Estaline estava indignado. A humanidade acusava-o de ser um ditador, um assassino, um psicopata e, pior ainda, de ter um bigode ridículo. E já não podia metê-la num Gulag, deportá-la para outro planeta ou dar-lhe com um picador de gelo na cabeça. Porque agora não passava de um fantasma. E, mesmo que pudesse voltar à Terra, não assustaria mais as pessoas do que quando estava vivo.
Desabafou então com Lenine.
– Por que é que os homens são tão ingratos? Dantes era o pai dos povos e agora sou um carrasco? Quem é que deu cabo da minha reputação? O Nikita foi um deles, mas deve ter havido mais camaradas que me traíram. Devia tê-los fuzilado.
– Camarada Estaline, quantas vezes já te disse que não é assim que se resolvem os problemas? Deve-se fuzilar algumas pessoas, obviamente, mas nada de exageros. Meia dúzia de camaradas desavindos, umas centenas de populares ao calhas, e chega. Durante algum tempo ninguém se atreverá a contestar o socialismo. Agora matar toda a gente, sem regras, isso não pode ser camarada. Cai mal. O socialismo científico estabelece normas para tudo, os fuzilamentos não podem ser exceção. E depois, se até matamos os nossos amigos, quem irá confiar em nós? – repreende-o Lenine.
– A minha polícia política, o NKVD, fez um excelente trabalho. Por que é que acabaram com ela? O KGB? Alguma vez fizeram alguma purga a sério? – diz Estaline.
– Já nem o KGB existe camarada… – lamenta Lenine.
– O mundo enlouqueceu. Onde é que isto vai parar? – diz Estaline.
– Ainda temos o Putin – diz Lenine.
Nesse instante, Marx intervém.
– Estou farto desta conversa. Vocês são dois imbecis que se apropriaram das minhas ideias e estragaram tudo. Em primeiro lugar, eu preconizei que a sociedade sem classes só podia ser construída num país industrializado, a Inglaterra por exemplo, e nunca numa terra de labregos como a Rússia. E em segundo, também nunca mandei matar ninguém, com ou sem regras. A ditadura do proletariado era suficiente.
– Camarada judeu, conheces alguma ditadura que não mate gente? Tem tento na língua. A tua sorte é que já não estás vivo, senão… – ameaça-o Estaline.
– Miserável, patife, grita Marx.
– Também me vais chamar assassino? Olha que se não tens escrito as tuas teorias, provavelmente nunca ninguém teria ouvido falar de mim. Queiras ou não, sou um dos teus filhos – diz Estaline.
– Renego-te – responde Marx.
– Como fizeste ao filho da criada que engravidaste? És um traste – diz Estaline.
– Patife, miserável – grita Marx aproximando-se de Estaline.
Lenine intervém.
– Acalmem-se, acalmem-se. Somos todos camaradas e continuamos a ter o mesmo inimigo comum: o capitalismo, … parece que agora lhe chamam globalização.
– Cala-te Lenine, tu não és melhor do que ele. Fizeste a revolução em nome do povo, derrubaste o czar e depois passaste a ser o novo déspota. Eu disse ditadura do proletariado, não disse ditadura de um homem só – diz Marx.
– Estás ver camarada? Este judeu odeia–nos mesmo. O que ele não suporta é que nós tenhamos tido a coragem de fazer aquilo que ele não fez. Escrever teorias para mudar o mundo, isso qualquer lunático faz. Mas arriscar a vida numa revolução, já não é para qualquer um – diz Estaline.
– Já agora, por que é que não há vodka aqui? pergunta Lenine.
– Boa pergunta, há que tempo não brindamos à revolução – lamenta Estaline.
– Faz parte do vosso castigo – diz Marx sorrindo.
– E qual é o teu castigo camarada judeu? – pergunta Estaline.
– Estar na vossa companhia – responde Marx.
– Olha Estaline, já que estamos a falar do passado há algo que há muito te queria perguntar? – diz Lenine.
– O quê? – responde Estaline.
– Houve quem dissesse que antes da revolução eras um agente duplo que passava informações à polícia do czar, é verdade? – refere Lenine.
– Calúnias. Estás a ver como é importante matar os nossos inimigos? – diz Estaline
– Quantos foram, afinal? Já perdeste a conta? – interroga-o Marx.
– A pergunta, camarada judeu, está mal feita. A pergunta não deve ser quantos matei, mas sim quantos libertei da servidão em todo o mundo. E a resposta é biliões, biliões camarada judeu – responde Estaline.
– Sim, é verdade. Houve alguns excessos, o que acontece em todas as revoluções, mas trouxemos esperança e paz à humanidade – diz Lenine.
– Enquanto ele passou a vida a especular na bolsa e a engravidar criadas, sem mexer uma palha pelos desfavorecidos – diz Estaline apontado para Marx.
– Pulha, miserável – grita Marx.
– Então não é verdade que fazias o contrário do que dizias? Criticavas o capitalismo e ao mesmo tempo investias em ações. Denunciavas a exploração dos proletários e a depravação burguesa, mas aproveitavas-te das trabalhadoras que dependiam de ti. Nunca passaste de um hipócrita – diz Estaline.
– Vamos falar das fomes de Holodomor? – pergunta Marx.
– Qual é o problema? – responde Estaline.
– Qual é o problema, meu patife? Roubaste os cereais à Ucrânia, fechaste as fronteiras e fizeste com mais de cinco milhões de pessoas morressem à fome. É esse é o problema.
– Estatísticas, camarada judeu. Não foste tu que disseste que o estado se devia apropriar dos meios de produção? Foi o que eu fiz. Acabei com o feudalismo e a servidão. Nunca mais nenhum proprietário teve lucro. O problema foi a sabotagem. Sabotagem da produção agrícola feita provavelmente por gente da tua raça.
– Já disse para pararem com a discussão – diz Lenine.
– Tu está calado, agora vamos levar isto até fim – responde Marx.
– Estás a ver camarada? Ele só vê coisas más no socialismo. Já nem sequer reconhece o mérito das suas ideias. O Hitler, apesar dos seus defeitos, era uma pessoa muito mais razoável. Com este tipo não se pode discutir – diz Estaline para Lenine.
– Oh camarada Marx, vá lá, não seja assim. Por que raio está sempre a criticar-nos? Já admitimos que houve alguns erros, alguns desvios … – diz Lenine.
– Ele não admitiu nada – interrompe-o Marx.
– Está bem, mas tem de concordar que quando se luta por uma causa superior essas coisas acontecem. Os meios justificam os fins, não é verdade? É o tal processo dialético que você inventou: tese, antítese, síntese. A tese é o projeto socialista, a antítese são os erros cometidos, um ou outro fuzilamento desnecessário, e a síntese é a futura sociedade comunista sem exploradores nem explorados.
– Não é nada disso. Mas onde é que ela está, essa sociedade? pergunta Marx.
– Bem camarada, você previu a queda do sistema capitalista, mas a única coisa que caiu foi o muro de Berlim. A marcha da história em direção ao progresso saiu dos eixos. Pode explicar-nos por que é que as suas teorias não se concretizaram? Alguma falha devem ter, não lhe parece? – pergunta Lenine.
– As minhas teorias estão certíssimas. São científicas – defende-se Marx.
Estaline interrompe-o, dirigindo-se a Lenine.
– Ele nunca percebeu nada disto. Nunca viveu com os pés na terra. Foi por terem dado ouvidos às suas tolices que aconteceram tantas desgraças. Tese, antítese, síntese? Uma kalashnikov tem todo o materialismo dialético que é preciso para educar as massas.
– É por tua culpa que o sistema capitalista triunfou. Com os teus métodos brutais, com a tua paranoia e com o teu patético culto da personalidade, afastaste os trabalhadores das ideias socialistas. Experimentaram o capitalismo e agora todos querem o conforto burguês. A luta de classes deu lugar à ida às compras – reage Marx.
– Ele tinha necessidade de se afirmar. Passou um mau bocado na infância, a mãe meteu-o num seminário … – diz Lenine.
– Ei, eu não preciso que me defendam – grita Estaline.
– Camarada, um camarada tem obrigação de defender outro camarada – responde Lenine.
– Camarada, um camarada tem obrigação de atacar aqueles que atacam outros camaradas – continua Estaline.
– E foi o que eu fiz – diz Lenine.
– Não camarada, tu defendeste-me e o que devias ter feito era atacar ali o judeu.
– Tenho muito orgulho em ser judeu – diz Marx.
– Por que é que não foste banqueiro? É isso que os judeus são: banqueiros, negociantes, agiotas, capitalistas em suma. Quando começam a fazer outras coisas para as quais não estão vocacionados, arranjam problemas – diz Estaline.
– Lá está – diz Marx apontando o dedo a Estaline – Eis a prova de que nunca compreendeste o projeto de sociedade sem classes. Os dirigentes da sociedade sem classes não discriminam os cidadãos devido à sua origem étnica. Os proletários de todo o mundo são iguais. Tu, sim, revelas todos os preconceitos raciais da sociedade capitalista e do teu amigo Hitler.
– Ele tem uma certa razão Estaline, não se deve chamar judeus às pessoas. Até há judeus que não maus tipos – diz Lenine.
– O Trotsky? – Estaline dá uma gargalhada.
– E eu digo-vos que também há russos que não são maus tipos, mas não é o vosso caso, nem o do vosso colega Putin – responde Marx.
– Eu não sou russo, sou georgiano diz Estaline
Somos todos soviéticos – corrige-o Lenine.
– Eu sou alemão – corrige-o Marx.
– E, já agora, o que é que tens contra o camarada Putin, camarada Marx? – pergunta Lenine.
– O que tenho contra o Putin? Invadiu países, prendeu opositores, silenciou a imprensa e, pior ainda, tornou-se capitalista – diz Marx.
– Camarada Marx, vamos analisar a situação de uma forma dialética. O camarada Putin assumiu o poder numa altura muito difícil, depois do traidor Gorbatchov ter retalhado e vendido a URSS. O camarada Putin não é capitalista. O camarada Putin está num processo de antítese contra a democracia burguesa para tentar restaurar a grandeza da URSS. Isso leva tempo, há muitos inimigos, muitos sabotadores, mas ele está no bom caminho. Finalmente, a Europa volta a ter medo de um russo. Quem diria que o gás podia ser a arma do futuro? – diz Lenine.
– Foi bem usado no passado – graceja Estaline.
– O camarada Putin é a nossa última esperança. O Fidel Castro morreu, os chineses são uns traidores, aquele tipo da Coreia do Norte devia estar internado e o da Venezuela também – diz Lenine.
– O Putin é muito brando. Não tem a coragem de um verdadeiro líder. Porque é que não abre um gulag como dever ser? – pergunta Estaline.
– Os gulags agora tem outros nomes, camarada – explica Lenine.
– E purgas, quantas fez? – pergunta Estaline.
– Tem purgado alguns jornalistas, alguns empresários e alguns opositores – responde Lenine.
– Não chega. Às vezes tenho dúvidas se esse Putin realmente me admira – diz Estaline.
– Ele admira-te camarada, mas por enquanto não o pode dizer em público – responde Lenine.
– Então só na Coreia é que ainda sou homenageado? – pergunta Estaline.
– Camarada Estaline, na Coreia já ninguém sabe quem tu és. Lá toda a gente acredita que o mundo foi criado pela dinastia Kim – diz Lenine.
Estaline fica a pensar durante algum tempo. Depois, olha para Marx.
– De que lado estarias, se fosses vivo, aquando da segunda guerra mundial, camarada judeu?
– Estaria contra os tiranos – responde Marx.
– Quais tiranos? Os bons, que protegem o povo, ou os maus, que defendem os exploradores? – pergunta Lenine.
Estaline intervém.
– Estás a ver camarada Lenine? Os judeus falam por meias palavras, escondem as intenções, não se pode confiar neles. Mas isto quer dizer que estaria contra nós.
– Contra ti, sim, e a favor do povo russo – responde Marx.
– Ó camarada Marx, essa resposta é muito estranha. Não abuse da dialética. Não lhe parece que está na hora de fazer uma autocrítica, depois de tanta crítica? – diz Lenine.
– Os judeus só fazem autocrítica nos campos de concentração – diz Estaline.
– Tás a ver? Ele é mesmo igual ao Hitler – diz Marx para Lenine.
Entretanto, aparece um diabo que segreda algo ao ouvido de Lenine.
– Olhem, tenho boas notícias: o Putin invadiu a Ucrânia.
– A sério? – pergunta Estaline com um brilho nos olhos.
– Sim – diz Lenine radiante – Eu não te disse que o camarada Putin era de confiança?
– E os europeus como reagiram? – pergunta Estaline.
– Estão cheios de medo, ficaram paralisados – responde Lenine.
– Excelente. Sem o Churchill não vão a lado nenhum – diz Estaline. – Os europeus não vão fazer nada porque não têm exércitos – prossegue Lenine.
– E os americanos? Esses estão sempre contra nós – diz Estaline.
– Não te preocupes. Os americanos também não sabem o que hão de fazer. Estão mais interessados em discutir o clima e os transexuais – diz Lenine.
Marx intervém na discussão.
– Estão os dois muito contentes, mas esqueceram-se dos chineses.
– Os chineses, camarada Marx, gostam de invadir países. Desta vez, estão do nosso lado – responde Lenine.
– Tenho de admitir que subestimei o camarada Putin. Afinal, ele revela qualidades de liderança. Já começou a deportar os ucranianos? E quando é que invade a Polónia? – pergunta Estaline
– Tenhamos esperança. Aqui o camarada Marx escreveu que a história se repete – diz Lenine
– Primeiro como tragédia e depois como farsa – clarifica Marx.
– Uma vez mais enganaste-te, camarada judeu. Não confundas a tua vida com a história dos povos. O meu instinto diz-me que algo grande está prestes a acontecer. Camarada Putin, envio-te um abraço aqui do inferno – diz Estaline, cofiando o bigode.
Ainda temos o putin
De que poderiam falar Estaline, Lenine e Marx no inferno? De Putin, obviamente. Perdida a União Soviética, extinto o KGB e encerrados os Gulags, Estaline e Lenine encontram em Putin a esperança de restaurar a grandeza do passado comunista. Marx, todavia, discorda. Como poderia ele apoiar um homem que se tornou capitalista?