Yemelianovskaya, intervém de imediato. Uns minutos depois já está a ligar para amigos que se tinham oferecido para receber gente, a explicar a esta mãe de Kharkov que há uma escola ucraniana no Porto, que talvez os seus filhos não tenham de perder o ano, em princípio arranja-se um trabalho que seja adequado às suas qualificações e experiência laboral. E pedindo-lhe que tente descansar nos próximos dias, na chegada a Portugal, após uma viagem tão complicada, com tantos traumas pelo meio.
«Eu vejo isso neles, ter de fugir do nosso país é como o luto, é um choque», diz Rui, preocupado. «Anda-se aí uns tempos, a tentar perceber a nova realidade. Mas depois a vida começa a rolar naturalmente. Às vezes as pessoas perguntam-me o que é que hão de fazer em Portugal. O mesmo que aqui, só que lá tens um ambiente saudável, os miúdos não estão aqui metidos», explica, olhando em redor, para o apinhado centro de refugiados.
São condições duras, ainda que tenha havido uma onda de solidariedade dos polacos, que mantêm profundas relações com os seus vizinhos. E as autoridades da Polónia têm a apostado forte em receber refugiados ucranianos – o mesmo não pode ser dito dos refugiados oriundos do Médio Oriente empurrados pela Bielorrússia para a fronteira, onde foram recebidos por cargas policiais, estando os que conseguiram passar instalados a custo próprio nos hostels de Varsóvia. Mas ainda que a Polónia tenha recebido uma parte significativa dos 500 milhões de euros já destinados pela União Europeia a ajuda humanitária à Ucrânia, o dinheiro não chega para tudo.
Numa altura em que escapar da guerra é a principal preocupação, praticamente não se veem máscaras na GlobalEXPO. No meio da multidão de refugiados, sabendo que apenas cerca de 35% dos ucranianos estão vacinados, lembramo-nos de que estamos no meio de uma pandemia. A cada tossidela vem a dúvida: será por causa do frio terrível lá fora ou é a covid-19?
As condições em que os refugiados vivem nos campos «criam uma sensação de desespero», lamenta Rui. «Chega ao ponto em que veem o primeiro carro, não sabem quem é mas vão». É uma oportunidade inacreditável para o tráfico humano, algo para que a própria Comissão Europeia já alertou, denunciando que houve crianças desaparecidas, aproveitando o facto de famílias estarem a enviar menores sozinhos, desesperadas para os tirar do teatro de guerra.
Voluntários como Rui estão atentos, recusando trabalhar com privados no transporte de refugiados, apenas com associações, empresas conhecidas ou entidades estatais, para haver um mínimo de confiança. Não é boa ideia indivíduos aparecerem na Polónia a querer salvar ucranianos, como já viu acontecer, apela o voluntário português. «Pode ser por boa vontade, mas causa muita confusão. No meio disto tudo pode ter acontecido muita coisa», explica. «Nota-se que há muita gente a rondar com más intenções. Olhas e pensas logo: ‘Este anda à pesca’».
A conversa com Rui tem de ser interrompida. Vasim, um miúdo a quem o voluntário português se afeiçoou, tendo feito questão de garantir que entrava no autocarro para Portugal, ficou doente. Está pálido, com um rosto sofrido, não para de vomitar. Tem rotavírus, que afeta sobretudo crianças, tem havido um surto, explica o médico do campo. O mais importante é manter o rapaz hidratado.
A avó de Vadim está assustada, mas tenta fazer tudo para garantir que o neto entra no autocarro, para se reencontrar com os pais. Estes tinham ido para Faro trabalhar, enviando o dinheiro para a pequena cidade de Kalush, no oeste da Ucrânia, onde o filho vivia com os avós. Quando a guerra rebentou, a avó fugiu com Vadim, para o pôr a salvo, mas teve de voltar para trás, apesar da guerra – o avô de Vadim está doente, ela tem de tomar conta dele.
Enquanto a avó de Vadim chora, despedindo-se do neto que não sabe se volta a ver, tirando-lhe uma foto para o recordar, Rui mostra-se emocionado. «Estou com muito medo do que vai acontecer quando voltar ao Porto», admite. «Porque aqui não tenho tempo para sentir, é stress constante. Mas tenho medo de lá me ir muito abaixo».
«Uma pessoa aqui passa a vida a chorar, por boas ou más razões», conta o voluntário português. «Até chegares aqui, só vês nomes numa lista. Começas a ver as caras e é outra coisa».
Doces e solidariedade
Numa estação de serviço nos arredores de Lyon, esta sexta-feira, um polícia francês reparou nos miúdos ucranianos que brincavam num pequeno parque infantil, correndo na relva, aliviados por esticar as pernas no meio desta viagem tão longa, atravessando a Europa e seguindo direto para Portugal. Trocaram dois dedos de conversa com uma das mães, perceberam de onde vinham e deixaram 50 euros para comprar doces para as crianças.
No autocarro da Gasogás veio gente que escapou aos bombardeamentos de Kharkiv e Kiev, outros estavam com dificuldades em obter mantimentos no interior do país. Há até uma mãe que veio de Donbass, onde criou a filha debaixo de fogo de artilharia esporádico entre os separatistas russos e as forças ucranianas, ou ‘badmington’, como lhe costumam chamar. Ao alívio que já se sentia por conseguirem escapar somou-se alegria. Após o stress inicial da viagem, trocam-se piadas, ouvem-se gargalhadas, enquanto os miúdos estão entretidos a meter gomas à boca.
Já as avós – uns chamam-lhes babushkas, em russo, outros babusya, em ucraniano – vão chupando fósforos, uma tradicional receita ucraniana para enfrentar o enjoo durante as viagens. «É uma coisa dos velhos», explica Igor, um miúdo de 15 anos que fala inglês e tem feito de tradutor, encolhendo os ombros quando lhe perguntam se funciona.
Pelo meio, Joana Moreira está num estado de permanente stress, tentando garantir que todos estão bem, aplicando pensos em feridas, acompanhando miúdos adoentados e distribuindo comida.
Essa foi outra surpresa. Quando voluntários avisaram que muitos refugiados podiam não ter dinheiro para comer durante a viagem, a gestora começou a contactar familiares, amigos, colegas, pedindo ajuda para essa despesa. De um dia para o outro, chegaram mais de mil euros, tendo Joana até de avisar que não eram precisas mais doações, que chegava.
Se Joana já esperava que o seu círculo próximo fosse solidário, sem sequer fazer grandes perguntas, o gesto dos polícias surpreendeu-a. «Primeiro fiquei preocupada, não vi os polícias, não sabia quem é que eram. Depois percebi que estava tudo bem. Claro que foi um gesto muito bonito», explica a jovem, que até o autocarro chegar ao seu destino, no sábado à tarde, se recusa a relaxar. Quanto ao que viu no campo de refugiados, ainda está a processar. «Quando estamos em situações destas, com histórias tão tristes, é importante distanciar-se para conseguires ajudar as pessoas. Tens é de estar presente, com um sorriso na cara».