– Morreu o sr Amílcar.
Acordei com a mensagem, reencaminhada para um grupo do WhatsApp ao calhas, de que havia morrido o Senhor Amílcar. A mensagem da sua morte não lhe mereceu sequer a atribuição de um apelido, da palavra ‘Senhor’ escrita por extenso, ou da indicação das cerimónias fúnebres – a sua morte foi só isso: a sua morte. E quem a informou fez só isso: informá-la como quem nota ‘darem chuva’ para a semana. Morreu, soube-se, reencaminhou-se no WhatsApp. Está morto o Senhor Amílcar e a vida segue como quem apanhara uma moedita do chão.
Não doeu. A morte do Senhor Amílcar foi-me igual ao litro. O tipo era uma simpatia mas, na minha vida, não passava disso. Agora morreu, desapareceu. E não só desapareceu: desapareceu para sempre. É suposto a morte assustar. O tema, epicentro maior das minhas obsessões, foi muitos anos berbequim na minha alma. Momentos houve de tanta permeabilidade que até a morte de velhotes desconhecidos me queimavam o coração. Hoje não sinto quase nada: por já ter sido tão obsessivo com o assunto, agora vejo-o com mórbida indiferença. Talvez o tenha esvaziado para uns anos: se sim, estou muito feliz. Constato que, recentemente, muitas pessoas conhecidas morreram-me. Não sofro. São como cromos que arranco da caderneta da minha vida: as pessoas que conheço estão coladas numa daquelas cadernetas da Panini e, quando morrem, descolo-as de lá. Às vezes deixam alguns restos de cola ou papel: quando penso nelas tento não pensar nelas, e quanto menos penso nelas mais elas morrem. E vivo bem com isso porque importa-me mais a minha vida do que a morte delas.
Reencaminhei a notícia da morte do Senhor Amílcar, com a mesma magreza com que a recebera – «Morreu o sr Amílcar» -, a um amigo que tinha por hábito encontrá-lo na rua. Este mostrou-se surpreendido, pois, dias antes, havia-o visto e, conta, dele recebido «um pin com as cores da Ucrânia». Num grupo ao lado, outro rapaz tentava saber quem era o Senhor Amílcar para perceber se deveria ficar triste ou não. A tarde vir-se-ia a desenrolar normalmente, sem sentimentos tristes ou pensamentos acerca da morte do Senhor Amílcar.
Findo o jantar, volto ao WhatsApp para, sem muita surpresa, receber uma selfie do meu amigo com o morto. «Aí está o ‘home’», recebi. O ‘home’ estava, sem grande margem para dúvidas, vivo. Na selfie, o meu amigo, sorridente; o Senhor Amílcar, surpreendido com a sua não-morte, acinzentado. No grupo ao lado, o profeta da morte do Senhor Amílcar notava que este havia sido visto a beber umas cervejitas no Rock, pelo que pedia desculpa por tê-lo ‘assassinado’ durante a manhã. O Senhor Amílcar está vivo: aleluias e kumbayas.
Se por um lado a morte do Senhor Amílcar não me causou mínimo sofrimento, por outro, saber que, afinal, vivia, trouxe-me felicidade. É engraçado sentir só para um lado. A morte existe, mas é seca: não traz nada. A vida, por outro lado, é molhada: traz vida. E por isso deve-se viver mais as vidas do que as mortes. Porque a vida é a alegria da vida e a morte é a secura da morte. A morte do Senhor Amílcar era só uma fonte que secava; por outro lado, a sua (afinal) vida é uma fonte que brota, bebe cerveja e oferece pins da Ucrânia aos amigos. A sua vida, por isso, é muito mais relevante do que a sua morte. Sentir só para um lado é sentir para o lado que se quer: o da alegria, da energia, da vida. Dar mais importância à vida do que à morte é saber viver. Por mais cromos que tenhamos que remover das nossas cadernetas existenciais, procure-se celebrar os que ainda lá estão. É que nesta caderneta, ao contrário das outras, nós também participamos: não só como colecionadores, mas também como cromos. Aproveitemos enquanto o somos e esperemos, um dia, deixar algum cola para trás. E viva (literalmente) o Senhor Amílcar.