“Para as mães, irmãs, filhas e esposas russas. Abram bem os olhos: esta é a realidade que o vosso regime não quer que conheçam” é uma das mensagens que podemos encontrar nas redes sociais. Mais especificamente, no Facebook, plataforma em que são partilhados links de canais públicos do Telegram com milhares de fotografias e vídeos de soldados russos mortos.
O sangue é o elemento que está sempre presente nas imagens, contrastando com a brancura da neve. Numa fotografia, vemos um jovem deitado no chão, com os braços abertos, os intestinos fora do corpo e os olhos – que, se observarmos bem, ainda suplicam por ajuda – abertos. Noutra, um rapaz igualmente novo, que perdeu a vida enquanto estava sentado, foi fotografado encostado a uma espécie de contentor. Uma das gravuras que deixam qualquer um consternado é a dos soldados que sofreram tanto nos últimos minutos de vida que a cabeça está num local, os membros inferiores noutro, os membros superiores ainda mais longe e assim sucessivamente.
Estes retratos chocantes são quase sempre acompanhados de documentos que os combatentes tinham consigo, como cartões de identificação, cartões de débito e/ou de crédito, passaportes, ou até emblemas e carteiras com cartas de condução, fotografias tipo passe de familiares e outros detalhes comuns no quotidiano mas tão bizarros numa guerra. Porque, para os familiares, amigos ou quem quer que os veja, anunciam um desfecho que já fora anunciado. E o facto de se pensar que há quem tenha conhecimento da morte dos entes queridos desta forma é perturbador.
Principalmente, quando as circunstâncias do óbito são tão brutais que os cadáveres ficam irreconhecíveis ao ponto de só serem identificados, no terreno, graças aos documentos. Por aquilo que se percebe, as imagens são veiculadas por soldados ucranianos, sendo que, no início do mês, órgãos de informação internacionais como o Washington Post ou o New York Post noticiavam que “fotos horríveis de soldados russos mortos estão a ser partilhadas online por autoridades ucranianas para combater a censura do Kremlin em relação à sua invasão mortal – enquanto vídeos mostram combatentes russos a chorar e admitir crimes de guerra”. Todos garantiam que “as imagens estavam a ser publicadas por vários canais do Telegram administrados pelo Ministério do Interior da Ucrânia e pelo Serviço de Segurança, à medida que a violência continua a aumentar”.
A falta de regulamentação do Telegram Ainda que seja, efetivamente, árduo associar uma conta desta plataforma a uma pessoa específica, pois o anonimato é facilmente obtido – necessitamos apenas de recorrer ao nosso número de telemóvel para criar uma conta na aplicação e, posteriormente, escolher um nome de utilizador –, os chats multiplicam-se e cada um tem mais participantes do que o outro. Isto sem contabilizar o número de pessoas que acedem às trocas de mensagens contínuas sem se envolverem diretamente nas mesmas ou interagirem com quem partilha os diversos conteúdos.
Curiosamente, como é possível ler no site oficial do Telegram, a maioria dos engenheiros que o desenvolveram estavam em São Petersburgo e os dois irmãos responsáveis pelo seu nascimento são também de nacionalidade russa. No entanto, a equipa teve de abandonar aquela cidade “devido às regulamentações locais de tecnologia da informação” e, depois de ter tentado fixar-se em locais como Berlim, Londres ou Singapura, acabou por ficar no Dubai. “Mas estamos prontos para mudar novamente se as regulamentações locais mudarem”, sublinham.
“Todos os chats do Telegram e os chats em grupo são privados entre os participantes. Nós não processamos nenhum pedido relacionado com eles. Mas pacotes de stickers, canais e bots no Telegram estão disponíveis publicamente. Se achar que encontrou pacotes de stickers ou bots no Telegram que acredita que são ilegais, envie um email para abuse@telegram.org”, é explicitado no site oficial do Telegram, sendo acrescentado que os utilizadores podem recorrer ao botão “denunciar” quando deparam com mensagens tudo menos agradáveis.
Mas tal parece ser claramente insuficiente. Ainda para mais, durante um conflito entre dois países irmãos que está a afetar todos os outros. Deste modo, Pavel Durov, fundador e CEO da plataforma, utilizou o próprio canal para explicar a sua posição e a da empresa em relação à invasão russa da Ucrânia, destacando que vai defender a privacidade dos dados dos cidadãos ucranianos. É de frisar que estes têm conseguido manter a comunicação privada desde a invasão, no dia 24 de fevereiro, graças a esta ferramenta.
“Há nove anos, eu era CEO da VK, que era a maior rede social da Rússia e da Ucrânia. Em 2013, a Agência de Segurança Russa, o FSB, exigiu que eu fornecesse os dados privados dos cidadãos ucranianos que utilizavam o VK e que estavam a protestar contra o Presidente”, escreveu, garantindo que recusou cumprir as exigências das autoridades e, depois de ter perdido o cargo de diretor-executivo da empresa que fundara com o irmão, saiu do país. “Perdi a minha empresa e a minha casa, mas voltaria a fazê-lo – sem hesitar”, disse.
“Muitos anos passaram desde então. Muitas coisas mudaram: eu já não vivo na Rússia e não tenho empresas ou empregados lá. Mas uma coisa mantém-se igual – eu ainda defendo os nossos utilizadores. O direito à privacidade deles é sagrado. Agora mais do que nunca”, asseverou o homem de 37 anos que, juntamente com o irmão Nikolai, de 41, promete que não relegará para segundo plano os princípios basilares do Telegram. Até porque, em pleno clima bélico, transmitem que não esquecem as origens ucranianas, do lado materno, que têm.
Na sexta-feira, as forças armadas ucranianas declararam que cerca de 14 200 soldados russos morreram desde o início da invasão. Além disso, indicaram igualmente que 450 tanques russos e quase 1 450 outros veículos blindados de combate foram destruídos, tal como 93 aeronaves russas e 112 helicópteros. Diz-se que terão sido inutilizados 205 sistemas de artilharia russos, juntamente com 72 sistemas de foguetes de lançamento múltiplo e 43 sistemas de armas antiaéreas.