Hermitage um museu sob cerco

O Hermitage, que já foi descrito como ‘um dos museus mais puros do mundo’, tem uma história conturbada, onde confluem a magnificência, a tragédia e o heroísmo.

O estrépito das bombas que explodem na Ucrânia começa a fazer-se ouvir, aos poucos, nas habitualmente silenciosas salas dos museus. Há cerca de uma semana, na sequência das sanções internacionais aplicadas à Federação Russa, o Museu Hermitage, de São Petersburgo, solicitou a várias instituições culturais europeias a devolução das suas obras de arte emprestadas para exposições temporárias.

«Todas as peças têm de regressar à Rússia», declarou o diretor do Hermitage, Mikhail Piotrovsky, segundo o diário britânico The Guardian. Entre as dezenas de obras exigidas de volta até ao final do mês de março encontram-se retratos feitos por Ticiano e Picasso que integram exposições em Itália.

Os russos responderam assim ao anúncio feito por vários países de que já não cederiam as suas obras para a mostra O Duelo – de justiça pelo combate a nobre crime, cuja inauguração estava agendada para 4 de março no Kremlin mas foi adiada.

Entretanto, o Hermitage e o Ministério da Cultura italiano chegaram a acordo para que os quadros emprestados permaneçam até ao fim das respetivas exposições. Mas o combate entre a Rússia e o Ocidente continua a travar-se também no plano cultural, com as filiais holandesa e britânica do museu russo a cortarem laços com a casa-mãe.

 

A visão de Pedro, o Grande

De portas abertas ao público desde o dia 7 de dezembro de 1852, o Hermitage é o maior museu do mundo em extensão. Entre as suas várias dependências, alberga três milhões de obras de arte e objetos históricos, dos quais apenas 3% estão expostos. Tendo em conta que o museu está aberto sete horas por dia, das 11h às 18h, seis dias por semana, se um visitante quisesse dedicar um só minuto a cada uma destas 90 mil peças precisaria pelo menos de 35 semanas inteiras para ver a coleção de fio a pavio.

Diz-se que a cidade de São Petersburgo nasceu de uma visão que Pedro, o Grande, teve quando visitou uma área pantanosa nas margens do rio Neva. «Numa manhã de nevoeiro de 1703 uma dúzia de cavaleiros russos atravessaram os pântanos ermos e estéreis onde o rio Neva se precipita no Báltico», escreveu Orlando Figes em Natasha’s Dance (ed. Penguin), uma história cultural da Rússia. «Andavam à procura de um sítio para construir um forte contra os suecos, então em guerra com a Rússia e os donos destes terrenos alagados. Mas a visão do rio largo e curvado a correr para o mar era plena de esperança e promessa para o Czar de uma Rússia fechada sobre si mesma, que seguia à frente da sua escolta. Quando se aproximaram da costa, desmontou do seu cavalo. Com a baioneta cortou duas faixas de turfa e com elas formou uma cruz no solo pantanoso. Pedro disse então: ‘Haverá aqui uma cidade.’»

Poucos anos antes, na sua juventude, Pedro tinha participado numa embaixada à Holanda e Inglaterra, em busca de aliados e de mão-de-obra especializada, e por isso quis que a nova cidade seguisse os padrões do urbanismo moderno europeu. Um dos estrangeiros recrutados foi o judeu português António de Vieira, que viria a revelar-se, como notou José Milhazes no livro O Favorito Português de Pedro o Grande (ed. Livros de Hoje), uma figura-chave na construção e gestão de S. Petersburgo. Dessa viagem, Pedro trouxe também o quadro que está na génese da coleção de arte dos czares, David despedindo-se de Jonathan, de Rembrandt, adquirido em Amesterdão, e um gosto pronunciado por pintura holandesa.

Para levantar a cidade, que assenta em 42 ilhas e hoje é ligada por 400 pontes, Pedro mobilizou todos os recursos e não poupou esforços. «A edificação da nova capital russa foi uma obra faraónica pelas suas dimensões», explica José Milhazes no livro que dedicou a António de Vieira. «Em 1704, foram recrutadas para a construção de São Petersburgo cerca de 40 mil pessoas de várias regiões do império, principalmente servos da gleba que eram propriedade do Estado. Anualmente, até 1717, eram enviadas mais de 24 mil pessoas para várias obras. No fundo, tratava-se de mão de obra escrava, pois cada construtor recebia mensalmente um rublo pelo seu trabalho». E continua: «É curioso assinalar que os edificadores do novo centro de expansão no país tinham diariamente direito a um copo de ‘Madera imperial’, vodka barata, que recebeu esse nome do povo simples para a ridicularizar em comparação com o vinho da Madeira bebido pela nobreza russa».

A pedra para os palácios teve de vir de longe, de outros pontos do império russo, e mais de 100 mil homens morreram de doença, acidente, frio ou exaustão.

Logo em 1712 Pedro fez de S. Petersburgo a capital do império. A 27 de maio, o «incorruptível» judeu português era nomeado chefe da Polícia de S. Petersburgo. Milhazes esclarece que «seria mais correto comparar António de Vieira a um presidente da Câmara atual».

Ao fim de 70 anos a cidade mais europeia da Rússia estava de pé em todo o seu esplendor, embora o Palácio de Inverno, que hoje é a casa do Hermitage, seja o resultado de sucessivos projetos, acrescentos e reconstruções – desde o modesto edifício onde Pedro, o Grande, morreu em 1725, até ao desenho rococó de Rastrelli, um arquiteto italiano que viera para S. Petersburgo em pequeno com o seu pai, um dos muitos escultores contratados para embelezar a cidade.

 

Uma glutona chamada Catarina

A coleção iniciada por Pedro, que além de Rembrandt incluía muitas outras pinturas holandesas e a Vénus Táurida – a primeira escultura clássica vista por aquelas bandas –, foi enormemente enriquecida por Catarina, a Grande (1729-1796). Nascida numa família aristocrática alemã empobrecida, casou-se aos 16 anos, contra a vontade do pai, em S. Petersburgo com Pedro de Holsácia-Gottorp, herdeiro do trono dos czares.

Catarina nunca simpatizou com o marido, que considerava um imbecil, um bêbedo e um imprestável. Pedro III governou apenas durante seis meses, com Catarina a promover um golpe de Estado e a assumir o poder, em julho de 1762.

«Não sou uma gourmet, sou um glutona», dizia a czarina sobre si própria. «Ela tem a ‘fúria de construir’ e afirma que nenhum tremor de terra derrubará mais edifícios do que ela ergueu», escreveu Henri Troyat na biografia Catherine La Grande (ed. Flammarion). Segurando as rédeas do poder, com os fabulosos recursos do império russo à sua disposição, Catarina acumulou tesouros sem fim. Como colecionadora, era insaciável. E teve aliados decisivos, como o grande filósofo e enciclopedista francês Denis Diderot.

«Diderot tornou-se também um dos mais importantes negociantes de arte de Catarina, gastando alegremente o dinheiro dela (em colaboração com [o príncipe] Golitsyn) naquilo que ele acreditava serem as melhores telas e esculturas à venda», descreve Andrew S. Curran em Diderot e a arte de pensar livremente (ed. Temas & Debates). «Diderot transformou o florescente património da imperatriz. O contributo fundamental que o philosophe teve para a coleção de arte de Catarina, que a imperatriz iniciara apenas anos após o golpe de Estado, foi negociar a compra de quinhentos quadros magníficos que haviam pertencido a Louis-Antoine Crozat, o barão de Thiers, que morreu em dezembro de 1770. A coleção de Crozat era considerada por todos a segunda mais importante de França nessa altura, contendo não só o pequeno quadro de Rafael, São Jorge e o Dragão (c. 1504), mas também inúmeros Rembrandt e Van Dyck, bem como obras selecionadas de Rubens, Veronese, Correggio, Dürer, Ticiano, Poussin, Watteau e Chardin. Quando este sortido de telas chegou a Sampetersburgo em 1772, tornou-se o núcleo do Museu de Hermitage».

 

A humilhação de Josefina

Este impressionante espólio, que já ombreava com os maiores da Europa ocidental, continuou sempre a crescer, em contraste com o nome da sua sede – Hermitage significa eremitério, um lugar de recolhimento e, presume-se, de afastamento dos bens materiais. Em 1771, Catarina teve mesmo de mandar construir uma extensão para albergar os seus tesouros de arte e mobiliário. Como se não bastasse, na década seguinte encomendou uma nova ala que era uma réplica da loggia do Palácio Apostólico de Roma, que fez decorar com cópias dos frescos de Rafael.

A investida de Napoleão sobre a Rússia nunca ameaçou S. Petersburgo. Pelo contrário, o abandono de Moscovo à Grande Armée (que levou Tolstoi a comparar a cidade do Kremlin a uma colmeia vazia) contribuiu para reforçar o estatuto de S. Petersburgo como capital. De resto, a vitória dos russos contribuiu com despojos que vieram engrossar o espólio do Hermitage: o czar Alexandre adquiriu, de forma humilhante para os franceses, a coleção de Josefina de Beauharnais, imperatriz de França e primeira mulher de Napoleão. Foi também para celebrar a épica vitória sobre um exército que até aí parecia invencível que foi mandada erguer a coluna com a estátua de Alexandre no centro da praça do Palácio de Inverno.

 

A tragédia de Shchukin

Durante a Guerra de 1914-18, com a Rússia e a Alemanha em conflito, Nicolau II, o último dos Romanov, mudou o nome da cidade de S. Petersburgo, de raiz germanófona, para Petrogrado, que soava mais genuinamente russo.

O Palácio de Inverno esteve no centro dos acontecimentos dramáticos da revolução de 1917. A fachada desenhada por Rastrelli que dá para Neva foi usada como alvo pelo cruzador Aurora, enquanto os bolcheviques, depois de tomarem o poder, trataram do interior.

«O palácio foi pilhado e devastado de alto a baixo pelos bolcheviques», terá dito uma testemunha citada pela Wikipedia. «Pinturas de valor incalculável foram cortadas das molduras com baionetas. Caixas embaladas de pratos raros e porcelanas foram partidas e o conteúdo esmagado ou levado. A biblioteca foi arrombada e saqueada […]. O colossal lustre de cristal, com sua música secreta, foi pulverizado». A preciosa garrafeira do czar, que albergava os melhores vinhos do mundo, foi atirada ao Neva sem que sequer os soldados provassem os requintados néctares.

Ainda assim, ao contrário do que se chegou a temer, os danos são controlados. Em 1917 o Palácio de Inverno torna-se Museu Nacional e o grosso da coleção escapa ao saque e vandalismo. Mas o Governo bolchevique precisa de fundos e só por pouco o túmulo de Alexandre Nevsky, que pesa uma tonelada e meia em prata, não é fundido.

Lenine manda entretanto nacionalizar a coleção de Sergei Shchukin, riquíssimo industrial do têxtil apaixonado pela cultura francesa, que primeiro se dedicara aos impressionistas e em 1906 mudara de gosto e se tornara o maior mecenas de Henri Matisse, a quem encomendara A Dança. A vida de Shchukin ficou marcada pela tragédia: no período de maior crescimento da sua coleção, teve de lidar com a morte de um filho afogado num rio gelado, a morte da mulher, o suicídio de um irmão e de outro filho. A piedade, porém, não era um dos traços que caracterizavam Lenine, que juntou a essas tragédias mais uma: o confisco da sua acarinhada coleção de arte moderna, que no entender do líder bolchevique serviria para demonstrar a decadência dos valores da sociedade capitalista.

 

Do Hermitage para Washington e Lisboa

Passada uma década, o regime bolchevique necessita desesperadamente de liquidez, em particular de divisas estrangeiras, para pagar tratores e outros equipamentos com que quer promover a modernização do país. Estaline cria uma comissão para decidir quais as obras que podem ser vendidas ao estrangeiro. São alienadas aos milhares, entre as quais 250 obras-primas absolutas.

Um dos colecionadores que aproveitam a oportunidade é precisamente Calouste Sarkis Gulbenkian. Em 1930, o magnata arménio adquire o mármore de Diana, de Houdon, que tinha pertencido a Catarina, a Grande, e o retrato de Helena Fourment, a mulher de Rubens, pintado pelo próprio.

Depois, descontentes com os valores oferecidos por Gulbenkian (que pagava com petróleo), os responsáveis soviéticos viram-se para um norte-americano, o banqueiro Andrew Mellon. Entre as aquisições de Mellon, figuravam uma Anunciação de Van Eyck, S. Jorge e o Dragão, de Rafael, entre outras obras-primas que Mellon ofereceria ao Estado e formariam o núcleo inicial da National Gallery de Washington. A biblioteca dos czares teria idêntico destino.

Em 1934, cumprida a missão, Estaline, indignado com a alienação do património que ele próprio tinha posto em marcha, manda cessar a política de venda de obras de arte e destitui o diretor do Hermitage, Boris Legran, por cumprir o que lhe fora exigido.

Mas aproximavam-se dias ainda mais dramáticos para o museu. Mais concretamente 900 dias de resistência, abnegação e sacrifício.

 

‘Um dos museus mais puros do mundo’

A 2 de junho de 1941, Hitler lança a Operação Barbarrossa, a maior movimentação militar alguma vez posta em prática por um Exército. A Wehrmacht cerca a cidade, entretanto rebatizada Leninegrado em honra do líder bolchevique.

Temendo a selvajaria das tropas ocupantes, o orientalista Joseph Orbeli, sucessor de Legran no cargo de diretor do Hermitage, prepara um plano de evacuação das obras de arte para os Montes Urais, para longe do voraz apetite de pilhagem de Hilter e Göring.

«Ao fim de seis dias e seis noites de atividade frenética, um primeiro comboio carregado de tesouros – cerca de meio milhão de peças em mais de mil caixas – deixou a cidade a 1 de julho de 1941», relatou Anna Reid em Leninegrad – Tragedy Of A City Under Siege, 1941-44 (ed. Bloomsbury). «O comboio era composto de duas locomotivas, vinte e dois vagões de carga, um carro blindado para os objetos mais valiosos e transportadores de passageiros para guardas e funcionários do Hermitage, com plataformas para canhões antiaéreos em cada extremidade… Um segundo comboio, contendo 700.000 objetos em 422 caixotes, partiu a 20 de julho… Outros 351 caixotes ficaram prontos mesmo antes do cerco se fechar, e passaram a guerra empilhados numa galeria no piso térreo do Palácio de Inverno».

«O Hermitage é um museu pelo qual tenho gigantesco respeito», reconhece Joaquim Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga, que teve o privilégio de passear pelas salas e galerias da instituição russa sozinho, fora do horário das visitas. «Às vezes estava muito bem sozinho na sala dos Rembrandts e começava a ouvir ‘pum, pum, pum’. Eram excursões de chineses», recorda.

«Se há museu com uma história épica verdadeiramente é o Hermitage. Na II Guerra morreram quase 200 funcionários de fome, lá dentro. Alimentavam-se da cola de farinha dos papéis de parede», prossegue Caetano. «Enquanto caíam bombas lá em cima um grupo continuava nas caves a fazer o inventário da ourivesaria cita. Uma coisa épica!», remata.

Com uma duração de 900 dias, o cerco de Leninegrado é um dos episódios simultaneamente mais bárbaros e heroicos da II Guerra Mundial. A população da cidade reduziu-se drasticamente, de 4 para 2,5 milhões de habitantes.

Em O Cerco de Leninegrado (ed. Bizâncio), Michael Jones descreveu as torturas da fome experimentadas pelos civis.

«‘O pão era agora pegajoso e húmido’, recordou Elena Kochina. ‘Continha todo o tipo de lixo e apenas um pouco de farinha.’ Certa vez, trouxe um pedaço de pão muito molhado e ela e o marido olharam-no com tristeza. Apesar da angústia da fome, tiveram relutância, por um instante, em comê-lo: ‘Estava ali em cima da mesa como se fosse um naco de barro.’ […] As pessoas começaram a revolver tudo o que podiam para encontrar alternativas. Traziam para casa as folhas exteriores das couves, duras e verde-escuras, que tinham sido deitadas fora. De noite, vestindo roupas escuras com medo de atraírem o fogo inimigo, iam para os subúrbios da cidade desenterrar restos de batatas que apodreciam nos campos. Chegavam a mastigar pedaços de tronco de pinheiro».

Com o prolongar do cerco, o problema foi-se agravando. «Quando as angústias da fome aumentaram, cães e gatos começaram a desaparecer das ruas da cidade. As pessoas esquadrinhavam as suas casas tentando encontrar fontes de nutrição adicionais. Um destes suplementos improváveis era a cola de carpinteiro, raspada dos móveis. Antes da introdução de substâncias aderentes sintéticas, esta cola era feita à base de proteínas animais e continha caseína de resíduos de peixe. Se ingerida em continuidade, podia oferecer uma fonte de nutrientes, ainda que insignificante. Olga Grechina tinha uma receita dada por alguém que conhecera por acaso na rua. A cola tinha de ser demolhada durante 24 horas e depois fervida — libertava um cheiro horrível a cascos de animais antes de arrefecer e engrossar. Um toque de vinagre ou mostarda dava-lhe, aparentemente, um gosto suportável.

Faina Prusova teve menos sorte com o papel de parede. Escreveu no seu diário: ‘A conselho de uma senhora de idade, fervi o papel. Mas fiquei tão agoniada que o deitei logo fora. Depois tentei ferver um cinto de cabedal, por sugestão da porteira, e obtive a mesma água lamacenta, suja. Voltei imediatamente a deitar aquilo fora. E aí, prometi a mim mesma não comer mais lixo – venha o que vier!’».

As caves do Hermitage serviam agora como abrigo antiaéreo para cerca de duas mil pessoas que se apertavam umas contra as outras, incluindo funcionários e estudiosos, numa tentativa desesperada pela sobrevivência.

Enquanto as bombas alemãs continuavam a atingir o histórico edifício, voluntários iam vigiando os telhados para evitar grandes estragos que pudessem repercutir-se no interior, o que não impediu que em muitas ocasiões a neve entrasse pelos buracos nas coberturas e nas paredes. As janelas foram coladas com fita adesiva, como pensos para sarar feridas. E sacos de areia foram levados para as salas para minimizar os impactos e o risco de fogos.

«No exterior do Museu Hermitage, a imundície acumulada também era combatida», escreveu Michael Jones. «O contingente de limpeza era dirigido por Pavel Gubchevsky, que tinha abandonado o exército com baixa definitiva devido a uma grave doença cardíaca, e era agora chefe dos guardas do Hermitage. Alguns dos tesouros do museu tinham sido retirados, outros transferidos para os pisos térreos ou para as caves por razões de segurança, outros ainda tinham ficado onde se encontravam. Os guardas vigiavam uma área de exposição de 15 quilómetros, 1057 salas só no Palácio de Inverno».

Uma antiga funcionária recordou ao historiador britânico a vida do grande museu naqueles tempos sombrios: «Gubchevsky recordou a força de trabalho que tinha sob as suas ordens: ‘Era constituída sobretudo por senhoras com cinquenta e cinco anos ou mais, e havia até algumas com mais de setenta. Na Primavera de 1942 muitas já tinham morrido, outras estavam no hospital, e eu só podia contar com trinta’. Mas estas trinta senhoras de idade estiveram de guarda aos edifícios do Hermitage nos portões de entrada, nas portas principais e nas entradas das salas, vinte e quatro horas por dia. Retiravam o entulho depois dos bombardeamentos de artilharia, e agora, com pés de cabra, avançavam para as ruas para começar a limpar os montes de neve, gelo e lixo. Os habitantes de Leninegrado, espantados, assistiram ao seu esforço e depois vieram, cada vez em maior número, para as ajudar».

Mesmo neste cenário de caos e conflito total, o Hermitage continuou sempre a sua atividade. Em junho de 1942 foi organizada a primeira de quatro exposições com obras de pintores da cidade a retratar a defesa. E os trabalhos de restauro começaram mesmo antes do fim do cerco.

«O Hermitage é um dos museus mais puros do mundo, pois nada foi roubado ou tirado à força», elogia o realizador Alexander Sokurov no documentário Hermitage – o Poder da Arte, recentemente exibido nas salas de cinema portuguesas no âmbito do ciclo ‘A Grande Arte no Cinema’.

Porém, enquanto em Kiev, Chernihiv, Karkhiv e Mariupol se ouvir o troar dos canhões e o silvo dos mísseis, a pureza do Hermitage ficará inevitavelmente manchada pelos crimes de Moscovo.