João Alves da Costa. ‘De Portugal não quero nada, nem as mulheres!’

Jornalista, de A Bola à Penthouse, começando no Diário Popular, passando pelo Jornal da Sexologia. Foi guionista de Vila Faia. Escritor (maldito?) por ser dos que falam sobre sexo na capa dos seus livros. Autor de uma obra revolucionária em cima do 25 de Abril – América em Carne Viva. Desaparecido, mas com mil vidas.…

Ao vê-lo afastar para o fundo da mesa a malga de sopa, deixando-a a arrefecer, recordei-me logo dos nossos jantares de redação, no Bairro Alto, a maior parte das vezes na Tasca do Manel, ou na Cocheira Alentejana, e de como deitava duas pedras de gelo nos caldos fumegantes. O João é uma figura! Uma figura! Sempre foi diferente. E sempre cultivou essa diferença.

– Quando fui para A Bola, vindo do Diário Popular, as pessoas embirravam por eu usar camisas de três cores e laço ao pescoço. Não é fácil ir de encontro às normas estabelecidas.

Está à minha frente, de camisa às riscas, de três cores e com um laço vermelho bem visível. Não nos víamos há anos. Nós que trabalhámos juntos numa das melhores redações que existiram em Portugal.

– Era uma coisa… Algo de absolutamente extraordinário! Os velhos mestres, o meu pai, o Alfredo Farinha, o Homero Serpa, o Pinhão, o Carlos Miranda, o chefe Vítor Santos. Monstros! E jovens que despontavam através dos ensinamentos deles. Algo sem igual!

O João vivia todas as suas tarefas, por mais banais que fossem, como se se tratassem de mais um Caso Watergate, não tivesse ele estudado jornalismo na América. Entrava pela sala da chefia, com os óculos redondos dependurados no nariz, com as melenas balouçando atrás dele e, batia com a caneta na secretária do comandante das tropas desse dia, dizendo: «Isto é para estoirar! Temos aqui material para estoirar!» Só faltava acrescentar: «Parem as rotativas!» Depois entregava-se à máquina, matraqueando o AZERT, partindo na sua sempre fascinante aventura das reportagens e entrevistas com o estilo endemoninhado que era o seu cartão de visita.

De há uns anos para cá, desapareceu. Trocámos uns mails, ele não anda com o inferno do telemóvel no bolso, fui à procura dele. Conversámos e rimos. Mantém o sentido de humor fininho, afiado como um bisturi. Tem, no meio da sala de estar, uma bateria que lembra, de repente, um elefante na loja das porcelanas. Ele que foi baterista, e catita, no tempo incomensurável dos Jets.

– Que fazes agora?

– Estou reformado, claro. Já tenho mais do que tempo para estar reformado (o João nasceu em Janeiro de 1948). Vivo tranquilo com a minha enfermeira gaúcha (Adriana) que adora gatos e tem para ali, para as traseiras, uma espécie de hospital de bichanos, com 16 ou mais.

No dia 24 de Abril de 1974, João Alves da Costa publicou um livro que iria mexer com a juventude portuguesa da época.

– Eh, pá! Isso foi uma chatice! O América em Carne Viva vinha mexer com tudo o que era o puritanismo nacional. Tínhamos de ter cuidado. Não sabíamos como ia ser recebido pela censura. Havia partes inteiras escritas em inglês para desnortear essa gente. Mas a censura acabou logo a seguir.

– Estavas nos Estados Unidos, na Universidade do Kansas, quando começaste a escrevê-lo. Depois como foi o trabalho de o publicar num Portugal tão retrógrado?

– A Maria Antónia Palla ajudou-me muito! Muito! Eh pá, aquilo era diferente de tudo. De tudo! Um livro sem vírgulas! Já imaginaste? Uma revolução. Curiosamente, fiz a reportagem do julgamento dela, quando foi acusada de ofensa à moral pública e incitamento ao crime por causa do programa de televisão Aborto Não é Crime.

– Nesse tempo trabalhavas no Diário Popular…

– Sim. Fui muito, mas muito feliz no Diário Popular. Mas confesso que tinha o sonho de A Bola, porque o meu pai trabalhava lá.

O pai do João era o Aurélio Márcio, a quem a gente tratava carinhosamente por Sôraurélio.

– Convenhamos: não eras um jornalista com um estilo de escrita muito encaixável n’A Bola, a despeito de ser, na altura, um dos grandes espaços da liberdade de escrita da imprensa nacional.

– Mas eu trabalhava muito. Muito. Tinha a obrigação de honrar o nome do meu pai, mesmo que muita gente, ainda hoje, não saiba que fui filho dele.

– Estamos a falar de que ano?

– Ora, espera… 1979. Entrei para A Bola em 1979, em Novembro.

– Mas o pior não foi a tua entrada, foi a tua saída.

– Um processo horrendo que durou dez anos. Olha, serviu-me para escrever quatro livros. 

– Kafkiano, pelos vistos, lembro-me bem desses tempos. Mas, afinal, por que é que foste despedido?

– De um dia para o outro, a administração do jornal decidiu que eu não sabia escrever. Não tinha qualidade para escrever textos para A Bola. Consideraram-me ilegível. E acrescentaram que eu não tinha contactos. Eu que tenho milhares de contactos. Se quiseres mostro-te. Abro aí um caixote e tenho milhares e milhares de contactos no mundo todo. Ah! E que também não tinha jeito para fazer futebol.

– Conclusão?

– Foram obrigados a readmitir-me, mas enfiaram-me num canto sinistro, no terceiro andar, sem luz de jeito, sem acesso à internet. O meu trabalho resumia-se a ouvir rádio e a escrever em papel todas as notícias de desporto do dia. Enfim, segundo eles não sei escrever.

– Uma espécie de telex humano. Por falar nisso, o teu pai não falhava uma sesta de dez minutos na sala dos faxes e dos telexes, logo a seguir ao almoço.

– Verdade. E desde que o meu pai deixou de escrever n’A Bola, nunca mais peguei no jornal, nunca mais o li. Não quero saber. O meu pai também me quis n’A Bola para poder deixar-me a quota que tinha quando morresse. Vendeu-a muito antes disso.

Era uma vez na América

América em Carne Viva tornou-se um livro chocante. Helena Vaz da Silva escreveu sobre ele no Expresso: «É uma pedrada no charco da mediocridade ambiente. Estamos perante uma narrativa escrita numa prosa atrevida e ginasticada em que cujas qualidades existe um humor ácido e doloroso».

– Foi o teu livro mais importante?

– Eh pá, isso não sei. Foi importante, foi diferente. Mexeu com as pessoas. Mas quem sou eu para dizer isso, afinal não sei escrever, como eles dizem.

– Publicaste nas grandes editoras deste país? E agora?

– Agora não publico nada em nenhuma editora portuguesa. Só na Amazon. Tenho um contrato de exclusividade com eles, escrevo maioritariamente em inglês, o meu próximo livro está para sair…

– Como se chama?

– Em inglês, Lady Vampires in the Web. Em português não sei ao certo, ainda vamos ver. Eles depois de terem os livros na net, procuram novos mercados e traduzem-nos.

– Mas então não vamos ter nada teu nas livrarias portuguesas?

– Foi uma decisão que tomei e ponto final. Nunca voltarei a publicar em editoras portuguesas. Que se lixe.

– Mas chegaste a conseguir grandes tiragens…

– Sim. As Bruxas à Portuguesa foram aos 50 mil exemplares. Nesse ano, melhor do que isso só o Saramago.

– Mas saíste zangado com as editoras.

– Eh pá, vou-te dizer uma coisa: em Portugal nada! Não quero nada de Portugal! Nem sequer as mulheres!

– Logo tu, que gostas tanto de mulheres?

– É para esquecer! É para esquecer! Às mulheres portuguesas falta-lhes tudo. Falta-lhes erotismo, falta-lhes sensibilidade. Mulheres portuguesas, não obrigado! Nunca mais!

(De repente lembrei-me do Almada Negreiros e da Cena do Ódio – «Se ao menos isto tudo se passasse/numa Terra de mulheres bonitas!/Mas as mulheres portuguesas/são a minha impotência!» Enfim, foi um parêntesis, vamos andando).

– Percebo-te. Até certo ponto. Na brincadeira costumo dizer que estás no dark side of the moon. Como é que te surgiu esse interesse tão grande pelo sexo?

– O meu pai comprava a Playboy e a Penthouse quando eu era garoto. Confesso que não ligava grande coisa às fotos. Mas lia os textos todos até ao fim. Coisas incríveis! Quando fiquei a saber que a Marilyn Monroe dava puns na cama enquanto fazia sexo, percebi que estava perante o desvendar dos segredos dos mitos. Era arrasador.

O João sempre foi um tipo culto. Daquela cultura, como ele costumava dizer, que não se toma de manhã em comprimidos. Cultura a sério, de ler muito e em várias línguas, ele que tirou o curso de alemão no Goethe Institut, por exemplo, e tinha colado na parede, atrás da sua secretária, um cartaz do filme de Robert van Ackeren, Die Flambierte Frau, A Mulher em Chamas. Teimou em explorar o erotismo em todos os livros que escreveu como As Diabruras do Menino Hamlet, sobre o qual Urbano Tavares Rodrigues arrancou uma recensão efervescente: «Não hesita o autor ante a desvelação da sexualidade, senão que gostosamente se precipita num magma de evocações e invocações eróticas, através das quais a sua infância e a sua adolescência se vão constituindo-reconstituindo no plano do texto, ou seja, de uma criação paralela, de uma criação nova».

Ele recorda:

– Quando estudei no estrangeiro, sobretudo na Europa, na Áustria, na Alemanha e em Inglaterra, em Cambridge, continuei a receber a Penthouse que o meu pai me enviava juntamente com A Bola e com o Diário Popular. Os jornalistas da Penthouse utilizavam uma linguagem fantástica de não-ficção que tentei levar para os lugares em que trabalhei. E tive sempre um desejo muito grande de escrever para essa revista. O que acabou por acontecer. Entrei pelos caminhos do New Journalism americano, o jornalismo de Tim Wolfe, o contar de histórias verdadeiras mas com técnicas literárias. Um caminho complicado. Complicado.

– No fundo, sentes-te mais jornalista ou mais escritor?

– A minha escrita vive do ritmo. Eu esforço-me para que ela seja uma escrita que traga para o papel o ritmo do yé-yé ou do rock. Que tenha Kings e Beatles. Que tenha uma batida fantástica. O problema é que comecei a chatear uma data de malta. Às vezes, a Maria Augusta, telefonista de A Bola, vinha dizer-me – «João, estão ali uns senhores para falar consigo». Era gente incomodada, vê bem. E houve inveja, como há sempre em Portugal. Muita depois de eu ter escrito As Bruxas à Portuguesa. Quero dizer, sei lá se escrevi. Eles dizem que não sei escrever… Mas que houve inveja, houve. Muita!

Saudades dos Jets

De cada vez que olho para a bateria é como se olhasse para a nêspera do Mário Henrique Leiria. Não há nenhuma velha por perto, no entanto.

– Tem os mesmos pratos do que uma das baterias do Ringo Star, diz o João.

– Portanto, não tens nenhuma nostalgia do teus tempo de jornais?

– Não pá! Claro que agora estamos aqui a conversar e lembro-me de alguma da malta de A Bola, da gente se divertir enquanto fazia o melhor jornal do mundo, das conversas na redacção. De nos rirmos muito. Mas do que tenho mesmo saudade é do tempo da música…

Continuo de olhos fixos na bateria que se e encontra no meio da sala, muito calada, a ver o que acontecia. Consigo imaginar o João a entornar energia sobre ela.

– O único álbum editado pelos Jets, um EP, teve uma capa psicadélica que foi a melhor de sempre. Da autoria do pintor surrealista Carlos Fernandes, editado pela Tecla, do maestro Jorge Costa Pinto. Sonhámos em tornar-nos profissionais. O maior sucesso foi Let Me Live My Life. Tínhamos um apoio muito forte do Ricardo Levy, guitarrista, com fortes ligações às Caves Aliança, éramos tão populares como os Sheiks, onde cantava o meu colega de liceu, o Carlos Mendes…

– Gente finíssima!

– Pois! E convencemos, vê lá, a Maria João Santos a cantar connosco o Tous les Garçons et les Filles de mon Âge. Disso tenho algumas saudades. Agora dos jornais, pá, o melhor é esquecer. Nos Jets, éramos eu, o Ricardo, o Júlio Gomes e o Mário Augusto, o baixista, que já morreu. Olha, que queres que te diga dos jornais. Digo-te o mesmo que me disseram: não sei escrever.

– Continuas magoado com A Bola, isso é nítido.

– Que fazer, meu querido? Que queres que te diga. Quando tive o AVC, a minha filha Márcia foi à sede do jornal para tentar ativar o seguro de saúde. Nada! Há mais de vinte anos que não descontavam. Isso é lá comportamento de gente decente? São coisas que marcam, que ficam cá dentro.

– Mas, no fim de tudo, acabaste por receber uma boa indemnização…

– Depois de me terem enfiado naquele sótão cheio de cotão. E andar a sofrer durante dez anos para me reconhecerem o direito de ser jornalista. Recebi, sim. 850 mil euros. O advogado do jornal foi ter com o meu a mendigar, que não podiam pagar mais, que A Bola ia à falência, e o raio. Uma tristeza. Se alguma vez estas coisas aconteciam quando o Guerreiro Nunes era administrador. Ou mesmo no tempo das duas senhoras, a Maria Hermínia, filha desse enorme senhor que foi o Vicente de Melo, e a Maria Margarida, filha do grande Ribeiro dos Reis, outro dos fundadores, com o Cândido de Oliveira. Antigamente eu sabia quem é que podia e devia escrever n’A Bola. Bastava ler a primeira frase. Havia uns que eram logo para deitar fora. Punham vírgulas entre o sujeito e o predicado. Ao menos eu não punha vírgulas. Uma vez, o Vicente de Melo disse-me: «Deixe lá isso das vírgulas. Não se preocupe. Escreva os textos e espalhe as vírgulas por cima como se fossem sal e pimenta». Agora nem sequer sei quem escreve n’A Bola. Há para lá nomes que nunca ouvi falar. Não leio. Não me interessa. É gente que não sabe nada de nada. Tenho a certeza de que não estou a perder grande coisa. Olha, mas lá está, não sei escrever, dizem. Se calhar também não sei ler. Não faz mal, se não sei escrever em português, escrevo em inglês, ou em francês, ou em alemão. Felizmente aprendi muitas línguas.

– Eu, um bocado mais novo do que tu, ainda aprendi muito de jornalismo com aqueles que apelidávamos, com carinho, de os Velhos de A Bola. E felizmente trabalhei com eles. O Carlos Pinhão, por exemplo, dizia sempre que uma vírgula mal colocada é como uma pedra no caminho: acabamos por tropeçar nela. Como aprendi a ler o Jacques Ferran, Jacques Thibert ou o Patrick Urbini, do L’Équipe. E com o nosso querido amigo Jean-Philippe Réthacker, um príncipe, na vida e na escrita. E com o Assis Pacheco, que fez o favor de me ensinar uma ou duas coisas. Quais foram os teus mestres?

– Tenho de arregaçar as mangas. Foram muitos. Aprendi muito com o meu pai, primeiro. Com todos os grandes de A Bola, dos quais já falámos, mas ainda posso acrescentar o Fernando Vaz e o Silva Resende. Com o Abel Pereira, com o Jacinto Baptista, com o Baptista Bastos. E com os que me apoiaram enquanto estive fora de Portugal. Douglass Cater, num Seminário de Mass Media, em Salzburgo. Charles Guggenheim, assessor de imprensa do presidente John F Kennedy. Fred Friendly, jornalista-professor da Universidade de Colúmbia, emérita figura que desmascarou McCarthy e a sua fobia anti-comunista nos EUA. James Carothers, professor de Pós-Graduação de Escrita Criativa, onde foi redigido As Diabruras do Menino Hamlet, em inglês, e que viria ser lançado, em 1975, pela Bertrand. Haskell Springer, Professor de Literatura na Universidade do Kansas, em Lawrence, Kansas, meu mentor para Moby Dick, de Melville e Voando Sobre um Ninho e Cucos, de Ken Kesey, tema da minha dissertação final na Faculdade de Letras (1973) – 15 valores, após Seminário com a Professora Leonor de Telles e sempre apoiado pelo dr. José Ribeiro da Fonte, meu companheiro de Filologia Germânica e que me acompanhou, no Verão de 1969, ao Tirol e à Baviera, no Goethe Institut, e com quem visitei o Campo de Concentração de Dachau, perto de Munique, tendo, na época, eu redigido uma reportagem premiada e com fotos pelo Diário Popular, na noite académica em que Neill Armstrong desembarcou na Lua. E também Monique, a minha bela Professora de Francês no Kansas, minha companheira de viagem para o Hair, em Kansas City, com o cast original, sempre preocupada por, no campus de Lawrence, os professores não poderem dar boleias a alunos. Eu disse-lhe : «Vou para a autoestrada, peço boleia e tu páras se me quiseres levar…Foi uma gargalhada…». No regresso, de madrugada, já de mãos dadas e em francês, levou-me a casa. Mais não conto. A morena Monique nunca se esqueceu de mim. 

Esta do mais não conto, o Aurélio Márcio também usava. Nada de mais. Tal pai tal filho. Deixemos o mistério pairar sobre o que se terá passado naquela noite. Olho para a bateria e tomo notas. Quando o João dispara numa das suas sendas de memória, não hesita e não pára. Mas ainda tem mais um nome para acrescentar à lista daqueles a quem se sente grato, um nome que bem conheço.

– Astregildo Silva, pseudónimo de Alberto da Silva, o correspondente de A Bola em Inglaterra e Escócia, escritor da vida da dra. Margarida Ribeiro dos Reis, filha do tenente-coronel Ribeiro dos Reis. Livro empolgante sobre o percurso da nossa dra. Guida, A Dona de A Bola – infaustamente falecida – merecedor do prefácio literário de Urbano Tavares Rodrigues. 

– Achas que A Bola tem futuro?

– Só não tem futuro quem não tem passado e quem não tem presente. Não sei. Não sei escrever, já o disse tantas vezes. Éramos uma família. Depois, os grandes nomes começaram a desaparecer e os laços foram-se perdendo. A parte cósmica e magnética daquelas cabeças que hoje mandam naquilo contribuíram definitivamente para a queda. O ideal morreu, mas ainda assim o belo não passa de moda. aperfeiçoa-se, cresce, morre. Corrige-se mas o casco da alma mantém a ferradura, ainda que ausente, mutilada por bigornas descrentes, mercenárias, adúlteras. Tudo isso fomos e somos nós, diferentes, azougados e sempre perfeitamente imperfeitos. 

– Olha lá, chegaste a estudar música?

– Não. Mas tinha eu os meus 12 anos quando a minha mãe me comprou um prato de bateria na Kermesse de Paris. Nunca mais o larguei. Deve ter amaldiçoado muito o gesto porque tinha que levar com a minha barulheira. O meu pai, esse, nunca estava em casa. Saía para ir para o Diário Popular e depois ia para A Bola.

– E com quem começaste a ler?

– Com a Enid Blyton, com o Júlio Verne. E, depois, claro, com o Eça de Queiroz.

A bateria muda, no meio da sala. Precisamente no meio da sala. Ainda bem que as baterias não são como as nêsperas que ficam deitadas, caladas, a esperar o que acontece. Se não já tinha chegado uma velha que diria: «Olha uma bateria». E zás, comia-a. É a grande vantagem das baterias sobre as nêsperas.

Vêm aí as russas

A mãe do João, Corina, nunca aceitou muito bem esse seu contínuo mergulho no oceano de sexo que rodeia a sua vida.

– Eu sei, é difícil. A minha primeira mulher horrorizou-se e eu tive de me pôr a milhas. É difícil, mas sempre fui verdadeiro. Não ando por aí a mentir nem no faz de conta. O assunto interessa-me e tenho mergulhado nele até ao fundo. Muito trabalho, muito trabalho. Milhares e milhares de horas a ouvir pessoas…

Para escrever livros-reportagem como Droga e Prostituição em Lisboa (1977), Sadomasoquismo S.F.F. (1986), Mil Lésbicas Submarinas (1996) ou Uma Noite Sem Preservativo (2003), João Alves da Costa não teve apenas de mergulhar no tal oceano do sexo que marca a sua vida. Teve de ir ao bas-fond à procura de personagens autênticas, recolher os testemunhos de travestis, de transexuais, de prostitutas, de casais que se dedicam ao swing, de homens e mulheres que tiram prazer do masoquismo e do sadismo.

– Tenho por aí, por todo o lado, milhares de números de telefones, de mails. Faço questão de não tratar as minhas entrevistadas como prostitutas. Chamo-lhes acompanhantes. São pessoas que fornecem divertimento para adultos e têm toda a liberdade para fazê-lo porque são donas dos seus corpos.

Trabalhos que mereceram elogios dos camaradas de escrita, alguns deles de nomes inapagáveis, como Baptista Bastos: «Uma prosa ladina, atrevida e fresca – encheu de gozo muita gente dada a traquinices da escrita vizinha, e de aziúme maldoso alguns despeitados. João Alves da Costa é mesmo bom porque não copia nada de ninguém e porque criou um estilo realmente novo, caldeado no criol de muitas leituras, muitas observações, muitas viagens feitas sem as dioptrias da negligência e da ignorância».

Outros, os tais do aziúme maldoso, talvez lhe chamem simplesmente pornografia. A verdade é que o João fica sempre uns milímetros antes da fina linha que separa o erotismo da pornografia. Tal como, por exemplo, quando se levanta de repente para me mostrar uma foto autografada por Ilona Anna Staller, bem mais conhecida pelo nome artístico de Cicciolina. Não, não está nua. Não, não está de pernas abertas, convidativa. Limita-se a uma pose felina, provocante. Cada um tire daí as suas ilações. A fotografia diz: «Kiss for Joao», assim mesmo sem til. Como se também a pornografia do João não tivesse til, ou qualquer outro acento. Sobretudo nenhum acento grave. Ou nenhum acento demasiado grave, pelo menos.

 – Como são as personagens dos teus livros?

– São gente normal. Que anda por aí na vida do dia a dia. Gente que faz escolhas. Gente que descubro nas páginas de encontros do Correio da Manhã. Depois entro em contacto com elas e vou entrevistá-las, recolher as suas histórias.

– Gente fácil de encontrar? Recordo-me de escreveres num dos teus livros, sobre as famosas chamadas eróticas, de valor acrescentado – «correm rios de sémen pelas linhas telefónicas de Lisboa».

– Gente fácil de encontrar e que confia muito em mim porque sabe que não sou capaz de trair a confiança de ninguém. Falam-me dos seus desejos, das suas fantasias. Às acompanhantes, pago-lhes exatamente o preço que pedem a um cliente, e fico ali a conversar com elas, de porta aberta, à vontade, sem nada para esconder. 

– Há mulheres para todos os preços?

– Eh pá, há mulheres lindíssimas que são pagas a 300 ou 400 euros por hora. Outras apresentam-se com preços baratos, de 20 ou 30 euros.

Vem-me à memória uma das suas tiradas de ironia líquida, lida em algum lugar, não sei bem qual, que era algo deste género: «Em Linda-a-Velha havia uma menina que se dizia, no anúncio, virgem. Queria 20 euros em troca. Se fosse acompanhada pela irmã, que já não era virgem, cobrava mais 10 euros. Se a mãe, que se calhar nunca foi virgem, participasse igualmente, eram 40 euros».

– Depois, nos teus livros, as identidades são camufladas…

– Claro, pá! Então eu estou ali para saber as suas histórias, para contá-las, mas não para expor ninguém que não queira ser exposto. É aí que entra a minha parte de ficção. É, se quiseres, um jornalismo-ficcional. Conto a realidade através de personagens que existem mesmo, mas os nomes dou-lhos eu.

– A Penthouse aceitou-te de braços abertos?

– Uma trabalheira. Uma trabalheira danada. 40 horas de um teste duríssimo de inglês. Uma exigência tremenda.

– Escreves todos os dias?

– Todos! É fundamental! É importantíssimo para mim escrever, escrever sempre, escrever todos os dias! Mesmo que não saiba escrever como dizem os outros. Deixa lá, escrevo na mesma. Escrevo a toda a hora.

– Recordo-me de várias reportagens que fizeste para A Bola quando trabalhámos juntos. A viagem aos Estados Unidos quando morreu o Rui Abreu, por exemplo. Foi tocante. Quais as que te marcaram mais?

– Entrevistas. Diversas. Com a Rosa Mota, pessoa que adoro. Com o Eusébio de quem tenho muitas saudades. O Rui Abreu foi duro. Muito duro. O chefe disse-me: «Não voltes de lá sem o caixão!» E eu fui. Reportagem de cima abaixo. Como não sei escrever, deve ser por isso que havia as minhas páginas dependuradas numa das paredes da Embaixada dos Estados Unidos. E o Joaquim Agostinho. Tremenda, a morte dele. A reportagem que fiz sobre a autópsia. São coisas que marcam. Marcam muito.

– Ainda por cima porque também foste vítima de acidentes violentos…

– Três. Contando com o tal AVC de que já falei. Em 1968, com vinte anos, tinha a mania que era corredor de automóveis e tive um acidente que me deixou 16 dias em coma. Salvou-me o melhor médico do mundo, António Damásio. Olha, já morri três vezes. Mas sou como os gatos – os Gatos Negros – e isso não tem importância nenhuma.

Quando publicou Mil Lésbicas Submarinas, o lançamento do João na Feira do Livro teve sucesso. A história desenrola-se pela, como ele próprio disse, sexualidade íntima das lésbicas cruzada com as madrugadas de jovens futebolistas nacionais. Uma espécie de regresso ao futebol, já depois de ter deixado de entrevistar as estrelas do nosso sempre pequeno futebolzinho. Luís Alberto Ferreira, outro mestre de elegantíssima prosa, senhor de uma escrita enleante, também o acumulou de elogios: «Num pequeno país, ora atravessado pela bacoca novidade velha dos tabus, os livros de tema do jornalista João Alves da Costa constituem archotes insolitamente plantados num campo de petróleo. Excrescem os muros da capacidade do falso pudor das nossas capelinhas. Informam, restolham, incitam, postulam, sacodem até mais não! – arrancam-nos das várias modorras organizadas em que afundamos as nádegas do nosso conformismo». 

– E agora, João? Que escreves? Quem escreves? Que vem aí a seguir?

– Oh meu querido! De repente abriu-se um mundo novo. Tu fazes ideia do que recebo de mails de russas e ucranianas desejosas de vir para Portugal?! São milhares. Escuta: são milhares e milhares. Ainda ontem ou anteontem recebi uma proposta para escrever a história de uma delas, em entrevista, e estava disposta a pagar-me de imediato 800 euros. É um mundo completamente novo que aí vem. Vão entornar-se mulheres russas sobre Portugal! É inevitável! Tenho para aí um nunca mais acabar de correspondência para ler. Não imaginas, não imaginas! As ucranianas precisam de espaço, invadiram o delas. Querem fugir e Portugal, este país que não existe, onde não há ninguém que escreva sobre sexualidade, interessa-lhes. São mulheres, são shemales, são transgéneros, são transexuais, é uma verdadeira enxurrada. Acho que nem sequer deves poder escrever isto no teu jornal, mas vai mexer com milhões de dólares. Não sei se alguém publica o que eu digo, mas como também não sei escrever não faz mal. De Portugal não quero nada. Que se lixe!

Escrevi. A inquietação do João sempre foi assim, para estoirar! Pode ser que lhe chamem loucura, ou outra coisa qualquer. Duvido que ele se importe. Deixo-o na sala onde a bateria ocupa o espaço quase por inteiro. A Adriana não tardará a chegar, trazendo novidades sobre os gatos. O João teve mil vidas. Mais ainda do que os gatos. Sempre negros!