Vive-se o cenário de invernos passados nas urgências dos hospitais, com o regresso de uma epidemia de gripe fora de época, a covid-19 ainda a circular e mais infeções respiratórias e mais doentes crónicos e complexos descompensados a procurar atendimento urgente. Os números voltaram ao que eram antes da pandemia, com mais de 21 mil doentes atendidos na segunda-feira, o que já não acontecia desde 2019. No São João, foi mesmo batido o recorde de afluência dos últimos 13 anos, confirmou ontem Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva, com mais de 950 doentes atendidos. “É de facto um pico mas o grande problema não é atingirmos os 950 doentes. O grande problema é andarmos cronicamente nos 800 e 850. Bater o recorde dos últimos anos é emblemático, o grande problema é o excesso de procura crónico”, diz ao i o médico.
O alerta está longe de ser novo e Nelson Pereira lamenta que sabendo-se o impacto de uma epidemia de gripe, que tradicionalmente leva a uma maior descompensação de doentes, não haja uma estratégia para prevenir o congestionamento nos momentos de maior pressão, com os tempos de resposta a doentes graves a degradarem-se.
Ontem o Hospital de São João registava mais de duas horas de espera para doentes urgentes, com pulseira amarela, que de acordo com a triagem de Manchester, que avalia a prioridade clínica à entrada da urgência, devem ser observados em 60 minutos.
Uma situação que na região de Lisboa, revela a monitorização em tempo real do Ministério da Saúde, volta a ter indicadores mais elevados. Esta semana, o fecho das urgências ao encaminhamento de doentes urgentes em hospitais da periferia como o Beatriz Ângelo, em Loures, tem causado constrangimentos no atendimento no Hospital de Santa Maria, que chegou a registar oito horas de espera para doentes urgentes. Depois de um alívio, ontem ao início da noite o hospital estava de novo com quatro horas de espera para doentes urgentes.
Ao i, o Centro Hospitalar Lisboa Norte, que integra o Hospital de Santa Maria e o Hospital Pulido Valente, refere que tem estado a atender cerca de 800 pessoas por dia nas urgências, o valor mais alto este ano, com mais doentes complexos (amarelos e laranjas), que têm representado mais de dois terços do total de doentes na urgência. A Sul, como já tinha acontecido no final de 2021, o problema das chamadas “falsas urgências”, quando os doentes são triados com pulseiras verdes e azuis e poderiam eventualmente ser observados noutro contexto, é agora menos intenso do que antes da pandemia, o que no Santa Maria volta a estar a ser observado. O hospital lembra no entanto que recebe doentes encaminhados de outras áreas da região de Lisboa, casos que “pela sua complexidade implicam diagnósticos mais diferenciados, múltiplos exames, muitas vezes com a necessidade de procurar informações clínicas (por serem de outras áreas de influência) e, em caso de necessidade de internamento, a realização do teste PCR” para despistar a covid-19. “Condições que, registando-se uma elevada concentração de doentes complexos, podem levar a maiores tempos de permanência na urgência, tudo sendo feito para minorar o desconforto dos utentes.”
Perante as esperas de horas, os dados do Ministério da Saúde mostram que à medida que aumenta a afluência, aumentam também as situações em que doentes acabam por ter alta porque se vão embora depois de já terem feito a triagem (ver texto ao lado).
“Havendo de facto a esta altura uma atividade de gripe mais intensa e maior descompensação, na minha perspetiva a grande dificuldade é a disfunção dos serviços de urgência que temos há muito tempo”, diz Nelson Pereira, sublinhando que a pressão do lado das doenças respiratórias não explica todo o pico de atendimentos que se tem estado a verificar. No S. João, a perceção é que a procura urgente seria gerível se 42% dos doentes que são triados com pulseiras azuis e verdes não recorressem às urgências, ao mesmo tempo que existe perceção que um menor acompanhamento da doença crónica contribui para a descompensação, área que o médico defende que seria importante reforçar para mitigar a degradação do estado de saúde da população mais vulnerável. “Sempre houve planos das administrações regionais de saúde e da Direção Geral da Saúde para lidar com estas alturas de maior vulnerabilidade e este ano não se fala sobre isso, o que é um bocadinho anacrónico, porque devíamos estar mais oleados. O facto de nada ter sido feito e continuarmos a nada fazer em relação à disfunção crónica da rede deixa-nos nesta situação de continuarmos a viver no dia a dia na constatação de que estamos mal sem um guião para sair destas dificuldades.” Com consequências. “Os tempos de espera são elevados, as condições dos doentes degradam-se, as equipas não são elásticas, têm de ver muito mais doentes, vão ter obviamente a sua atenção divergida e o resultado é um serviço pior prestado à população. É preciso assumir que existe um problema e que tem de ter uma estratégia e para isso é preciso reconhecer o problema e pensar sobre isso. Mas só ouvimos falar do que está mal, não ouvimos falar de uma estratégia e essa é diariamente a grande mágoa de quem está a tentar tirar água do barco.”