Europa agarrada à energia russa

Gás que os EUA vão enviar para a Europa não chega. Espanha poderá tornar-se uma potência energética ao contar com mais de um terço da capacidade europeia para receber gás liquefeito.

Enquanto os países europeus tentam desesperadamente deixar a sua dependência da energia russa, agora contam com o fornecimento de mais 15 mil milhões m3 de gás natural liquefeito vindo dos Estados Unidos até ao final do ano. O anúncio foi feito esta sexta-feira, mas o Kremlin também está a pensar no mesmo, tentando diversificar os compradores do seu gás natural, crude e carvão, apostando no mercado asiático com vista a subir as vendas a gigantes, como a China e a Índia (ver texto ao lado). A questão é se, com este apoio americano, a União Europeia consegue acabar com a sua dependência a curto prazo, a tempo de fazer mossa na máquina de guerra do Kremlin.

«Não», responde perentoriamente Carla Fernandes, investigadora do IPRI-NOVA, perita em Energia e Segurança, ao Nascer do SOL. «A relação energética entre a Europa e a Rússia é muito complexa. Estamos a falar de um sistema que vai da produção, ao transporte até ao consumidor final». E lembra que «aumentar a importação de gás natural liquefeito é uma opção e é essa a estratégia da UE até ao final do ano. Mas é necessário termos capacidade de regaseificação», exemplifica, referindo-se ao processo de, após o transporte do gás natural liquefeito, normalmente por via navios-tanque, lhe devolver forma gasosa, para ter uso comercial.

Dentro da União Europeia, a grande referência a nível de regaseificação é a vizinha Espanha, que possui seis terminais de gás natural liquefeito, mais um sétimo em construção. Com a invasão da Ucrânia e tanto deste combustível a chegar, Espanha, que conta com 35% de capacidade armazenamento da Europa, segundo dados da Gas Infrastructure Europe, poderá tornar-se a potência energética do bloco. Já Portugal tem apenas um terminal de gás natural liquefeito, em Sines.

Outros países, como a Alemanha, nunca mostraram interesse nisso, uma vez que era mais barato comprar gás natural por gasoduto à Rússia. Agora, o Governo alemão promete acabar com a sua dependência de energia russa até meados de 2024 – «não nos podemos deixar ser chantageados», apelou o ministro da Economia, Robert Habeck, na sexta-feira, gabando-se que, desde a invasão, só um quarto do petróleo que compram é russo, não metade, e apenas 40% do gás natural vem da Rússia, não 55% – e apressa-se a reavivar os planos para construir o seu primeiro terminal de importação de gás natural liquefeito, que demorará anos a construir. Ao mesmo tempo, vão começar a alugar unidades de regaseificação flutuantes, para tapar o buraco. 

Isso não chega para a Europa cortar a torneira de gás natural vinda da Rússia, avalia Carla Fernandes. «Já existe o reforço de importações dos EUA há algum tempo, não é de agora. Aumentou desde o ano passado, com as reservas em baixo», explica a investigadora. «Mas se olharmos para o gás natural liquefeito que importamos e para o gás que recebemos por gasoduto, não é sequer comparável».

Aliás, até o acordo assinado na sexta-feira – «vai pôr-nos numa posição estratégica mais forte», declarou Joe Biden, citado pela Associated Press, acusando Vladimir Putin de usar a energia para «coagir e manipular os seus vizinhos» – prevendo apenas o envio do equivalente a 10% do gás natural que a UE importa da Rússia. 

Tudo indica que nos EUA não há capacidade para enviar muito mais do que isso. A liquefação é um processo dispendioso, os americanos só têm sete terminais de exportação, sobretudo na Costa do Golfo, onde o gás natural é arrefecido até perder a forma gasosa, para transporte seguro.

«E ainda se coloca a questão. Os Estados Unidos têm capacidade para aumentar a sua produção energética a curto prazo?», pergunta Fernandes. Tudo indica que a resposta, mais uma vez, é não. «Isso requer investimento, capacidade, que as empresas o façam. Não acontece de um momento para o outro». 

É que os americanos estão a lidar com a sua própria crise energética. Biden até já tentou reaproximar-se do Irão e da Venezuela, após anos de hostilidade, para voltar a ter acesso ao petróleo destes países. Já a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, que são dos mais cruciais aliados dos americanos no Médio Oriente, recusaram os pedidos para aumentar a produção de petróleo, conseguindo manter os preços altos.

As monarquias do Golfo sabem que têm Washington na mão. De tal forma que a Arábia Saudita até se deu ao luxo de ponderar publicamente em permitir à China comprar petróleo em renminbi, enfraquecendo a dominância internacional do dólar. E facilitando que Pequim a ajude Moscovo a escapar às sanções.