No poema desta selecção de Fernando Santos, por vezes tão bisonha que bule com os nervos de todos os portugueses, continua a existir, como dizia Ary dos Santos, um verso em branco e sem medida. Talvez, quem sabe?, hoje seja dia de poema. Poema não apenas de vitória e de alegria por mais uma etapa cumprida por aqueles que foram campeões da Europa há seis anos, mas também poema da esperança acesa atrás do muro de quem nos possa fazer acreditar nas luzes brilhantes do futuro.
Dirão os essencialmente práticos (e o Engenheiro é, definitivamente, essencialmente prático): que se lixe a poesia! Hoje o que interessa é ganhar nem que seja com um auto-golo no minutos 120! O que nos faz falta, em muitos aspectos, financeira e desportivamente, é estar presentes na fase final do Mundial do Qatar e cumprir o bonito registo de ter estado em todas as fases finais das grandes competições nos últimos vinte anos. Ainda por cima só tendo de nos envergonhar daquele cataclismo que nos aconteceu no Coreia do Sul-Japão de 2002. Não serei eu a contrariar tal filosofia, ainda que me restem um filamento de romantismo do futebol da beleza e do espectáculo que tiveram os seus pontos máximos, durante o meu tempo de vida até hoje, no Brasil de 1970 e no Brasil de 1982. Um ganhou, outro perdeu. A matemática não dá vantagem a ninguém. Acrescentarão os grandes defensores do jogo empírico que o caso português tem exemplos muito dolorosos do que é ser mais vistoso e chamativo e sair de campo vergado ao peso das derrotas: 1966, 2000, 2004. Como esconder essa dolorosa verdade? Não é possível. Mas também foi por conta desse futebol encantador, praticado por essas selecções, e por outras em escala menos espectaculosa, que Portugal se foi impondo no universo em que a bola é a mágica senhora das paixões. Fomos campeões da Europa em 2016, finalmente!, mas não haverá, para lá das fronteiras de Badajoz ou do_Caia, quem se recorde da trajectória feita de desafios maçadores, fechados, defensivos, espectaculativos, de prolongamentos entediantes que só aquele pontapé de Éder, disparado em pleno coração da arrogante França de Saint-Denis, permite atirar tudo o que ficou pelo caminho para o mais fundo dos poços do olvido.
Mas não apenas isso, convenhamos. Tirando aquela prova experimental da Liga das Nações, feita quase de propósito para caber na nossa fatiota de selecção monótona, a defesa do nosso título europeu nunca foi feita. As presenças seguintes nas fases finais do Mundial da Rússia e no Europeu-dos-Países-Todos-e-Mais-Alguns revelaram-se mais do que bisonhas, frustrantes, relapsas de vitórias e marcadas por eliminatórias desperdiçadas frente a adversários que deviam ter estado ao nosso alcance.
É a hora!
Desde o momento em que a Itália mandou dizer que não iria estar presente no encontro decisivo de hoje, no Porto, uma espécie de alívio sublinhado por uma certa jactância tomou conta dos adeptos portugueses. Se os italianos apareciam no horizonte com o ar assustador do Behemot das Escrituras, esse hipopótamo gigantesco descrito no Livro de Job, a Macedónia do Norte parece, agora, apenas um ligeiro incómodo, uma lomba a ultrapassar na estrada para o Qatar. E bem sabemos que a lomba é a parte mais tenra do caminho. Se Fernando_Santos é essencialmente prático, também é profundamente previdente. Não há como desprezar uma selecção que, no último ano, foi ganhar, em jogos de qualificação, à Alemanha, na Alemanha (2-1), e agora à Itália, na Sicília (1-0). Só um conjunto de enorme crença nas suas mais requintadas particularidades se bate assim, de corpo e alma, com adversários tão poderosos. Não, Portugal não pode olhar para o próprio umbigo quando, daqui a pouco entrar no relvado das Antas. A sua tarefa cabe no poema de Ary: “A sina de quem nasce fraco ou forte/O risco, a raiva e a luta de quem cai/Ou que resiste/Que vence ou adormece antes da morte”.
Depois da arrepiante derrota na Luz, frente à Sérvia, com todas as condicionantes que a rodearam, a selecção nacional está, inevitavelmente, em dívida com o seu público que continua a acompanhá-la desinteressadamente, mesmo após alguns desencantamentos tão difíceis de digerir com uma sopa de pedras. É hora, portanto, de atirar para trás das costas as dúvidas e os medos. De avançar para o futuro como um barco assoprado a todo o pano. É hora de ganhar e cumprir o destino de ser melhor, muito melhor. E depois, lá para Novembro, voltaremos a debruçar-nos sobre o assunto.