O doce canto da cotovia

Como sei eu que é uma cotovia que vem cantar-nos à janela, se nunca a vi? Graças à beleza proverbial do seu canto. E a Shakespeare, naturalmente.

U m dia destes, não sei porquê, fui sonhar com um pássaro que era tão pontual que os bombeiros acertavam o relógio por ele. Todos os dias à mesma hora o pássaro empoleirava-se num corrimão e dava o sinal para os bombeiros fazerem soar a sirene do meio-dia dali a dez minutos.

Disse que não o porquê de ter tido esse sonho mas até sei. Ou pelo menos tenho uma suspeita. É que de há quatro noites para cá venho acordando com o trinar de uma cotovia que se posta ali perto da janela do nosso quarto. Da primeira vez ouvi-a distintamente, mas depois voltei a adormecer e fiquei na dúvida. Da segunda vez, a mesma coisa. À terceira, confirmei, com um misto de satisfação e incómodo – ‘raio do pássaro, não me deixa dormir!’ – que não tinha sido iludido. Da quarta, levantei-me, fui buscar o meu gravador de voz, mais sensível do que o do telemóvel, e registei o canto do pássaro. O relógio marcava 6h15 da manhã e ainda estava escuro como breu.

Este não é o único som do campo que nos chega ao quarto. Durante o dia, ouvimos o arrulhar dos pombos. À hora a que nos deitamos, é certo e sabido que ouviremos o piar de uma coruja-do-mato (às vezes duas, uma a chamar num tom mais grave, a outra a responder num tom mais agudo). E de madrugada há sempre o doce cantar dos galos, no qual não teríamos dificuldade em encontrar algo de prodigioso se a ele não estivéssemos tão habituados.

Mas o canto da cotovia, por ser novidade, possui um encanto especial. Curiosamente, a minha mulher, que tem o sono levíssimo para outras coisas (às vezes faz-me lembrar as pessoas que combateram em África e estão sempre em alerta), quase não deu por ele.

Quando lhe perguntei se tinha ouvido o mesmo que eu, respondeu hesitante com um «talvez…». Disse-lhe que no dia a seguinte a ia acordar para ouvirmos juntos, mas dissuadiu-me de imediato: «Não te atrevas!». Acontece que esta noite, quando o rouxinol começou a cantar, sem querer dei-lhe uma pancada nas costas e fiz algum barulho ao abrir a porta para ir buscar o gravador, de modo que a acordei na mesma. A cotovia cantou ininterruptamente durante 13 minutos. Às 6h28 calou-se.

Mas como sei eu que é uma cotovia que vai ali para o pé da nossa janela? Por causa da beleza proverbial do seu canto. E por causa de Shakespeare, naturalmente.

Vou buscar a minha edição de bolso ilustrada. Vol. VIII. Romeu e Julieta, terceiro ato, abertura da cena 5. Cenário: o quarto de Julieta.

Os dois amantes secretos passaram a noite juntos na casa dos Capuletos quando escutam o belo canto de uma ave. Será um rouxinol ou uma cotovia? Julieta tenta convencer Romeu de que é um rouxinol, que canta de noite, e por isso podem continuar nos braços um do outro.

«Irás embora? Ainda vem longe o nascer do dia.

Foi o rouxinol, e não a cotovia,

que penetrou a cavidade temerosa do teu ouvido.

De noite ele canta além na romãzeira. 

Acredita-me, amor, foi o rouxinol».

Romeu desengana-a. Foi uma cotovia que cantou, «o arauto do alvor». Olha pela janela e vê o dia a anunciar-se. Se os criados os descobrem, os amantes estarão perdidos.

E foi assim que, sem sequer a ver, deduzi que seria uma cotovia a cantar-me à janela do quarto. As coisas que se aprendem nos livros.